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domingo, 2 de agosto de 2020

Das motivações positivas e negativas

A Física ensina que o movimento pode ser produzido através de tração ou propulsão. Um objeto pode ser posto em movimento sendo empurrado ou puxado. Na mecânica básica, onde despreza-se a dimensão dos corpos, ambos processos são equivalentes. No mundo real, tridimensional, a tração apresenta a vantagem da estabilidade: empurrar um objeto pode levar a instabilidades dependendo dos arranjos do centro de massa e das forças de resistência. Projetistas de navios e foguetes lidam o tempo todo com este problema, mas mesmo situações mundanas como carregar um carrinho em um supermercado são capazes de demonstrar esse fenômeno. (Você coloca as compras mais pesadas na parte de trás ou da frente do carrinho?) A motivação das pessoas também é multifacetada. Podemos empreender uma mesma ação, do ponto de vista externo, porém movidos por diferentes forças internas. Podemos fugir ou podemos buscar. Podemos agir por medo ou por paixão. Dado que o medo é um limite inferior que acontece naturalmente em diversas situações - no limite não há como fugir da morte e sua possibilidade sempre aumenta quando nos damos à inação completa, a sociedade até aqui vem se estruturando com base no gerenciamento do medo. A Economia moderna tem uma visão tão pobre e rasa da alma humana que não aprecia devidamente essa diferença. É freqüente, por exemplo, a narrativa de que um dos lados positivos da desigualdade é a motivação para a atividade econômica, pois pessoas mais pobres observam a vida que é possível nas camadas mais ricas e se motivam à ação. Essa interpretação pode parecer verdadeira ao se observar dados de produtividade e desigualdade em alguns países, mas essa leitura ignora por completo a natureza da alma, a experiência subjetiva de quem está a trabalhar. Uma vez que se considere também este aspecto, torna-se óbvio que um dos grandes fatores de motivação hoje não é a paixão por progredir mas sim o medo de retroceder. Até o presente momento de nossa civilização as estruturas construídas em torno do medo são responsáveis pela massificação, porém são as ocorrências em que as pessoas podem dar-se ao luxo de mover-se pela paixão que respondem pela verdadeira criação. Fábricas asiáticas que exploram trabalho barato produzem milhões de celulares todos os anos, mas foram cientistas movidos pela paixão da investigação que criaram a ciência e a técnica capaz de possibilitar tal maravilha. Esse aspecto da realidade humana está hoje completamente fora das análises econômicas. É um estudo que nem sequer começou. Se, no futuro, aceitarmos o desafio de entender como estruturar mais e mais setores da sociedade sobre alicerces de paixão e não de medo, abriremos espaço para a multiplicação de gênios - espíritos humanos que hoje silenciam sob vidas estruturadas no medo. A transição contudo esbarra em uma enorme barreira ideológica - uma transição de fase com altíssima energia de ativação. Hoje qualquer pessoa que busque estruturar suas condições de vida para possibilitar um movimento para a busca da paixão, minimizando o impacto das propulsões por medo, é vista como irresponsável ou como alguém marchando em busca de algo sem sentido. Quem quer se dedicar à música, à pintura, à escrita, ou basicamente a qualquer outra paixão que seja, vai ouvir inúmeras críticas ou dúvidas que são, pura e simplesmente, ecos do medo tentando recapturar sua presa perdida. “Vai viver disso?” “Mas e o seu futuro?” “E a estabilidade?” “E se não der certo?”

domingo, 19 de julho de 2020

Pedido

- Faz uma literatura para mim?

- Você quer com vida ou sem vida?

- Depende... onde eu encontro você?

- Fico sentado na beirada das reticências só esperando para cair, sempre.

- Faz assim então, desse jeito mesmo, que eu me jogo atrás e caio com você até o fim da página.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Máquina do tempo

Eu voltaria ao passado

Só pra dizer o que eu não disse

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Traduzindo

Quando eu estava cansado de tudo resolvi ir para outro mundo.

Mas não havia outro mundo. Tem só esse em que pisamos todos (a despeito dos diferentes sapatos).

Então resolvi ir para outro país. Um que falasse outra língua. Um que fosse completamente intinteligível, tanto quanto possível.

Foi ótimo.

Senti-me, finalmente, pisando na civilização.

Uma cidade educada, onde eu fazia minhas compras, onde eu frequentava cafés com segurança, onde eu caminhava sem medo de que fossem roubar minhas mochilas, e onde as pessoas conversavam em paz.

De fato as pessoas eram profundamente interessantes. De que conversavam com tanta seriedade e com tanta atenção?

Mas, com o tempo, claro, fui aprendendo o idioma. E essa foi a tragédia.

