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segunda-feira, 27 de julho de 2020

Das fugas

Quantas vezes fugi?
Fugi para outras mesas.
Fugi para outros abraços.
Fugi para outros boa noites.
Fugi para bilhetes na porta da geladeira.
Fugi para outras cidades.
Fugi para outros trabalhos.
Fugi para o céu.
Fugi pelas estradas.
Fugi para o outro lado do mundo.
Fugi para outras músicas.
Fugi para outros livros.
Fugi para outras roupas.
Fugi para outros amigos.
Fugi para outras famílias.
Fugi para outros continentes.
Fugi para outros idiomas.
E riem na bagagem todos meus infernos.
Demônios tatuados fundo na minha solidão.

sábado, 25 de julho de 2020

Presente

Curioso que esta palavra tenha esses dois sentidos. Um presente como algo que se recebe de boa vontade de outra pessoa ou mesmo das circunstâncias. Um presente de aniversário. Um presente de Deus. Um presente do acaso. E presente também enquanto essa pontual e misteriosa fronteira entre passado e futuro. O instante presente. É uma coisa notável que o futuro seja infinito, o passado seja infinito, mas que a gente esteja preso no instante presente durante toda nossa existência. Já fiquei pensando se de fato existe essa coisa de passado e futuro ou se é tudo uma imaginação nossa, uma abstração. Aí percebi que nossas palavras não dão conta de investigar devidamente esses desdobramentos da existência. Porque existir é por definição um verbo no presente. Só existe o que é e o passado já não é, o passado foi. O passado não existe. O passado existiu e agora já se perdeu. Só sobrevive pelas marcas que deixou no presente. O que nos leva de volta ao encontro das palavras presente (de aniversário) e Presente (instante de tempo) que aqui diferencio apenas por meio de uma letra maiúscula (por falta de uma distinção melhor).
O Presente é o nosso presente.
Há ainda um outro uso, esse ainda mais curioso, e que talvez tenha algo a elucidar nessa questão. O uso da palavra em "fazer-se presente" Fazer-se presente ou Presente? Ou ambos?
Fazer-se presente, com p minúsculo, parece até arrogante. Fazer-se algo que seja visto como um agrado gratuito aos outros.
Fazer-se Presente, com P maiúsculo, pode ser visto como simplesmente manter-se vivo se a sua interpretação for a das mais frias e literais. Porém se você não está Presente, onde é que está? Aqui percebemos que nossa atenção, nossa energia mental, pode devanear facilmente a outros domínios. Precisamos dominar essas tendências para nos localizarmos onde realmente as coisas podem acontecer: o tempo Presente.
Fazer-se presente no Presente é um presente que você pode dar a si mesmo. Pratique.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Um talvez

Sou louco com uma sazonalidade indefinida, já aí uma contradição saborosa cheia de desacertos. Em algumas noites estou mais perto de certos imaginários. Noutras sou mais amordaçados pelas preguiças de existir. Tenho rascunhos jogados em meu computador em pastas que escondem uma bagunça virtual que um quarto não suportaria, fosse tudo aquilo papel jogado. Sou rascunhos talvez em um sentido mais amplo.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Outsider

Eu não pertenço a nada. É minha tragédia. É o resumo da minha vida. E é meu mérito também. Mas não porque seja um mérito em si. Antes por ser apenas uma característica primitiva, irremovível, inerente à minha pessoa, tão fundamental que tudo de ruim e de bom que me aconteça pode ser, de um jeito ou de outro, reduzido à essa origem. Não sou institucionalizável. Não consegui me comprimir ao que exigiam de mim as profissões que tentei. Não pertenço a país nenhum. Meus documentos são antes equívocos que constatações. Não me defino nem mesmo como escritor, essa vagabunda profissão de não exercer nada além de delírios. Não que não me faltem delírios. Mas transformá-los em profissão exige disciplina, exige domá-los. De algum jeito, louco e inconsequente como todo o resto, rejeito submetê-los a tal atrocidade. Delírios domados já não são tão delirantes.

Mas o pior, é o mais assustador, é que delírios domados já não são capazes de encontrar sua própria verdade: curvaram-se à loucura que criou os moldes de sua dominação.

