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quarta-feira, 29 de julho de 2020
No trabalho
Você tem idéia, por acaso, do quanto a vida às vezes é prejudicial à reflexão?! Kleber M. empilhou as pastas num canto da mesa, uma a uma, organizando e vendo as listas, coladas na capa com cola Prit, dos itens a verificar. A relação entre a ética de Nietzsche e a certezas científicas daquele século, pensava nisso e só nisso. Mas Kleber M. tinha um trabalho a fazer e afundado num ódio profundo ao Doutor Zanetto sabia apenas prolongar sua inatividade em fingidos trabalhinhos irrelevantes. As pastas se acumulavam, é verdade, mas essas obviedades da ineficiência são sempre enevoadas demais às verificações de uma repartição pública. A irracionalidade humana historiada nos passados mais surpreendentes de gentes que suspendem os tiros da guerra para celebrar o natal em pulos e gritos com o inimigo, e volta aos chumbos tão logo a data célebre se alonge. Pensava nisso também, Kleber M., mas era o dia de preencher a ficha de apropriação de tempo das atividades da repartição. Mastigado por nadas sucessivos, seus pensamentos acabavam digeridos por essa tripa cheia de merda que era o dia ali dentro e expelidos todos sujos num enorme cu de despropósitos.
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Como eu era idiota,
Vidas Secas
domingo, 19 de julho de 2020
Pedido
- Faz uma literatura para mim?
- Você quer com vida ou sem vida?
- Depende... onde eu encontro você?
- Fico sentado na beirada das reticências só esperando para cair, sempre.
- Faz assim então, desse jeito mesmo, que eu me jogo atrás e caio com você até o fim da página.
- Você quer com vida ou sem vida?
- Depende... onde eu encontro você?
- Fico sentado na beirada das reticências só esperando para cair, sempre.
- Faz assim então, desse jeito mesmo, que eu me jogo atrás e caio com você até o fim da página.
segunda-feira, 9 de março de 2020
Passeio
Setenta e três anos depois do fim da guerra estou aqui à beira do Vístula com a improvável companhia do meu pai. Nada de bombas, de ruínas, de choro. Estamos apreciando a profunda calma da cidade. A profunda paz de caminhar por uma cidade silenciosa em que as pessoas estão apenas cuidando das suas próprias vidas. Caminhando, aproveitando os cafés e restaurantes com mesinhas na calçada neste tórrido verão.
Meu pai se impressionou ao ver as máquinas de guerra expostas. Desse avião, lemos em uma plaqueta, foram fabricados mais de cinco mil. Daquele tanque de guerra ali foram três mil unidades. Daquele canhão foram quatro mil. E meu pai, então, observou:
- E para fazerem uma dúzia de escolas para refugiados, hoje, dizem que não dá.
Meu pai se impressionou ao ver as máquinas de guerra expostas. Desse avião, lemos em uma plaqueta, foram fabricados mais de cinco mil. Daquele tanque de guerra ali foram três mil unidades. Daquele canhão foram quatro mil. E meu pai, então, observou:
- E para fazerem uma dúzia de escolas para refugiados, hoje, dizem que não dá.
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Dos diários antigos
sábado, 7 de março de 2020
Modernidade
Estou em um país da Europa. Primeiro mundo. Tudo moderno. A ciência, a tecnologia e a política da estruturação social a serviço da sociedade. Da sociedade?
Vou comprar uma passagem de ônibus. Pego o celular. Um site, outro. Cadastro. Senha. Repita o e-mail. Número do cartão de crédito. Código de segurança. Confirma.
Chego ao local do ônibus pouco antes do horário. Estou com fome. Tudo ao redor é concreto. Não há muitas pessoas por perto. Elas já sabem da pontualidade dos ônibus e não ficam chegando muito antes da hora.
Estou com fome. Penso em comer alguma coisa. Onde tem um barzinho? Não há barzinhos por aqui. Não existe coxinha no primeiro mundo. Nada de enroladinho com presunto e queijo amolecendo na umidade da estufa.
Logo vem o ônibus.
Pego o celular. No e-mail de confirmação da passagem há esses códigos quadriculados. Um código de barras só que mais complexo. O motorista toma em mãos o próprio celular e aponta a câmera para o meu. Lê o código e, assim, vê meu nome e diz meu assento: dezessete. Embarco.