Descobri que, a despeito das palavras diferentes, as pessoas aqui são imbecis e enfadonhas igual lá. A humanidade anda rasa demais.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Leonora

Ah, o mesmo movimento. Quantas vezes isso já aconteceu? A história é testemunha de que não há repetição que traga prática suficiente para evitar problemas. Quem quer que se aventure neste ofício deve abstrair destas impossibilidades. Ou, por bênção do acaso, deve possuir uma mente que já venha de fábrica muito pouco propensa a abstrações. Não é, portanto, nenhuma coincidência que seja assim as mentes dos mecânicos. Rústicas, brutas, como as chaves que seguram. Como o ferro que martelam, giram, derretem, puxam...

Lá está o Décio. Roupa completamente suja. Mãos, braços, tudo com o negro pegajoso do óleo, como a poeira do ambiente. Até no rosto. Um barulho estranho no escapamento. Um cansaço da engenharia e uma vitória da perseverante força da natureza que a tudo busca retornar ao caos. Mas lá vai o Décio e salva a civilização. Localiza o parafuso solto, o ferro torto, e endireita o perfeccionismo dos nossos anseios pelas melhores máquinas como metáforas para melhores vidas. Quantos Décios constroem a história? As pontes que permitem que o passado caminhe até o futuro com um ritmo sempre otimista?

Décio não sabe nada disso. Amaldiçoou um golpe mal dado que lhe meteu o alicate no indicador e depois ficou pensando que talvez tenha achado o defeito rapidamente demais. Afinal foi a Leonora, uma jovem arquiteta, que trouxe o carro. Uma jovem chamada Leonora, e dirigindo um carro desses, com câmbio automático e bancos de couro, não saberia a diferença entre um escapamento meio solto e um pistão faltando. Ele poderia ter enrolado um pouco mais e encontrado um outro defeito. Mas Leonora tinha olhos negros profundos e cabelos da mesma forma. E uma pele branca que parecia pintura, quase artificial de tão perfeita que era a combinação. E pediu o serviço com um sorriso. Algumas mulheres riem pelo instinto natural que tem nossa espécie de sorrir. Mas outras parecem saber que há no sorriso algo mais que uma mera reação visceral. Entendem tratar-se de uma verdadeira arma. E foi assim que fez Leonora. Incurtiu em Décio uma empolgação, uma empatia tal, que logo estava ele embaixo do carro, todo imundo, porco do suor que não se podia evitar no calor da pequena oficina, feliz. Resolveu o problema rapidamente. Não ganharia muito, mas ganharia um sorriso. Era apenas um mecânico. Na maioria dos dias um zé ninguém distante de toda a poesia de suas realizações. Mas sabia que muito em breve, ainda que por pouco tempo, seria no olhar agradecido de Leonora o melhor de todos os mecânicos do mundo.

domingo, 26 de janeiro de 2020

Sobrado

Eu moro numa casinha num bairro jogado. Desses que, se aparecerem na TV, será num programa de doação de eletrodomésticos e móveis de quinta categoria ou, mais provavelmente, num jornal policial (também de quinta categoria). Jornais de boa qualidade estão por demais preocupados com indicadores mundiais e fofocas da política para gastarem alguma atenção com a monotonia dos rios de sangue dessa gente que morre por atacado mas nunca acaba.

Tem uma pizzaria aqui embaixo. Sim, é um sobrado, e embaixo é uma pizzaria. Moro num quartinho, na verdade. A casa é alugada por três pessoas. Um engenheiro, um estudante de física e uma estudante de letras. Eu, no caso, sou o engenheiro. Mas não se deixe iludir. Os estereótipos, como sempre, são distorcidos com muita selvageria pelas circunstâncias da vida. Eu passo todo meu tempo livre aqui às voltas com música e leituras. Já a estudante de letras, que não sabe o que quer da vida, não perde uma festa sequer e está cada semana com um cara diferente, que invariavelmente se apaixona por ela. Que invariavelmente toma um pé na bunda e fica arrasado. Que invariavelmente transforma o vazio amoroso em raiva na semana seguinte, quando aparece aqui e dá de cara com o mais novo substituto. Já o estudante de física, não, não está o dia inteiro em livros e em experimentos malucos e cálculos sem fim. Política. O negócio dele é política. Quer saber quem será o próximo reitor da universidade. Não entende o descaso do governo federal com a educação. Não entende o descaso de todos com o descaso da política. Não entende que eu seja engenheiro e só esteja preocupado com o bem-estar imediato do meu dia-a-dia. Não entende que a Laura seja humanista em formação e só queira saber de sexo, bebida, dança, sexo, homens, sexo, dinheiro, sexo e viagens.