É essa a dor do parto: permanecer louco como único modo de não sucumbir à loucura dos outros.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Tudo

E foi no meio de um churrasco de improviso, com música de improviso, que me ensinaram que tudo é arte. É arte um belo quadro. É arte uma bela música. Mas é arte uma parede bem feita. É arte um software bem bolado por um programador nerd de óculos sem graça e camisa pouco criativa. É arte ali onde a criatividade toca. É arte ali onde um indivíduo mergulha na atividade levando seu trabalho um passo além, transformando pensamentos em coisas quaisquer capazes de ficar, ou de ao menos passar tocando outras vidas. Como a arte da música que é tocada na hora, sem passar pela cristalização da partitura. Arte que saiu ao mundo para quem estava ali a apreciar. Tudo é arte, a recusa a seguir caminhos óbvios. O impulso incontrolável de inserir alguma pessoalidade no mundo.

sábado, 9 de novembro de 2019

Wild

Tô nem aí pra solução dos problemas do mundo. De que adianta? Talvez eu não seja competente. Mas, talvez, mais que isso, resolver os problemas do mundo não seja algo pra quem quer resolver os problemas do mundo. Talvez, considerando toda a sociologia, faz algo de útil aquela pessoa cuja vida a leva a fazer algo de útil. É, sem muito livre-arbítrio. Tudo bem, o Obama trilhou o caminho dele com muita garra, bla bla blá, mas ele tinha fibra pra isso e isso vinha de algum lugar, né? Eu não tenho. Eu sou feliz assim, quieto. Eu fico aqui, escrevo. Ando pelas ruas, converso com as pessoas, vejo confusão e corro. Corro pra um lugar onde eu possa ficar tranquilo, ler meus livros, conversar com pessoas legais, ouvir minhas músicas. Faço muito pela humanidade cuidando para que eu seja feliz. E para que aqueles ao meu redor sejam felizes. Que parece pouco, que parece um desleixo, mas que, se feito por todos, resolveria tudo, não é? E quanto a escrever, não quero um épico. Não quero a obra final. Gosto do som que os dedos fazem ao bater nas teclas, então continuo batendo nas teclas. Nada mais. Precisa de mais conteúdo? Gosto do desenho das letras aparecendo na tela. Então escrevo e as letras vão aparecendo na tela. E quando leio, gosto dos pensamentos ecoando dentro da minha cabeça. Então leio, sobre o que for. Sexo, política, ciência, sociologia, romances, mistérios, dramas, investigações policiais. Não importa, importa? Importa é sentir o peso de um livro nas mãos. Importa é ter a sensação de que quem escreveu estava fazendo algo de que gostava, até que se fique quase que com inveja, morrendo de vontade de se sentir assim também, entende? Percebe que estou feliz? E que, por mim, que se dane o resto do mundo?

sábado, 26 de outubro de 2019

Caixas

Disse o psicólogo James Hillman, autor de "The Blue Code" e "The Force of Character", dentre outros:

"I don't think anything changes until ideas change."

Essa é uma questão que se desdobra em inúmeros níveis.

Comecemos superficialmente. As coisas mudam por quê? O que causam as mudanças? Forças da natureza, iniciativa humana, e por aí adiante, segue-se a conversa.

Depois, reconhecemos que se a tal frase atém-se às coisas que mudam devido às mudanças de idéias, no mínimo devemos admitir que podemos apenas considerar aqui as coisas que de alguma forma ligam-se à atividade humana, pois longe dos humanos não haverá nenhuma idéia a persistir ou a mudar. Quase invertendo o raciocínio, mas ainda sem o fazer, concluímos por uma definição do próprio conceito de "mudança": é o fluxo de eventos da natureza que tem seu curso alterado por alguma interferência humana. Fica ainda aberta a questão sobre essas mudanças dependerem ou não da mudança de vontade nos humanos. Pode uma mentalidade não-alterada de repente protagonizar alguma mudança no mundo? Somos sempre conscientes de nossas escolhas, e de suas conseqüências? Não precisamos ser infalíveis em nossas predições para inserir mudança no mundo: ainda que os fatos corram numa direção totalmente adversa da esperada, infligimos ao mundo o estopim da mudança.

