sábado, 30 de agosto de 2008

Inquiry

Criei minha mente com cuidado, com muito sofrimento. Não era fácil, quando ela era pequena, encontrar tudo o que era necessário. Não fui um pai perfeito, mas fiz o melhor que pude, com sacrifício.

Mas minha mente cresceu, ganhou vida, e eu deveria me preparar para o momento em que ela partiria sozinha em direção do mundo. Assim é criar... Preparar-se para libertar.

Agora ganhou essa vida própria. Anda por aí vendo, olhando, fazendo perguntas... Todas as perguntas. As perguntas que não devem ser feitas. As perguntas erradas. Aí no meio saem as certas também. Mas são muitas perguntas. Muitas perguntas. As perguntas certas e as erradas, as erradas e as certas.

Mas ela é jovem ainda, acabou de sair no mundo. Não entende que há coisas que são. São e ponto. São e daí nada mais importa. São e estão feitas.

Vai aprender um dia, mas não agora, não mais de minhas mãos, de minha voz. Não escuta mais, agora, deslumbrada com esse mundo das perguntas todas por serem feitas. Há perguntas que não se visitam. E isso é mais que etiqueta, é prudência. Às vezes, não perguntar é até sabedoria.

Ahh, é o Tempo aí fazendo mais dos seus mistérios sempre prontos.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Pensamento positivo

Há dias que acordo com essa sensação ruim. Vão correndo as horas, vai o Sol passeando pelo céu, e a coisa vai piorando.

Estou doente. Tenho pensamentos e não consigo escrevê-los. Tenho as conversas e não consigo escrevê-las. Tenho os sentimentos e -los. Estranho.

Não sei dizer se as palavras andam passando tão rápidas, tão novas e tão inéditas em minha mente que ainda não achei a velocidade de capturá-las, ou se elas simplesmente deixaram de passar. A primeira possibilidade me engrandece num instante a maior que eu mesmo. Logo, a segunda tem um quê de mais provável, sem deixar de lado o otimismo, é claro.

Alicerce

Acordei com uma certa sensação eufórica. Não entendi bem o que era. Revirei-me na cama, olhei para o teto, para o quarto iluminado pelo sol. Levantei-me, curioso... olhei janela afora e entendi: estava tudo resolvido. Finalmente, eu tinha uma vida sem mais problemas. Vi a cerca branca em volta da casa, devidamente pintada. Cachorros correndo no quintal e minha filha brincando com eles, ainda de pijama. Cena das mais tenras.

No trabalho, não havia mais preocupações. Meu chefe me tratava bem desde então. Nenhum problema com prazos, inimizades. No mundo, a poluição não acontecia mais. A pobreza ilustrava os livros e ocupava as escolas: tão abstrata quanto a matemática.

O mundo foi assim por dois dias. E então alastrou-se a peste. A depressão e a desmotivação disseminaram-se como um vírus mortal. Não se sabe ao certo a extensão dos prejuízos e das inatividades pois nem os estatísticos e os jornalistas, num primeiro momento, julgaram de algum valor contabilizar o que ocorria.

Acordei com uma certa sensação eufórica. Havia sido um sonho? Um sonho apenas? Aquele acordar era estranhamente melancólico e doce: saí do único mundo onde os sonhos máximos haviam uma única vez ao menos se realizado, mas senti-me como nunca necessário ao meu mundo, parte dele como se é parte do que se é um só. Meus filhos estavam brigando na sala porque o temperamento explosivo e inquieto do mais novo atrapalha profundamente todas as brincadeiras de minha mais velha. E minha esposa resmungava maldições a mim por estar em pleno sábado dormindo até tão tarde. Me fingi dormindo por mais três minutos digerindo aquelas esbravejações e então levantei, revigorado como nunca.

Colapso

O som era alto, o ambiente um tanto quanto tomado pela fumaça. A conversa ia caminhando por meandros estranhos, trazendo à tona tudo o que já era sabido de todos (quase todos), mas ainda assim produzindo um enorme constrangimento. De ambos os lados.

Ao constrangimento, reagiam: riam. Ridicularizavam o que eram constrangedor. Ignoravam o que mais lhes era próprio.

Beijaram-se, olharam-se nos olhos. Abraçaram-se. Sentiram uns aos outros.

Não houve amor. Houve apenas desse sentimento que chateia a saudade e que corrói a imaginação.