Duas horas depois o ônibus sai da estrada. O motorista aproxima um microfone de sua boca e diz, em uma voz baixa, quase murmurada: parada de quarenta e cinco minutos, solicito a todos que tomem o que desejarem levar pois o ônibus será fechado para proteção dos seus bens que permanecerem a bordo, agora são quatro e treze, então retomaremos nossa viagem às quatro e cinquenta e oito.
Impossível não comparar com o Brasil. Números precisos. Matemáticas precisas. No Brasíl o ônibus pararia por "meia horinha" e partiria "lá pràs cinco".
Entro no restaurante. Há apenas duas pessoas trabalhando lá. Uma senhora no caixa do mercado e uma moça na lanchonete. Há diversas máquinas para bebidas quentes. Você insere moedas ou aproxima o seu cartão sem contato - uma espécie de bilhete único pra valer mesmo - e recebe sua bebida escolhida. A senhora no caixa tem seu trabalho automatizado também. Diz bonjour a todo mundo que chega. Passa os códigos de barra na leitura. Depois recolhe o dinheiro e dá o troco ou pergunta "cartão? insira aqui, por favor". E depois agradece, sorridente. Merci, bonne journee.
E assim segue-se. As pessoas movendo-se como peças automatizadas de um sistema maior. Insere o cartão aqui, ali. Moedas. Come, embarca. Celular. Likes. Cliques. Não se ouvem conversas. Não se ouvem risadas. Não se ouvem as vidas.
Vou comprar uma passagem de ônibus. Pego o celular. Um site, outro. Cadastro. Senha. Repita o e-mail. Número do cartão de crédito. Código de segurança. Confirma.
Chego ao local do ônibus pouco antes do horário. Estou com fome. Tudo ao redor é concreto. Não há muitas pessoas por perto. Elas já sabem da pontualidade dos ônibus e não ficam chegando muito antes da hora.
Estou com fome. Penso em comer alguma coisa. Onde tem um barzinho? Não há barzinhos por aqui. Não existe coxinha no primeiro mundo. Nada de enroladinho com presunto e queijo amolecendo na umidade da estufa.
Logo vem o ônibus.
Pego o celular. No e-mail de confirmação da passagem há esses códigos quadriculados. Um código de barras só que mais complexo. O motorista toma em mãos o próprio celular e aponta a câmera para o meu. Lê o código e, assim, vê meu nome e diz meu assento: dezessete. Embarco.
Duas horas depois o ônibus sai da estrada. O motorista aproxima um microfone de sua boca e diz, em uma voz baixa, quase murmurada: parada de quarenta e cinco minutos, solicito a todos que tomem o que desejarem levar pois o ônibus será fechado para proteção dos seus bens que permanecerem a bordo, agora são quatro e treze, então retomaremos nossa viagem às quatro e cinquenta e oito.
Impossível não comparar com o Brasil. Números precisos. Matemáticas precisas. No Brasíl o ônibus pararia por "meia horinha" e partiria "lá pràs cinco".
Entro no restaurante. Há apenas duas pessoas trabalhando lá. Uma senhora no caixa do mercado e uma moça na lanchonete. Há diversas máquinas para bebidas quentes. Você insere moedas ou aproxima o seu cartão sem contato - uma espécie de bilhete único pra valer mesmo - e recebe sua bebida escolhida. A senhora no caixa tem seu trabalho automatizado também. Diz bonjour a todo mundo que chega. Passa os códigos de barra na leitura. Depois recolhe o dinheiro e dá o troco ou pergunta "cartão? insira aqui, por favor". E depois agradece, sorridente. Merci, bonne journee.
E assim segue-se. As pessoas movendo-se como peças automatizadas de um sistema maior. Insere o cartão aqui, ali. Moedas. Come, embarca. Celular. Likes. Cliques. Não se ouvem conversas. Não se ouvem risadas. Não se ouvem as vidas.
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Sociologia
sexta-feira, 6 de março de 2020
Nuvens
Eu tinha os olhos fixos no palco. Nela.
Parte de mim achava ridículo como ela se mexia feito boneco de posto de gasolina, jogando os braços e a cabeça para os lados como se aquele subsolo velho de paredes esfarelando estivesse sendo invadido por um Katrina. Wind. Wiatr.
Parte de mim entendia que se mexer daquele jeito livre e prazeroso, na frente de estranhos, era uma coragem maior do que eu jamais teria. Eu sentia inveja. Não era um papel. Não era ma interpretação. Não era o espelho das expectativas alheias. Era ela. De dentro pra fora.