Finalmente, saltando para um nível metafísico mais profundo e agora sim revertendo o aparente objetivo inicial da frase do senhor Hillman: não seriam todas as mudanças nada mais que mudanças de idéias? Quer dizer, não importa o que aconteça com o mundo, EFETIVAMENTE, para todos os seres humanos, nada mudou enquanto não houver uma mudança delineável em suas percepções, em suas idéias. Não mudamos o mundo por conta da mudança no mundo em si, mas sim para legitimar a mudança em nossas idéias que tanto desejamos. Somos nossa mente, e toda nossa existência gira em torno de cuidar da sua manutenção e de manobrar o mundo para que ela tenha as percepções e idéias que deseja.

sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Who else

Could it be true that Edgar Allan Poe killed the poor Mary Rogers? The twnety-one years old girl was found with her hands tighted on her back when the body was found on the Hudson river. It was then the year 1841.

No matter if this is true or not, we are left with this consideration: what's really fiction among all the fictious stories we are left with? When it comes to aliens, vampires, witchcraft and so, it's easy to use the very laws of nature as a judge of the author's creativity. But what about strange stories that, no matter who improbable, are still plausible?

Sitting here, looking toward the horizon far away in this nice and soft noon, I feel that in fact I like these doubts. I like living with some possibilities in my mind instead of a bunch of strictly defined facts. It reminds me that I, myself, am not condemned to let all my imaginations forever locked inside. Some of them can come out, the world allowing or not, knowing or not, caring about it or not.

Nature is a very gentile hostess that allows us more than we imagine at first...

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Fill in the blanks

Acordo mergulhado num tempo que me engole

Me digere em pensamentos de longe,

Em vontades de outras coisas

Demora-se a escolher a própria vida, e a vida escolhe

Carreira brilhante, a tua

Futuro próspero vai ter!

Todos dizem, todos olham com uma certa inveja

Eu sem entender. Sem sentir o mesmo

Por que não vejo em mim o mesmo eu que vêem os outros?

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Primeira aula

Aula de escrita, de literatura. Por que não? A idéia pareceu tão interessante, organizar um pouco as idéias...

O que levar na primeira aula? Nada? Com tantos textos escritos na gaveta? Vou escolher alguma coisa, sei que vou. E se não gostarem? E se não for bem assim que a aula funciona? Não é melhor deixar para depois, ir hoje só como um ouvinte curioso para depois pegar o esquema melhor?

Não, que fiquem os receios pra lá. Vou levar alguma coisa. Vou mostrar um pouco de mim e, se tiver que mudar, que saibam todos de onde estou partindo. Uma carta de amor? Um pequeno conto que escrevi sobre os bêbados que vi na rua? Meus secretos registros de que não tenho pudores com assuntos sexuais? O que vou lavar?

Poesia escrevo poucas, mas há um punhadinho delas também. E se rirem do meu pobre vocabulário?

Páginas dos meus diários? Registros super pessoais e nada imaginativos, registros do que a vida me deu, e não do que dei a ela... Valem também?

Há algumas centenas de fragmentos na gaveta. Cada um vindo de um passado diferente. De isolamento. De festas. De lágrimas e amores. Tantas diferenças. Tantas coisas que escolhi e lapidei e outras tantas que de modo algum controlei.

Fico olhando essas lascas de passados inacabados e pensando nos novos colegas que logo vão me ouvir. Quem quero ser hoje?

terça-feira, 15 de outubro de 2019

segunda-feira, 14 de outubro de 2019

Efeitos e meios

Ah, quantos protestos bobos pelo meu expresso ateísmo! Me deixem, me deixem, e pensem por um minuto...

O que lhes causa indignação nessa discussão sobre Deus é antes a vontade que repousa no coração de vocês de que Ele exista mesmo do que qualquer evidência irrefutável e incontestável de alguma manifestação.

E quanto ao bem estar ao rezar? E quanto à curas milagrosas de pessoas que têm fé?