E estavam felizes: havia um pretexto para, naqueles instantes, não se pensar em felicidade.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Surface

Há um não-eu que me persegue em todos os instantes, uma sombra da qual não me livro às custas de nada, nada nada nada. Essa aparência que produz o que quero sendo o que não quero.

Lógica corrompida que realiza feitos incríveis por caminhos inaceitáveis. Lugares inaceitáveis. Vou processar o destino por este humor impróprio.

Há este dançar inaceitável das coisas se colocando em lugares estranhos. E eu acho que nem quero mais escrever sobre isso. Dane-se, vivo escrevendo sobre essa desistência.

Quando o sonho nos procura achamos que não é hora de dormir.

Não sabemos sonhar acordados.

Não, nunca sabemos sonhar acordados.

Quando o sonha nos procura achamos que não é hora de dormir.

Não sabemos que é realidade.

Andava à noite carregando duas malas grandes, bem vestido. A rua estava deserta e escura. Um carro aproximou-se lentamente e fui abrindo a janela.

Ofereceram uma carona.

O mundo é bom.

Não sabemos que é realidade.

Era frio, a cidade estava destruída e a noite já ia longe. Duas pessoas. Um único cobertor. Desconhecidos.

Dividindo o resto de nada.

Não sabemos que é realidade, não sabemos que a realidade nos ronda, não sabemos que a realidade existe na gente agora escondida. Não enxergamos o que acontece, não vemos a essência do que é a cada instante esse algo que é o tempo todo e que só ele é esse algo capaz de ser o tempo todo.

Sonhar acordado...

Meticuloso

Tirei da escrivaninha toda a bagunça que estava lá. Deixei só uma folha sulfite, colocada meio inclinada, a luminária acesa no canto da direita, junto à parede, e minha caneta de estimação. Sentei-me sobre a cadeira mais confortável, e deixei os pensamentos virarem tinta até secarem.

Olhei o formato daquilo e eram bem pensamentos meus mesmo. Toscos quando olhando meio de longe. Tortos, mal agrupados. De perto, nunca se repetiam. Minha caligrafia não permite isso. Uso folha sulfite porque meus pensamentos ofenderiam as linhas tradicionais: não caem jamais onde deveriam.

Mas a quem olhar mais de perto, há uma linha líquida correndo rápido desde há muitos anos ganhando volume e fazendo esse esforço descomunal, sem perder energia, para levar tudo consigo correnteza adiante.

Seguro a caneta sempre na posição certa, para que a pena, ao se apoiar sobre o papel, abra um pouco o sulco que tem na ponta de modo a deixar correr a tinta.

Até que faz sentido.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Nítido

Não não... Não é aceitável. Demanda muita coragem, muita força de vontade daqui em diante este fato que teria tudo para ser inocente. Ou, quando muito, incriminar a mim e a ninguém mais. Porém eis que meu pequeno deslize quebra de forma brusca tudo o que é expectativa alheia, e escuto daqui e dali esses lapsos de sinceridade. Sinceridade vergonhosa.

Mas o que esperar? Idealismo é só um quadro bonito que serve para ser colocado na porta da realidade. Ali dentro é outra coisa.

As aparências enganam: sim, as aparências importam.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Onisciente

Subiu as escadas, devagar para não atrapalhar a preguiça inspirada pelo sol. Chegou ao velho escritório. Todos os livros ali, dos livros do primário às teses que ele próprio escrevera nos tempos de pós-graduação. Suspirou por um instante de todo aquele volume de informações, sem saber distinguir-se vencedor ou perdedor diante do desafio a que anos atrás se propôs.

Encontrou um velho livro de geografia. Uma feira do livro ainda no primário, quando as equações da matemática ainda não haviam aparecido e quando a geografia não passava de uma palavra mágica dessas sobre as quais se pode imaginar qualquer coisa que interesse. Foi pouco a pouco lembrando dos detalhes do desafio.

Tirou o livro em suas mãos, começou a folhear. Nigéria, Zimbabue, Estados Unidos, Japão, Panamá. Taxas de natalidade. Taxas de mortalidade. Guerras. Economia em tempos de paz. Hoje ele era capaz de entender tudo aquilo. E mais que capaz: entendia, dominava e ensinava.

Perdeu as contas dos minutos que corriam indiferentes enquanto imaginava todas essas diferenças que se distribuem pelo mundo, e da clareza com que agora essas coisas se desenrolavam ao seu entendimento. Os intrincados mecanismos que vão mudando a sociedade. Sentiu-se por alguns instantes conhecedor profundo das pessoas próximas, das pessoas distantes, das pessoas desconhecidas mesmo.