Aquela liberdade brilhava uma luz que fazia entender o quão preso eu estava em mim.
Parte de mim achava ridículo como ela se mexia feito boneco de posto de gasolina, jogando os braços e a cabeça para os lados como se aquele subsolo velho de paredes esfarelando estivesse sendo invadido por um Katrina. Wind. Wiatr.
Parte de mim entendia que se mexer daquele jeito livre e prazeroso, na frente de estranhos, era uma coragem maior do que eu jamais teria. Eu sentia inveja. Não era um papel. Não era ma interpretação. Não era o espelho das expectativas alheias. Era ela. De dentro pra fora.
Aquela liberdade brilhava uma luz que fazia entender o quão preso eu estava em mim.
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Auto-Ajuda Terceirizada,
Cenas
quarta-feira, 4 de março de 2020
Ainda pulsa
Não detectamos falta de oxigênio mas constatou-se redução nas risadas.
Não observamos variações na concentração de hemácias mas notamos que faz tempo que não canta em casa.
Não foi medida nenhuma variação no número de glóbulos brancos por milímetro cúbico, porém observa-se que anda lendo menos.
Não foi medida nenhuma variação de temperatura corporal mas há uma redução substancial no somatório de minutos em que troca olhares com outros.
É grave. Muito grave. Está próximo de um estado vegetativo.
Não observamos variações na concentração de hemácias mas notamos que faz tempo que não canta em casa.
Não foi medida nenhuma variação no número de glóbulos brancos por milímetro cúbico, porém observa-se que anda lendo menos.
Não foi medida nenhuma variação de temperatura corporal mas há uma redução substancial no somatório de minutos em que troca olhares com outros.
É grave. Muito grave. Está próximo de um estado vegetativo.
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Considerações jogadas
terça-feira, 3 de março de 2020
A caneta quebrada
Voltei para casa arrastando pernas pesadas.
Pernas amassadas de iniciativas fracassadas.
Pernas desorientadas pelos tempos e sonhos.
Joguei as pernas no sofá.
Olhei em volta.
Olhei a pilha de papéis.
Lembrei dos outros tantos que se foram.
Cartas. Contos. Poemas. Teses de mestrado, doutorado. Artigos para o jornal local. Estatuto para a ONG.
Arrastando-me pelo tapete como se já tivesse terminado a dose noturna de whisky cheguei até a escrivaninha.
Abri a gaveta. Peguei a caneta.
Corpo metálico, prateado. Presente de uma amiga que foi morar na França.
Terra de gente que escreveu textos filosóficos. Teriam usado uma caneta igual? Não se trata de uma medíocre esferográfica. Trata-se de uma caneta tinteiro. Dessas com ponta do tipo "pena". Dessas que tem obrigação de escrever coisas belas.
Olhei a forma curva de suas pontas. O minúsculo sulco por onde escoa a tinta. Que outras coisas essa caneta teria escrito se tivesse encontrado as mãos de alguém talentoso?
Ali ao lado, no chão do quartinho de bagunça, um martelo.
Não hesitei. Foi no chão mesmo.
Um golpe certeiro e aquela peça de metal havia perdido a simetria perfeita de sua forma. Morriam ali minhas palavras futuras.
Depois que elas apodrecessem seria hora de adubar as folhas com novas tintas e torcer para chover na hora certa.
Pernas amassadas de iniciativas fracassadas.
Pernas desorientadas pelos tempos e sonhos.
Joguei as pernas no sofá.
Olhei em volta.
Olhei a pilha de papéis.
Lembrei dos outros tantos que se foram.
Cartas. Contos. Poemas. Teses de mestrado, doutorado. Artigos para o jornal local. Estatuto para a ONG.
Arrastando-me pelo tapete como se já tivesse terminado a dose noturna de whisky cheguei até a escrivaninha.
Abri a gaveta. Peguei a caneta.
Corpo metálico, prateado. Presente de uma amiga que foi morar na França.
Terra de gente que escreveu textos filosóficos. Teriam usado uma caneta igual? Não se trata de uma medíocre esferográfica. Trata-se de uma caneta tinteiro. Dessas com ponta do tipo "pena". Dessas que tem obrigação de escrever coisas belas.