Então vamos esclarecer uma coisa: uma coisa é caracterizar um determinado EFEITO no mundo natural. Outra coisa é ponderar sobre os mecanismos e a natureza subjacente da realidade que foram responsáveis pela ocorrência desse efeito.

Pessoas com fé recuperam-se melhor. Têm uma vida melhor. Claro, estamos considerando aqui as pessoas simpáticas que têm suas vidinhas tranqüilas e tal, não religiosos fundamentalistas que se explodem ou guerreiam com outras religiões. Enfim.

E daí? O cara acredita em Deus e se recupera mais rápido, logo Deus existe? Negativo! O que isso prova é o efeito benéfico DA CRENÇA em Deus, não a existência de Deus em si. Um ateu com uma postura positiva com relação à vida certamente experimentará efeitos benéficos também.

Além disso, pessoas religiosas tendem a viver em ambientes gregários dinâmicos. Reuniões na igreja, etc etc... Ora, a qual ser humano o convívio social faz mal?

É preciso distinguir claramente, nos efeitos observados, os limites das extrapolações que se pode fazer ao tentar explicar suas naturezas.

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Oferta

Ontem eu descobri que sou descartável
E doeu, e entristeceu, e vergou meus ânimos até que tocassem o chão
E olhando a esse rebuliço de humores
Pensativo, pergunto à minha sombra: por que?
Descartáveis somos todos, não somos?
Descartáveis somos todos
Venerável seja essa rara espontaneidade
De deixar pra lá sem delongas
De esquecer sem maiores justificativas
Você é raro, é único
E todo mundo é.
Nessa abundância de raridades insubsituíveis
Há sempre um novo raro
Todos descartáveis

domingo, 21 de julho de 2019

Das vozes

Eu amo cantar. Nem sei explicar. Não é um estilo específico. Não é por dinheiro porque não é nem nunca foi meu trabalho. Só lembro que desde criança tinha uns microfones de plástico e ficava cantarolando por aí. Gosto é da mecânica da coisa. De sentir o diafragma forçando o ar pra fora, a voz saindo, ora apaixonada ora revoltada como se eu fosse um deus a parir humores.


Mas quem vive de cantar? Uns poucos sortudos. Filhos de outros cantores que já ganhavam afagos de empresários muito antes de entender o que é uma conta bancária. Ou uns gênios que nasceram prontos sabe-se lá como. Esses caras que tem uma afinação perfeita e cantam óperas e cujas vozes variam vinte oitavas e atingem duzentos decibéis. E eles têm apenas seis anos. Vão a programas de TV e ganham prêmios até as prateleiras não aguentarem mais.

Eu não sou nada disso. Gostava é de ficar fazendo escândalos na sala ou no quarto, me esgoelando. Eu sempre me senti bem cantando, mas de que importa essa introspecção se o resultado objetivo é não lá muito melhor do que uma galinha sob lenta e sádica tortura?


Eu segui para a vida entendendo que minha paixão era uma distração e mergulhei em infinitos conflitos com todas as paixões que me distraíram.


Os estudos, os trabalhos, as coisas sérias. Infinitas coisas sérias. Tudo parece ser mais sério e mais importante e mais urgente que algo que não é mais que uma paixão íntima e pessoal. Mas nada nos falta tanto.

Viajava a trabalho e, claro, não podia ficar me esgoelando nos hotéis, nas reuniões ou nos táxis. Hoje me arrependo amargamente dessa falta de loucura. Esse comedimento que me corroeu a vida pouco a pouco.


Em busca de uma carreira que desse portas a esse futuro que todos entendem que é futuro, passava noites enchendo páginas e páginas e páginas com os exercícios de contabilidade e as revisões de direito constitucional e tributário enquanto meu quarto me afogava em silêncios.


Mas a gravidade das paixões, as verdadeiras, não tem botão de ON e OFF, não admitem um binário e definitivo abandono. Criamos distâncias mas sua força sutil, enfraquecida, segue agindo, segue puxando, segue com seu efeito invisível dia e noite. E eis que, bêbado num bar, num aniversário, lá está o microfone ligado ao videokê. E lá me vou madrugada adentro. Quando todos já foram embora. Os amigos, o aniversariante, o segurança, o garçom, o dono do bar, os cachorros da calçada e o uber que eu havia chamado.