Foi tomado de assalto pelos gritos vindos da cozinha. Fechou o livro. Ouviu os passos duros vindos pelo corredor. Quase no mesmo instante sua mulher estava lá, dedo em riste:

- Olha! Eu desisto... Não sei o que fazer com esse garoto. Terminou com a namorada de novo, ama ela e está todo acabado. O filho é seu, sabe porque ele fez isso? Porque eu não sei!

- Não! Também não sei!

Ficou ali olhando sua esposa alguns instantes, voltou a olhar o livro e, antes de ir falar com o filho, disse baixinho:

- Mas vou querer revanche!

Ética

O pai ainda está segurando a bicicleta, discretamente, mas deixa o filho comemorar a conquista da primeira volta bem sucedida, ganhando confiança para as próximas.

Os bandidos sabiam que um trapaceara contra o outro. Ambos haviam saido ilesos. Ambos sabiam que o outro sabia, e sabiam que iriam ignorar o assunto e jamais falar nisso. Viveram amigos até o fim da vida.

E outros tantos exemplos.

Tantos, tantos exemplos.

Até que me apaixonei.

O pior cego é aquele que sabe que não pode ver.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Medo

Um corredor longo, estreito, úmido, escuro. Longo, muito longo. Muito sufoco e apreensão em todas as direções. Corrida. Agitação. Ansiedade pisando a passos rápidos em poças de água, o barulho ecoando até desaparecer. Ratos.

Ilusão, a saída é ilusão. O corredor não tem fim. A pretensão de se estar desfilando num grande evento de moda. Essa é a saída. Mentira. Mentira que há saída. Mentira há que saída. Saída há que mentira. Há mentira que saída.

Ninguém entende o porque de descer a um lugar assim. Ninguém sabe qual o motor dessa curiosidade suicida.

Um atrativo caminho com uma placa onde se lê: não ultrapasse. E por onde todos vão. Muitos voltam correndo. Outros são expelidos pelos perigos imediatos. Os mais zelosos por suas curiosidades desvendam falhas na frieza do mundo e se aproximam ainda mais.

Socorro. Um pedido de socorro. Ecoando tempo atrás tempo ao passado até os dias em que era puro caminhar, em que era lícito explorar o direito de observar pra dentro.

Socorro. Um suspiro de cansaço. Saudades de poder olhar olhares sem queimar em culpa.

Silêncio. Trinta segundos. Trinta dias. Três anos. Faz tempo.

Ainda não se chegou à metade do corredor sem fim.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Invisível

Guerra no Iraque. Desligo a TV.

Crianças pedindo esmolas no farol. Fecho o vidro.

Goteira na pia da cozinha. Fico na sala.

Acende a luz de tanque na reserva. Desparafuso a luz do painel.

Dor de um coração partido. Penso em outras coisas. Outras, outras coisas.

Meu coração, o de outra pessoa, não importa. Penso em outras coisas.

Assim, pensando nisso sem pensar nisso é que os assuntos prosseguem.

Fiz o mesmo com a Guerra do Iraque e funcionou.

Vou desligar a TV.

Fiz o mesmo com a tristeza do 11 de setembro e funcionou.

Desliguei a TV.

Recebi um telegrama: era de mim, dizia sentir saudades.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Perigo

Há muitas histórias na literatura que versam sobre os sonhos tão grandiosos, tão abrangentes, tão gulosos que conquistam com todo o mérito o mais liso nada. Histórias que dóem mais serem vividas do que lidas. Veio um amigo meu ontem contando seus causos. Contando das vezes em que o telefone não tocou. Contando de quantas vezes pensou e não falou e se arrependendo das vezes em que falou e não tinha pensado muito antes.

Concluímos que o problema não eram as histórias em si, mas a crise com nunca sentir ter sido quem queria ser naquela hora.

Voltei para casa pensando na vida. Pensando nas histórias que meu amigo contou. Usando os problemas alheios para aprender um pouco de todos, um pouco dos meus.

Sentei em frente à estante. Tirei alguns empoeirados para ler as velhas histórias, e acho que elas perderam esse ponto: não é ausência de toda a prosperidade desejada, da mulher perfeita, da vida gloriosa... é a ausência de um eu coerente com tudo isso, na hora certa. A ausência de um eu coerente com o que está aí. Essa sensação causa estranheza...