Olhei a forma curva de suas pontas. O minúsculo sulco por onde escoa a tinta. Que outras coisas essa caneta teria escrito se tivesse encontrado as mãos de alguém talentoso?
Ali ao lado, no chão do quartinho de bagunça, um martelo.
Não hesitei. Foi no chão mesmo.
Um golpe certeiro e aquela peça de metal havia perdido a simetria perfeita de sua forma. Morriam ali minhas palavras futuras.
Depois que elas apodrecessem seria hora de adubar as folhas com novas tintas e torcer para chover na hora certa.
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020
Algumas pessoas começavam a cantar junto, eu podia ouví-las. O ambiente estava cheio mas não estava lotado. Cheio sem ser muvucado. Eu não precisava mais olhar. Fechava os olhos e cantava sem me importar com a voz enferrujada depois de tantos meses quieto olhando para livros e assistindo documentários no YouTube. Quando abri os olhos a vi. Pulava e sorria e jogava os braços para o alto. Era feliz como se não pertencesse a esse povo sério e introvertido. Não que as pessoas aqui não dancem. Mas ela não era do nosso grupo. Simplesmente havia se aproximado e dançava e sorria. Que tipo de gente faz isso?
Depois da música voltamos todos às mesas. Ela estava sentada atrás da gente. Bancos de madeira. Conversamos. O que fazemos aqui, os estudos, os trabalhos, os idiomas, onde conhecemos nossos amigos. E aí eu quis saber de onde ela veio.
- Você é daqui da cidade mesmo?
- Não. Vim pra cá há dois anos.
- Veio estudar?
- Não, eu vim fazer tratamento. Estou com câncer. Os médicos dizem que talvez eu viva dois anos. Eu acho que vou viver mais. Mas não sei quanto. Quando você fez exame de sangue pela última vez? Amigo, vá fazer um exame de sangue! Eu estaria bem melhor se tivesse descoberto antes.
Ela era a pessoa mais feliz ali. Sorria, dançava com as pessoas, cantou sorrindo e rindo diversas músicas. Brindou jarras de cerveja com diversas pessoas.
E eu a olhava e olhava as pessoas em volta. Sem saber direito o que se passava dentro de cada um. De suas psicologias e de suas biologias. Mas eu via o que aflorava para além da superfície transbordando em volta. E era bem claro de quem emanava mais vida ali.
Depois da música voltamos todos às mesas. Ela estava sentada atrás da gente. Bancos de madeira. Conversamos. O que fazemos aqui, os estudos, os trabalhos, os idiomas, onde conhecemos nossos amigos. E aí eu quis saber de onde ela veio.
- Você é daqui da cidade mesmo?
- Não. Vim pra cá há dois anos.
- Veio estudar?
- Não, eu vim fazer tratamento. Estou com câncer. Os médicos dizem que talvez eu viva dois anos. Eu acho que vou viver mais. Mas não sei quanto. Quando você fez exame de sangue pela última vez? Amigo, vá fazer um exame de sangue! Eu estaria bem melhor se tivesse descoberto antes.
Ela era a pessoa mais feliz ali. Sorria, dançava com as pessoas, cantou sorrindo e rindo diversas músicas. Brindou jarras de cerveja com diversas pessoas.
E eu a olhava e olhava as pessoas em volta. Sem saber direito o que se passava dentro de cada um. De suas psicologias e de suas biologias. Mas eu via o que aflorava para além da superfície transbordando em volta. E era bem claro de quem emanava mais vida ali.
sexta-feira, 3 de janeiro de 2020
Corifeu
De que tamanho são os medos? Com que força é preciso que as vilências quebrem nossas mentirosas coragens para se ponham, nus, todos os medos a mostra? Para alguns, é a arma na cabeça. Para outros é a simples notícia na tevê. Para outros é o assalto sorrateiro. De si mesmo. Ou do vizinho. Ou de alguém de quem se ouviu falar.
Para ela, bastaram três pirralhos de bicicleta. Disseram estar armados. E com que força ela constestaria tamanha afronta? Suas mãos cederam antes que seus medos se soubessem ali. Um reflexo mecânico. Como quando a gente acha no chão os chinelos, logo pela manhã, e logo depois nem se lembra bem como foi que acordou. Os músculos despertam antes da mente. As mãos entregaram a mochila e o celular antes que o pavor se permitisse existir. Mas ele se permitiu. E ela não andou mais por aquelas ruas. E se escondia atrás da porta trancada, no apartamento. E palpitava de suores quando passos soavam atrás dos seus em qualquer calçada que fosse.
