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quarta-feira, 29 de julho de 2020

No trabalho

Você tem idéia, por acaso, do quanto a vida às vezes é prejudicial à reflexão?! Kleber M. empilhou as pastas num canto da mesa, uma a uma, organizando e vendo as listas, coladas na capa com cola Prit, dos itens a verificar. A relação entre a ética de Nietzsche e a certezas científicas daquele século, pensava nisso e só nisso. Mas Kleber M. tinha um trabalho a fazer e afundado num ódio profundo ao Doutor Zanetto sabia apenas prolongar sua inatividade em fingidos trabalhinhos irrelevantes. As pastas se acumulavam, é verdade, mas essas obviedades da ineficiência são sempre enevoadas demais às verificações de uma repartição pública. A irracionalidade humana historiada nos passados mais surpreendentes de gentes que suspendem os tiros da guerra para celebrar o natal em pulos e gritos com o inimigo, e volta aos chumbos tão logo a data célebre se alonge. Pensava nisso também, Kleber M., mas era o dia de preencher a ficha de apropriação de tempo das atividades da repartição. Mastigado por nadas sucessivos, seus pensamentos acabavam digeridos por essa tripa cheia de merda que era o dia ali dentro e expelidos todos sujos num enorme cu de despropósitos.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Pão

Moreno sujo dentro de uma roupa graxada e fedenta lá estava o pequeno Cleyton pedindo a primeira moeda do dia. Que eu neguei. Um pão, sugeri em troca. Aceno sorridente com dentes e gengivas todos expostos. Entrei ao balcão da padaria e dali voltei com dois pães e cem gramas de presunto. Sumiu num sei lá onde o Cleyton, rumando direto prum sei lá onde. Matando a fome do corpo e morrendo da fome da alma. Em alguma miséria, afinal, somos todos iguais.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Corifeu

De que tamanho são os medos? Com que força é preciso que as vilências quebrem nossas mentirosas coragens para se ponham, nus, todos os medos a mostra? Para alguns, é a arma na cabeça. Para outros é a simples notícia na tevê. Para outros é o assalto sorrateiro. De si mesmo. Ou do vizinho. Ou de alguém de quem se ouviu falar.

Para ela, bastaram três pirralhos de bicicleta. Disseram estar armados. E com que força ela constestaria tamanha afronta? Suas mãos cederam antes que seus medos se soubessem ali. Um reflexo mecânico. Como quando a gente acha no chão os chinelos, logo pela manhã, e logo depois nem se lembra bem como foi que acordou. Os músculos despertam antes da mente. As mãos entregaram a mochila e o celular antes que o pavor se permitisse existir. Mas ele se permitiu. E ela não andou mais por aquelas ruas. E se escondia atrás da porta trancada, no apartamento. E palpitava de suores quando passos soavam atrás dos seus em qualquer calçada que fosse.

Pobre menina. Assim tão jovem e foram lhe roubar a mochila, o celular e a vida.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Sky

Morto, caído, destruído. Não sei como ainda respirava, essa bola de pêlos sobrando. Essa peruca velha andante. Essa arte abstrada mal feita com forma de cachorro. Tentou ficar em pé mas não saia de suas células força suficiente para manter as patas verticais, paralelas. Escorregaram. Caiu de volta aonde a gravidade lhe queria. Gravidade da terra, dos corpos, da situação. Teimosia das teimosias, parece que não lhe havia forças para terminar de morrer, e foi tomando do tempo um espaço para ir aos poucos melhorando, e melhorando. E hoje correu atrás de mim por todo o quintal. Pulando até acertar minhas costas com as patas. Mordendo minha mão antes que eu pudesse puxar suas orelhas. Está rindo de todas essas coisas idiotas que pensei nos dias em que o vi doente. É um Husky e tanto!

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Desesperado

Morena linda, busto altivo,
quadril preciso, sorriso perfeito.

Mas onde está ela?

Olhos verdes, loira fatal.
Vestido fino, quase transparente.

Mas onde está ela?

Carinhosa, toque aveludado.
Mordida provocante.

Mas onde está ELA?

Tantas outras.
Tantas nenhumas...

sábado, 31 de agosto de 2019

Mãe

Xícara, pires. Colher perpendicularmente posta.

Leite quente.

Café e aquela fumacinha de vapor indiferente a tudo, subindo, calma que dá inveja.

Azuleijos frios.

Barulho de metal contra a porcelana. Colherinha mexendo, girando, girando, girando, girando...

E ela gritava tantas coisas por dentro. Sofria o marido tê-la deixado.

Os filhos não compreenderem nada. Sofria a irmã controlar sua vida...

Sofria a casa gigante estar velha e caindo pelos cantos

pintura

telhado

goteiras

janelas

poeira

bagunça

ratos

E gritava, e gritava por dentro, músculos rígidos, berro de cançar pulmões, diafragma, até as pernas se cansavam, de tanto berrar!

Metal contra a porcelana, girando, girando, girando... Lá fora, só se ouvia isso.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Deprimido

Não há muito o que fazer quando não se acredita nos compromissos.
Vão se esvaziando todas as atividades, as ocupações.
E meus desânimos desincentivam minhas forças.
E minhas forças se minguam tristes.
E meus silêncios se emparedam.
E minhas paredes esfriam.
E meus rins se cansam.
Meus pulmões param.
Meu ar cessa.
Morro.

Não há muita poesia numa vida de dúvidas.
E minhas dúvidas engessam meus dias.
Nada acontece, há anos.
Os dias pararam.
Estou parado.
Estático.
Parado.