E sigo cantando. Uma recaída que sinto como uma retomada. Parece que respiro depois de um mergulho de oitocentos metros. Tudo parece ter existido para justificar esse momento. Todas as contas que paguei foram para chegar até aqui e poder pedir minha garrafinha d'água. As roupas que comprei foram para não chegar aqui nu e ser expulso. As comidas que comi foram para ter energias de continuar cantando noite adentro.


Amo cantar. Mas quem vive de cantar? Não um ninguém feito eu. Só os mais sortudos ou os mais sofridos. Aquelas criancinhas, filhos de ciganos ou refugiados, que eram postas a cantar nas praças ao troco de qualquer centavo. Porque passaram assim tanto tempo praticando. Não chegarão a fama das mafiosas indústrias mas terão genuinamente vivido de um dom que esculpiram a força.

Não eu. Tive sorte de menos, conforto demais. Esse limbo que nos enforca com normalidade por todos os lados.


Confesso no meio disso tudo uma ousadia: crio minhas próprias músicas. Escrevo. Minhas letras. Imagino meus álbuns. Ideias que renderiam turnês e grammys e camisetas com meu nome em jovens inconsequentes.


Mas nunca institucionalizei essas paixões. Nunca estudei música embora gaste todo meu salário em livros sobre música, teoria musical, aprenda você mesmo, violão sem mestre, adesivinhos para o teclado, todas essas babaquices de amadores. Nunca entrei para grupos musicais nos centros sociais do bairro porque... É coisa de desocupado. E a prestação do carro, a pintura da sala, as compras para quando a sogra vier?


E as outras pessoas... as pessoas próximas. Claro que, em ousadias injustificáveis, vez ou outra mostrei alguma música a amigos. Não juristas musicais. Não outros cantores (outros?). Mas amigos. Amigos próximos. Amigos que me conhecem a vida toda. Amigos que riram. Amigos que me convenceram da estupidez de tentar ser qualquer outra coisa que eu pudesse querer vir a ser. Amigos que, em um encabulante esforço de simpatia, balbuciaram um tropeçante "hummm, legal..." que constrangeu até os bonequinhos do Toy Story que meu filho havia esquecido no quarto.


Mas ontem, sei lá porque, reincidi. Deve ser porque me mudei para Recife assim de impulso, de loucura, tem um ano já. Não conhecia ninguém, não sabia direito o que fazer. E ganhei esse sentimento de distância, essa percepção de que se pode fugir das vergonhas se desligar o Skype a tempo. Eu nem sei explicar o que fiz. Uma ousadia arrogante ou uma tentativa de suicídio.


Tenho uma conta secreta no SoundCloud com várias dessas gravações ridículas sem estúdio sem mixagem sem nada e enviei a uma amiga que é fanática por música, que passa as férias ouvindo músicas, que gasta todo o dinheiro com CD's de tudo o que é artista que se possa imaginar. Onde eu estava com a cabeça?


Eu queria o golpe de misericórdia, eu acho. Eu não queria submetê-la aos traumas do desrespeito mas eu estava pronto para entender o silêncio que se seguiria.


Mas ela elogiou. E elogiou de um modo um tanto quanto insistente.
"Não sei se você vai entender a grandeza desse elogio, mas eu escuto muitas coisas. E suas músicas são gostosas de ouvir."


Paralisei. Congelei. Fiquei ali olhando aquela mensagem sem saber o que sentir. O que pensar. Só depois entendi que essa paralisia era consequência de sentimentos precisamente antagônicos entalando no caminho à consciência.


Em um primeiro momento senti uma decepção. Sim, uma decepção. Porque eu queria paz. Queria um silêncio que me convencesse de que não eram apenas meus amigos de gosto musical duvidoso e limitado, ou minha esposa preocupada demais com as urgência das casas e das contas, que não eram capazes de enxergar minhas qualidades latentes. O desprezo frio me daria a certeza de focar em coisas mais úteis da vida e me livrar dessa loucura insistente. Mas ela falou. E veio um elogio.