Pobre menina. Assim tão jovem e foram lhe roubar a mochila, o celular e a vida.
Para ela, bastaram três pirralhos de bicicleta. Disseram estar armados. E com que força ela constestaria tamanha afronta? Suas mãos cederam antes que seus medos se soubessem ali. Um reflexo mecânico. Como quando a gente acha no chão os chinelos, logo pela manhã, e logo depois nem se lembra bem como foi que acordou. Os músculos despertam antes da mente. As mãos entregaram a mochila e o celular antes que o pavor se permitisse existir. Mas ele se permitiu. E ela não andou mais por aquelas ruas. E se escondia atrás da porta trancada, no apartamento. E palpitava de suores quando passos soavam atrás dos seus em qualquer calçada que fosse.
Pobre menina. Assim tão jovem e foram lhe roubar a mochila, o celular e a vida.
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Dos diários antigos,
Dos livros que nunca escrevi,
No dos outros...,
Vidas Secas
segunda-feira, 30 de dezembro de 2019
Pradópolis
É que o tempo da noite, deslisando sobre o sono, corre mais rápido.
É que a urgência do amor, transpirando saudades, morde mais forte.
Yara andou por entre postes e calçadas ignorando o medo da escuridão e dos escuros, medos esses sempre tão seus, tão incontornáveis.
Não avisou a mãe. Não pediu ao pai. Não acordou o cachorro.
Chinelos. Frio. Passos firmes.
Algumas poucas considerações lógicas pulsavam em sua mente, reféns de mil emoções explosivas.
Chegou em frente à casa. Era o quarto da frente, a janela de cima.
- Ei, ei! - murmurou alto, para ele ouvir.
A incredulidade abriu a janela.
- Eu vou! Amanhã eu vou sim! Espere lá na rodoviária, que eu vou sim!
E voltou para casa. Sem acordar o cachorro, o pai, a mãe ou o vizinho. E sem conseguir fazer dormir suas imaginações mais ousadas.
É que a urgência do amor, transpirando saudades, morde mais forte.
Yara andou por entre postes e calçadas ignorando o medo da escuridão e dos escuros, medos esses sempre tão seus, tão incontornáveis.
Não avisou a mãe. Não pediu ao pai. Não acordou o cachorro.
Chinelos. Frio. Passos firmes.
Algumas poucas considerações lógicas pulsavam em sua mente, reféns de mil emoções explosivas.
Chegou em frente à casa. Era o quarto da frente, a janela de cima.
- Ei, ei! - murmurou alto, para ele ouvir.
A incredulidade abriu a janela.
- Eu vou! Amanhã eu vou sim! Espere lá na rodoviária, que eu vou sim!
E voltou para casa. Sem acordar o cachorro, o pai, a mãe ou o vizinho. E sem conseguir fazer dormir suas imaginações mais ousadas.
segunda-feira, 23 de dezembro de 2019
Aeroclube
Horas e tantas horas ali, sentado com os pés na grama. Mãos no bolso. Mãos sobre as coxas. Braços cruzados. Olhando e olhando e olhando mais e mais. Os aviõezinhos vinham e iam e ficavam. Ficavam ali tão perto, no pátio, refletindo o sol. Balançando quando vento era um pouquinho mais. E ele ali, tão poucos anos e tantas imaginações sem fim. Aquelas asas impossíveis todas tão perto e ele ali, tão longe sonhando!
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Dos diários antigos
sábado, 14 de dezembro de 2019
Consolação
Perguntei aos céus porque é que eu era o escolhido naquela noite para sofrer. Uma nuvem cuspiu em mim e os degraus da calçada me golpearam ao chão. Hesitei. Malditos sejam. Acho que os deuses que me ajudariam foram para Paris, lá há mais o que fazer, sempre há. Sempre teremos Paris? Minha vida não é um filme. Um anjo desvia de mim na calçada e esbraveja xingamentos pelo incômodo que causo. Durmo, esqueço.