Não sei que nome ela tem. Não quero pensar em um nome para esta sensação pois, caso ainda não o tenha, eu perderia o paraíso por inventar mais esse martírio à humanindade.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Bêbado

O Sol já ia baixo no horizonte, mas o calor ainda era forte, o ar abafado. Com o paletó enrolado no braço, ia subindo ladeira acima, sujando seu sapato de terra. Deixava para trás o lado rico da cidade, voltando do trabalho.

Reparou num menino brincando em frente ao barraco. Um carrinho imaginário montado com restos de madeira. Cinco anos. Nove talvez. Não parecia muito bem nutrido.

Naquele fim de dia, desistiu de ir direto para casa e resolveu passar no bar. Precisava esvaziar a cabeça das injustiças do dia-a-dia. Precisava esquecer o quanto seus esforços eram pisoteados. Precisava imaginar uma existência diferente daquilo tudo.

Chegou no bar. Desanimou-se uma gota mais. Largados de si jogados pelos cantos, uns alegres, ignorando esses fatos todos, jogavam baralho, bilhar ou dominó. Outros simplesmente se esqueciam.

Mas um dos esquecidos olhou diretamente pra ele e falou, em tom severo:

-Ah, sabe... eu encontrei, o pior é que eu encontrei... faz tempo já, está comigo...

-O que foi que você encontrou?

-Hum! A cura pro mundo meu jovem, a cura pro mundo...

-Pois divida isso conosco então! -, resolveu insistir, buscando conseguir boas risadas às custas do álcool alheio.

-Dividir? Hum... Não dá! E nem de nada adiantaria...

-Por quê?

-Porque ninguém acreditaria em mim... E conto ainda meu jovem, veja: se houvesse no mundo alguém que acreditasse que achei a cura do mundo, o mundo não precisaria mais de cura! Percebe?

O bêbado estava certo. O jovem trabalhador percebeu que também não acreditaria na cura para o mundo. Levantou-se. Foi para casa e virou dois copos de pinga pura antes de se jogar na cama.

Carta

Venho por meio desta comunicar opiniões e impressões recentes acerca do funcionamento das coisas. Na esperança de que esta manifestação seja de interesse àquele responsável pelo arquitetar do mundo, espero ilustrar rapidamente, porém em suficientes detalhes, os revézes que tenho percebido, crente de que assim medidas cabíveis possam ser tomadas na direção de melhorar a máquina do mundo.

Em primeiro lugar, destaco que o excessivo sarcasmo do universo, profundamente manifesto na natureza dos acontecimentos, não é traço de humor assim tão condizente com uma etiqueta de supremacia universal. Posso concordar que o sarcasmo tem lugar nobre dentre as formas de humor possíveis e mesmo imagináveis, porém espera-se algo ainda mais daqueles que ocupam postos assim tão importantes que podem ditar a ordem das coisas. Espera-se uma sobriedade desmedida, sem que esta seja por demais exigente.

Destaco também a imperfeição com que corações são colocados à escuridão completa para encontrar sua contrapartida. Não se procura amor, tal como as coisas são dispostas. Procura-se fé no amor. Aposta de que ele aparecerá assim do nada, de lugares em que pouco se espera. Porém ensina-se a desejar e a procurar o amor, caminho estranho que certamente jamais levará a ele. Ora, meus caros dirigentes do universo... Decidam-se por uma coisa ou outra, a fim de evitar confusões. Sem mais, agradeço a atenção.

domingo, 10 de agosto de 2008

Determinado

E se você preferisse não acordar? E se sonhar fosse tão bom que não valesse a pena arriscar o dia seguinte?

E se todos os seres nascidos quisessem voltar até antes de nascer?

E se ficar na cama fosse tão mais acolhedor que qualquer coisa que não houvesse porque levantar?

É medo ou é preguiça?

É incompetência ou é inconstância?

Eu não sei, eu não sei...

Eu sentei numa pedra alta, sobre a montanha. Olhei longe no horizonte. Como havia feito há mais de uma década.

Onde estariam todos agora?

No longe todos eram um homogêneo cimento e concreto na cidade.

E se sonhar fosse em si tão bom que não valesse a pena acodar?

Peguei meu celular. O número estava ainda gravado na agenda. Vinte e oito anos e eu nunca telefonei. Nunca. Era só agora apagar o número, e cortar essa possibilidade de sonhar diretamente na raíz.

Não consegui apagar o número. Joguei o telefone longe, tão longe quanto pude, colina abaixo. Quem sabe eu não o encontre e consiga telefonar? É só um sonho meio impossível... me deixem sonhar...