Outro dia quis ter outra vida,
Uma vida diferente dessa,
Uma vida com ânimos.
Uma vida de risos.
Existência feliz.
Sorrir sempre.
Olhar bom.
Feliz

A depressão é assim funda
Funda e imunda e suja
E pegajosa e oca
e infinita
pra baixo
f
u
n
d

o

segunda-feira, 21 de maio de 2018

Foi assim

- Finalmente eu fui conhece-la!

- É mesmo? Não acredito! E aí?

- Ela é linda, linda! E tão, tão... tão interessante!

- E o que aconteceu, me conta!

- Então, conversamos pouco, eu estava tímido, sabe, sei lá, leve, por um lado, e tímido por outro; duas coisas que deixam a gente quieto.

- Ué, então não conversaram muito?

- Na verdade não, porque ela tinha que trabalhar. Mas rascunhamos algumas perguntas sobre as nossas vidas, nos olhamos...

- E depois?

- Depois os anos se passaram, cada um vivendo sua vida no seu canto. Depois um morreu. Depois morreu o outro.

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Fisiologia política

Vendo o que acontece em São Paulo só posso concluir uma coisa: empatia e ética são funções orgânicas que, nos políticos, dependem de água para funcionar direito.

sábado, 23 de setembro de 2017

O riso

Ela faz o sinal da cruz toda vez que passa em frente a uma igreja. Tem dessas proximidades gestuais com o divino.
E ontem conversávamos nós três. Eu, ela e um amigo carioca. O amigo havia sido roubado. Aqui em São Paulo mesmo. Furtaram o celular dele em algum momento de distração.
- Ah rapá, mas se fosse lá no Rio... Lá não ficava assim não. Tenho um amigo que é do BOPE... era ir atrás do moleque, colocar as mãos na calçada e enfiar um chumbo em cada uma! Queria ver ele roubar de novo.
E ela riu, sonhando com um mundo em que as balas fizessem a devida justiça.
O que Deus responderia para ela após cada sinal da cruz, se existisse?

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Notas de um explorador em campo

Fui para a África desbravar desconhecimentos e surpreendices. Descobri que sob miragens das mais belas se escondia um grande e árido deserto.

E, continuando a onda de revoluções científicas, descobri que os ventos cruzam o Atlântico não só de leste para oeste mas também na direção oposta, distribuindo chuvas ao longo dessa que se chama, nome apropriado, Zona de Convergência Inter Tropical (ou ITCZ, em inglês).

A melhor parte é quando esses bons ventos se condensam e a aridez dá lugar a esse doce cheiro de chuva, que nos enchem de sorrisos. Como se a natureza abraçasse a gente tão apertado, tão de perto, que é difícil acreditar que tudo partiu de tão longe.

domingo, 26 de março de 2017

Raízes


- É como as raízes das árvores, sabe? Se a árvore cresce em uma encosta, torta, então ela precisa se retorcer toda pra acabar virando uma árvore reta. Depois, não é mais possível tirar essa árvore e colocar em um chão plano, achando que ela vai virar uma árvore reta como as outras. Eu tenho as minhas histórias. Eu tenho as minhas feridas. Faço o melhor para me tornar uma árvore reta. Mas tenho minha história. Posso fazer o melhor daqui pra frente. Mas vai sempre existir uma parte torta no tronco.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

Fotos de despedida

Foi bom ficar atrás das lentes. A concentração no trabalho de fotografar me distraiu das verdades que aconteciam ali. Treze anos frequentando o mesmo lugar. Trabalhando ao lado daquelas pessoas. Muitas vezes viajamos juntos. Agora era a despedida. Um bolo. Salgadinhos. Refrigerante e chocolates. Mas não pensei em nada disso. Pensava apenas em enquadrar as pessoas sem cortar partes de rosto, cabeça ou braços. Porque foi assim o tempo todo: concentrado em cada trabalho que tive que fazer ali, nem vi o tempo passar.

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Vulnerável

Descobri na prática o que todo brasileiro já sabe. Posso ser roubado. De repente eu chego em casa e minha televisão não é mais minha. Saiu por aí sem dar notícias. Meu computador se foi. E com ele meus textos, ideias, meus arquivos baixados. Músicas e filmes que eram tão meus. Felizmente meus livros sobreviveram. Ou infelizmente: me dou conta, no meio de um alívio até então reconfortante, que os ladrões não se interessam a mínima pelos meus títulos. Já tem um tempo mas, desde então, vivo com medo. Quero colocar trancas em tudo. Quero levar minhas coisas comigo. Neurótico. Não deixo nada em casa. O carregador do celular. A máquina fotográfica. Vai tudo comigo. Como se não pudessem me roubar na rua. Como se, no caso de roubo, fizesse sentido poder dar um último adeus.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Cadê a água?

Ele vai montar um novo negócio, e vai ser lá no terreno novo que comprou, próximo à chácara dos sogros. Decidiu furar um poço, para não gastar exageradamente com água. Furou, furou e furou. Achou que iria gastar dez mil reais. Furou, furou e furou. Nada de água. Furou, furou e furou. Já se foram trinta mil reais. E nada de água. Nossos sonhos também estão secando.

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Contabilidades

Claro meu amigo, claro. A SABESP não pode fazer um projeto que dê prejuízo. Ela precisa fazer os projetos que mais dêem lucro. Mas e a água? Qual é a prioridade de fornecimento de água para as pessoas? Não tenho nada contra os lucros financeiros, em si. Mas quando vejo que o princípio do lucro está acima da importância de fornecer água às pessoas, então sou forçado a achar que suas contas não fecharão nunca, não importa o tamanho do lucro.