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Dos diários antigos
quarta-feira, 20 de novembro de 2019
Sé
A vida sobre rodas se foi. Se foi a sessenta por hora, e não precisava mais que isso. Uma discussão. Um coração partido. Um ego ferido. Uma alma insegura. Uma vida sofrida. Um futuro derretido. Os trilhos. O trem vindo. Se jogou. E por meia hora o sistema todo parou! E as pessoas se somaram aos montes pela estação e também pelas estações vizinhas. E todos preocupados com o horário de chegar em casa. De ligar a televisão. De tomar banho antes do sono. De desligar o cansaço horrível da sexta-feira. Os trilhos, o trem vindo, se jogou.
Naquele dia uma vida se foi mas confesso que eu, vivo, encontrei no caos boas atrações. Nessas situações as pessoas dão-se mais às conversas, e assim foi que fiz novos amigos no meio de todo o susto que era a estação Sé. Um contador, um ex-repórter. Conversamos sobre o acidente, sobre metrô, mas também sobre nossos empregos, o mercado para cada uma de nossas profissões, a importância de cursos extras, os cuidados que temos que ter para não sermos explorados no mercado de trabalho, e assim vai. A vida, toda incontida, continua.
Naquele dia uma vida se foi mas confesso que eu, vivo, encontrei no caos boas atrações. Nessas situações as pessoas dão-se mais às conversas, e assim foi que fiz novos amigos no meio de todo o susto que era a estação Sé. Um contador, um ex-repórter. Conversamos sobre o acidente, sobre metrô, mas também sobre nossos empregos, o mercado para cada uma de nossas profissões, a importância de cursos extras, os cuidados que temos que ter para não sermos explorados no mercado de trabalho, e assim vai. A vida, toda incontida, continua.
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quarta-feira, 30 de outubro de 2019
Invisíveis II
Na pastelaria aqui perto da estação de trem a coisa ainda se passa como há décadas. Os japoneses atrás do balcão, os pedidos marcados em papeizinhos, o ritmo do serviço impressionando qualquer gerente moderno de fast-food. Pedi meus pastéis. Meu caldo de cana com limão. E logo após ser servido, vi uma apresentação notável: os guardanapos de papel haviam acabado. Eles nunca ficam apenas empilhados, ficam dispostos em uma espiral de papel assombrosamente perfeita. Vi os papéis serem repostos. No meio de toda a correria, lá foi seu Yoshiro pegando a pilha de papéis com a mão, e rodando os dedos ao redor como que num passe de mágica, e eis que em segundos a obra de arte havia nascido. Ninguém mais na cidade seria capaz dessa perfeição, muito menos em tão pouco tempo. Um espetáculo silencioso, gratuito, quase secreto...
Invisíveis
O navio vai se aproximando, lento mas decidido. Milhares de toneladas movendo-se sobre o atlântico, nada pode detê-lo. A pequena lancha é eclipsada em sua pequenez, mas nem por isso menos decidida. Manobra ao redor do navio até que os dois estão lado a lado. A velocidade é a mesma. Século vinte e um, radares modernos, comunicação por satélite... E o que está para acontecer aqui bem poderia ser uma cena de milênios atrás. Por sobre o grande costado, marinheiros descem uma escada de cordas, bem ao lado da lanchinha. Geraldo, o chamado "Prático", está nessa profissão há anos. Prepara-se, na beira da lancha, para saltar para a escada. Um erro aqui e ele pode cair ao lado do grande navio. Se der a sorte de não ser esmagado, terá ainda o azar de estar em uma região muito turbulenta, podendo até ser sugado para baixo do navio, para as hélices. Ele salta. Um dos pés perde-se no vazio. Agarra os degraus com as mãos. O outro pé acha uma beirada de apoio. Cuidadoso, vai subindo. Daqui até o porto, o navio manobrará sob suas ordens, com o capitão ao lado, observando...
sábado, 19 de outubro de 2019
Wired
Lá na Eslováquia, tão longe, tão longe.
Em Ribeirão Pires, seguindo de trem daqui...
Lá na Grécia, à noite, na frente de uma tela. Luz do quarto apagada. Claridade do monitor destacando alguns contornos do rosto.
Na Polônia. Quem diria, na Polônia... Um contorno de riso suave no rosto jovem, ao ler os elogios doces vindos de tão longe.
Mundo bom esse em que se pode exportar amor, agrados e sorrisos pra tão longe.
Em Ribeirão Pires, seguindo de trem daqui...
Lá na Grécia, à noite, na frente de uma tela. Luz do quarto apagada. Claridade do monitor destacando alguns contornos do rosto.