E com ele, claro, uma alegria toda vaidosa. Mas, mesmo ela, ambígua. Porque fiquei a pensar nas minhas décadas todas. Em todo esforço para tentar ser bem sucedido em mil outras profissões que me tornassem outra pessoa, ou me escondessem, ou me confortassem com essa falha inescapável.


E se eu tivesse reservado um tempo para cantar em algum barzinho toda semana? E se eu tivesse comprado um carro um pouquinho menor e pago um estúdio para gravar algumas coisas? E seu eu não tivesse a bunda-molice de ficar escondendo tudo em contas anônimas nos sites de música e mais e mais pessoas conhecessem o que eu faço? E se? E se? E se? Fico repetindo "e se" dentro da minha cabeça. A seqüência é tão infinita e rítmica que parece uma locomotiva em direção à morte. E..... se..... e.... se.... e... se... e.. se.. e. se. e se esse esse essee... piuuuííííííí! Pum, caixão.


Cinquenta anos logo mais. Meio século. Ainda tem tempo? Tem. Mas não se sabe quanto. Nunca se sabe. Eu podia ter morrido quando o carro capotou na Castello. Desviei do caminhão a tempo. Eu podia ter morrido se aquele sequestrador tivesse puxado o gatilho no meio de qualquer mal entendido. Quando ele perguntou se eu acreditava em deus, por exemplo. E eu dividido entre dizer que sou ateu e despertar desprezo e raiva, ou mentir dizendo que sou crente e ser condenado pelas forças divinas que ignoro por ter mentido. Disse a verdade. Ele não atirou. Sou hoje um pouquinho mais crente por ter tido a honestidade recompensada com a própria vida.


E tem outra. Cada próxima batida do coração pode não acontecer, quem sabe? Há prédios que desabam, aviões que caem, atropelamentos, bujões de gás que explodem, salmonela na comida, celular que pega fogo, um pequeno meteorito entrando na atmosfera a ointenta mil quilômetros por hora bem na noite em que eu acampava longe de tetos seguros, relâmpagos, choque no chuveiro, escorregar no sabão e bater a cabeça na pia.

O que, neste último caso, já quase quase aconteceu. Cheguei meia noite e tanto no apartamento de uma amiga fotógrafa, que morava em Madrid, para um turismo barato de fim de semana. Eu só a havia visto uma vez. Amigos em comum, contato via Facebook e essas coisas. Depois dos cumprimentos era tomar um banho e dormir. Escorreguei na banheira e caí de costas para fora, destruí a cortina do banheiro dela e depois constatei que minha nuca passara a poucos centímetros da pia. Que morte estúpida teria sido. Ficar estribuchando no chão do banheiro da minha anfitriã aterrorizada até que qualquer resgate chegasse tarde demais. Por que é que eu estava viajando por ali, em primeiro lugar? Eu poderia estar cantando.


Mas é o que as pessoas normais fazem. Viajam e tiram fotos e colocam nas redes sociais. Trabalham meses juntando dinheiro para fazer algo nas férias e depois viajam para esquecer de tudo o que desistiram ao longo do ano.


Eu fiquei contente com o elogio. É claro que fiquei. A ponto de achar que boa parte dele foi uma gentileza exagerada. Não havia afinal nenhum compromisso ali. Mas não tenho como esconder minha crise.


Estou desapontado comigo por nunca ter confiado o suficiente em mim para continuar a me desenvolver numa ascensão monotônica, ainda que lenta, por todas essas décadas. E estou desapontado comigo por não prestar nem mesmo para ser um fracasso total e viver assim livre das torturas das dúvidas. Fracassei em ser um sucesso e fracassei em fracassar.

Vejo o sol preguiçosamente aparecendo novamente no horizonte e penso no poder dessas teimosias cósmicas. Sinto-me, de repente, uma espécie de rascunho bonito. E vou pensando em como passar a limpo.

