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terça-feira, 20 de abril de 2021

Desespero

Eu fui ali até a vida, me acheguei de jeito pra espiá o que se acontecia. E se acontecia muita coisa, ô! O homem da mesa empapelada ia nos países todos petroleando dinheiros, a deusa do vestido branco vozeava paraísos nos corações de públicos e câmeras: lentes e olhos choravam todos naqueles agudos suaves de deixar escorregar tristezas pra longe. Naquele mundo mágico até eu tinha um passado e sonhos e futuros e todos estavam ali juntos na mesa do bar rindo de suas mentiras deslavadas, de seus devaneios tolos. Não sabia quanto tempo eu poderia ficar ali olhando, curiosando coisas alheias, os segredos do mundo e de mim e de todos. E nem lembrava bem nas precisões da memória o lugar certo pra onde voltar. Voltar numa imaginária inconsciência do fluxo das coisas onde eu via menos e vivia mais sem saber nos detalhes o quanto da vida acontecia. Ali no mundo fantástico eu era um assombro: um fantasma que tudo via e nada tocava. E me sentia vivo. E de volta à vida, ao mergulhar em minha própria realidade de novo, eu sabia: viveria uma vida plena e, preso para sempre em uma vida só, me sentiria menos vivo. E vi a vida de perto, a vida dos outros. Dos felizes e dos sofredores, dos que fomeavam sem lembranças do último saciar, das brigas de almas desencontradas, das solidões tropeçadas em desejos tão tenros. E de algum jeito, dentro de mim, era ser preso demais ser condenado a uma vida só dentro de um universo tão rico. Inveja de Deus? Pequenez de si? Já se sentiu assim?

domingo, 19 de julho de 2020

Pedido

- Faz uma literatura para mim?

- Você quer com vida ou sem vida?

- Depende... onde eu encontro você?

- Fico sentado na beirada das reticências só esperando para cair, sempre.

- Faz assim então, desse jeito mesmo, que eu me jogo atrás e caio com você até o fim da página.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Um talvez

Sou louco com uma sazonalidade indefinida, já aí uma contradição saborosa cheia de desacertos. Em algumas noites estou mais perto de certos imaginários. Noutras sou mais amordaçados pelas preguiças de existir. Tenho rascunhos jogados em meu computador em pastas que escondem uma bagunça virtual que um quarto não suportaria, fosse tudo aquilo papel jogado. Sou rascunhos talvez em um sentido mais amplo.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Espelhos

A pior coisa que pode acontecer quando se quer guardar um segredo é conseguí-lo. Pois foi o que aconteceu. Guardei um segredo sem saber que com isso eu guardava uma parte de mim para fora do mundo. Uma parte de mim que agora não está no mundo, não faz parte desta realidade. Não existe, embora exista. Não importa, embora importe. Não se enxerga mas está lá. Então não tenho a quem culpar se não a mim mesmo por toda essa invisibilidadde. Quando as pessoas não entendem o que se passa comigo isso é tão somente reflexo deste meu sucesso de Pirro: o segredo continua bem guardado, ninguém nem desconfia. Foi assim que virei dois. O que existe e o virtual. O material e a sombra. O concreto e o abstrato. Dois em uma dualidade que é em parte dona do mundo e em parte amasmorrada sem luz sem água sem visita, sozinha na solidão fria do isolamento indiferente. Porque é esse o peso de não ser sabido. É esse o peso de pensar sem eco. É esse o peso de amar sem voz. De doer sem lágrima. De gritar sem som. De respirar sem ar. De existir sem corpo. De viver sem você.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Diário

E daí que se viva uma vida diferente? Quantas vidas há para serem vividas, afinal? É uma manifestação estranha disso que nos faz humanos, essa vontade de existir dentro de vidas que já existiram, que estão a existir ao nosso redor. Qual o erro de ser único? Qual o erro de tentar o que nunca foi tentado?

Minha vida é simples. Não estou tentando erger o prédio mais alto.

Não estou tentando conquistar o maior dos impérios.

Não estou tentando fazer funcionar um evento impossível.

Estou tentando, contudo, destruir uma muralha invisível. Estou desafiando o conceito de uma vida bem sucedida. Compro menos. Minha casa não fica maior. Não tenho carro. Não busco salários maiores.

E quanta vida encontro!

E ninguém vê, ninguém vê...

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Outsider

Eu não pertenço a nada. É minha tragédia. É o resumo da minha vida. E é meu mérito também. Mas não porque seja um mérito em si. Antes por ser apenas uma característica primitiva, irremovível, inerente à minha pessoa, tão fundamental que tudo de ruim e de bom que me aconteça pode ser, de um jeito ou de outro, reduzido à essa origem. Não sou institucionalizável. Não consegui me comprimir ao que exigiam de mim as profissões que tentei. Não pertenço a país nenhum. Meus documentos são antes equívocos que constatações. Não me defino nem mesmo como escritor, essa vagabunda profissão de não exercer nada além de delírios. Não que não me faltem delírios. Mas transformá-los em profissão exige disciplina, exige domá-los. De algum jeito, louco e inconsequente como todo o resto, rejeito submetê-los a tal atrocidade. Delírios domados já não são tão delirantes.

Mas o pior, é o mais assustador, é que delírios domados já não são capazes de encontrar sua própria verdade: curvaram-se à loucura que criou os moldes de sua dominação.

É essa a dor do parto: permanecer louco como único modo de não sucumbir à loucura dos outros.