Na Polônia. Quem diria, na Polônia... Um contorno de riso suave no rosto jovem, ao ler os elogios doces vindos de tão longe.
Mundo bom esse em que se pode exportar amor, agrados e sorrisos pra tão longe.
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terça-feira, 15 de outubro de 2019
Impulsos
As pessoas oscilam entre impulsos irresistíveis e maremotos de inseguranças das mais terríveis. A Priscila mandou um e-mail pro cara, chamou ele pra sair, ele respondeu, disse que sim, e ela nunca mais escreveu pra ele. E ela fica triste que ele não escreve um e-mail pra ela. E nada no mundo vai convencer a Pri a escrever. E eu fico pensando, aqui, se o tal cara também não está lá, só esperando uma resposta dela, e pensando "droga, acho que ela desencanou". Essa coisa de "talvez" é uma areia movediça que traga as pessoas pra suas masmorras internas, tranca o cadeado e joga a chave longe.
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sexta-feira, 11 de outubro de 2019
Festa
Tá certo que meus ânimos voavam longe por terrenos abstratos demais perto da rotina mundana e casual dos últimos dias.
E que o ambiente era de uma alegria pura, todos dançando, conversando, som alto e sorrisos.
Mas como ficar só ali? Eu via um senhor e uma senhora dançando, e pensava na vida inteira, da solidão às famílias gigantes, em todos os espectros. A humanidade tinha ali um contra-argumento veemente contra guerras e intolerâncias. Porque aquelas pessoas estavam ocupadíssimas sendo felizes e nada mais, e era bom. Valia a pena.
E ela dançando... Linda.
Há injustiça em tentar descrever? Talvez sim.
Deus deve tê-la concebido antes de todo o resto. A viu dançando e pensou que a obra valeria a pena. E que deveria haver toda uma humanidade em volta para poder apreciar também.
E se esse deleite todo de apreciar essas coisas não fosse a resposta final para todas as filosofias que já minuciaram sobre os objetivos da vida, o que mais seria?
E que o ambiente era de uma alegria pura, todos dançando, conversando, som alto e sorrisos.
Mas como ficar só ali? Eu via um senhor e uma senhora dançando, e pensava na vida inteira, da solidão às famílias gigantes, em todos os espectros. A humanidade tinha ali um contra-argumento veemente contra guerras e intolerâncias. Porque aquelas pessoas estavam ocupadíssimas sendo felizes e nada mais, e era bom. Valia a pena.
E ela dançando... Linda.
Há injustiça em tentar descrever? Talvez sim.
Deus deve tê-la concebido antes de todo o resto. A viu dançando e pensou que a obra valeria a pena. E que deveria haver toda uma humanidade em volta para poder apreciar também.
E se esse deleite todo de apreciar essas coisas não fosse a resposta final para todas as filosofias que já minuciaram sobre os objetivos da vida, o que mais seria?
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quarta-feira, 2 de outubro de 2019
Carisma
Ele é um cara legal, todos gostam dele.
No meio das pessoas, as conversas fluem, nascem como se não houvesse outra opção para a Existência.
- Ele não é só doido, ele é meio que um personagem!
Compartilho da opinião do Thiago. Ele é um personagem. Ninguém ri daquele jeito, nem ele. Só o personagem dele. Alegre de uma alegria que contagia.
As pessoas se aglomeram em volta para ouvir qualquer trivialidade que seja. O que importa é que seja contada por ele.
No meio das pessoas, as conversas fluem, nascem como se não houvesse outra opção para a Existência.
- Ele não é só doido, ele é meio que um personagem!
Compartilho da opinião do Thiago. Ele é um personagem. Ninguém ri daquele jeito, nem ele. Só o personagem dele. Alegre de uma alegria que contagia.
As pessoas se aglomeram em volta para ouvir qualquer trivialidade que seja. O que importa é que seja contada por ele.
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sábado, 21 de setembro de 2019
Estúdio
Ele chegou cedo. Ficou sentado num canto, do lado da mesa de som, de frente para o palco. Pessoas foram chegando. Em casais, em grupos. Ele olhando. Batucando na perna, na bota, e olhando. E a banda seguia tocando músicas e mais músicas. As pessoas ouviam, dançavam, olhavam, se beijavam, se conversavam, se misturavam. E ele ali, olhando. Ansioso, o tempo não passava nunca. Desesperado, o tempo passava rápido demais.
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