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Ignorar tudo o mais

Essa é minha dificuldade espiritual.
E daí que faz tempo que não falo com meus amigos?
E daí que a política está degringolando a galopadas?
E daí que existe trabalho escravo?
E daí que milhões de espécies estão sendo extintas?
E daí que há tanta gente interessante por conhecer?
E daí que há tanta coisa bonita por fotografar?
E daí que há tanta música bonita por ouvir?
E daí que há tanta coisa incrível na matemática?
E daí que há tantos e tantos belos romances por serem lidos?
Tenho que aprender a ignorar
Tenho que aprender a prestar atenção no corredor que estou varrendo
Tenho que aprender a prestar atenção na próxima frase a ser escrita
E nada mais
Tenho que aprender a admirar meu quarto
Que também pertence ao mundo, embora soem coisas mutuamente excludentes
Tenho que aprender a desfrutar de um olhar por vez
E daí que tive essa visão do tamanho do mundo?
Se meu mundo se desenrola um pedaço por vez
Que eu aprenda, no fundo do meu íntimo, a ignorar tudo o mais

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Lendo os próprios textos

-Me conta uma história?
-Contar o que? Que história?
Ele queria contar alguma coisa. Mas não era bom com sua memória. E ficava nervoso tentando pensar em algo. E então começou a ler os livros que tinha na estante.
-Que coisa chata, o que é isso?
-Um livro de economia que tava aqui...
-Não, isso não, conta uma história!
Ele arriscou um passo mais ousado. Abriu as velhas gavetas e retirou dali seus cadernos já empoeirados e amarelados. Resolveu ler as próprias histórias. Mas não teve coragem de dizer que eram suas próprias histórias.
-Nossa, que bonito isso! O que é?
-Um livro de histórias infantis.
-Eu não conhecia.
-Coisas da minha mãe...
-Conta mais?
Página por página foi se reconstruindo a partir de seus escombros.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Encontro com a natureza

Pés na areia macia. A água trazendo espuma de longe. Vento e ecos nos ouvidos.
O topo de um morro, pés nas pedras. Lugar alto com vista a horizontes infinitos em todas as direções. O sol lá longe discretamente se escondendo, discretamente provando ser dono de toda luz que leva consigo.
Lugares de retiro.
Uma rede do lado da floresta, canto dos pássaros.
Ou o papel. Vezes sem conta me retiro ao papel. Porque o papel é um lugar alto com vista infinita. O papel é um espelho profundo com meditações fortes. O papel também é a prova de que tudo depende do nosso grandioso sol, até mesmo esses momentos de reflexão isolada e sincera.
Talvez seja um pouco egoísta ou egocêntrico, e confesso estar descobrindo os detalhes de meu egocentrismo. Mas que assim seja: enquanto meus pés não encontram a natureza lá fora, que minha mente, pisando no papel, reencontre a natureza aqui dentro.

sábado, 26 de agosto de 2017

Adeus

A morte de um amigo dói. Dói muito. De surpresa. Um acidente de carro. Ontem conversamos. Ontem estava tudo bem. Ontem tinha sorrisos. Ontem tinha futuro. Hoje não existe mais. Hoje é uma lembrança etérea. Hoje é sem sentido.

E ele havia me ligado uma vez chamando pra ir pra um bar. Eu estava cansado. Fiquei de pés pra cima, no sofá, vendo televisão.

E ele havia sugerido uma viagem nas férias. Mas eu estava economizando dinheiro. Achei melhor não ir. E acabou não indo ninguém. Não teve aquela viagem.

E agora nunca terá.

O tempo está indo sempre embora. Achamos que há alguma poupança. Mas a qualquer momento o saldo vem zerado.

Dizem para não deixar para depois o que pode fazer agora. Não sei se vale para tudo. Nem para lição de casa, nem para aquele relatório chato ou aquele estudo para a prova. Isso depende de muitos fatores e aceita vários argumentos. Mas certamente vale para a vida.

Não deixe para depois a vida que pode viver agora.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Aforismo 77

Uma crença em algo que está correto é um conhecimento. Uma crença em algo que está errado é um engano. Não há meio termo.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Atratores estranhos

A ignorância é auto-catalítica. Quanto mais ignorante, mais refratário se é às coisas que reduziriam a ignorância.