Eu gosto da vida por aqui. Mudei faz coisa de um ano, por aí. Aqui é perto do trabalho. La no outro bairro em que eu morava, do outro lado da metrópole, lá era um canto esquecido, desses que nunca aparecem nos jornais de importância e onde vai se vivendo. Igual aqui. Mas era longe do trabalho. Como toda periferia, os dias de calor transformam tudo num inferno. Não temos uma piscina porque no lugar dela já tem vizinhos. Não temos vento porque são paredes e mais paredes por todos os lados. E os cômodos são pequenos demais pro vento entrar. Quente, no verão é quente. Mas fico à vontade.

Mudei só querendo ficar mais perto do trabalho. Mas descobri que mudar é bom. Deixei tanta coisa de lado. Lá em casa tinha minha família. Tinha meu jeito de viver os dias. Aqui como que me vi totalmente livre pra bolar dias novos. Foi assim que finalmente realizei meu desejo de começar a ler e a escrever mais. E a música, ah! A música. Todo final de semana vem uns amigos. Violão. Flauta. Pandeiro. Tambores de qualquer espécie, do bongô mais caro da Teodoro até uma lata de lixo ou balde velho, devidamente testado para identificar os timbres certos. Cantamos. No improviso ou na lembrança, no plágio ou na inspiração. Música é música. Música lava a alma. Lá na minha outra casa não tinha dessa mesma música. Dessas pessoas assim, que vinham, cantavam e iam embora. E lá a pizza demorava bem mais pra chegar. Lá eu tinha outras coisas pra fazer. Não podia sentar e ficar assim escrevendo à toa, porque tinha tanta coisa pra fazer. As paredes precizando de pintura, o gato precisando de comida, as poeiras precisando de vassouras.

Gosto daqui. Das pessoas que logo vão sumir. Gosto de saber que logo acaba, e que ninguém está dramatizando com isso. Gosto de saber que vai mudar logo, e não fazer a menor idéia de como vai mudar. Vai mudar e pronto. E os segundos são os mesmos, sempre os mesmos, e segundo após segundo, fico eu com esse sorriso espontâneo grudado na cara, de quem gosta de viver e está achando tudo muito bom.

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Alquímico

Minhas visículas começaram a produzir amor demais.

Procurei curandeiros, médicos, advogados, engenheiros, pedreiros, chineses e camelôs. Procurei um homeopata.

Solução: diluir o amor.

Diluir em água? Não, amor se dissolve em outros amores, disse ele.

E então dei-me a outros amores.

Loira peituda, alta, perna grossa.

Libanesa trintona super gostosa, simpática, que estava infeliz no casamento. Um doce...

Morena dançarina, rebola como ninguém, coxa com coxa. Cheiro de impregnar.

A namorada toda certinha que tinha duas faculdades, um bom emprego, leitora voraz, atenciosa com a família, perfeita nos ideais da normalidade.

Olhar excitante. Pele com pele.

Menininha inocente, longos cabelos compridos, lisos, impressionada com os mistérios de minha pouca idade a mais.

Filósofa voraz leitora de tudo. Tudo. Filosofias, romances, guias, folhetinhos. Tudo. E conversadora. Horas de conversas no sofá sob o cobertor. O melhor chocolate quente é aquele que vem cremoso, com um leve toque de conhaque e coberto de muitas frases raras. Se tiverem a delicadeza de enfeitá-lo com bons olhares então, é um paraíso.

A atriz que tinha nos jeitos da saudade a poesia dos palcos. E abraçava apertado. Mordia. Apertava as mãos em mim forte, com medo de deixar escorregar.
Com medo do tempo passar rápido demais.

E então ela, aquela de antes, aparece dizendo tchau. Outro país, morar fora.

Não consigo: não quero.

Amor não se dilui. Com sorte e um bom sufoco, se esconde. E se ele não morrer sufocado, azar o seu.

Pele

Eu a vi a primeira vez perto do metrô, onde marcamos um encontro. Não um encontro amoroso: ela me daria carona para uma festa que tínhamos mais tarde. Amigos em comum, essas coisas. E é inevitável, todo homem sabe: falávamos de coisas banais, eu olhava as pernas dela. Ríamos risadas triviais, eu deixava os olhares se cruzarem. Olhava bochechas, peitos, braços, mãos, unhas, dedos, barriga, quadris.

Conversamos sobre a chuva do dia anterior e como isso atrapalhou a futilidade de nossas rotinas, mas em minha mente não consigo deixar de imaginar que gosto teria morder aquelas pernas apetitosas.

E agora não consigo deixar de ponderar:

Quando foi que ela se descobriu lésbica? O que foi que os homens todos deixaram de fazer para perder essa jóia dos domínios de nosso reino?

É só isso. Estou chateado e ponderando a respeito... Queria tanto morder aquelas pernas...

domingo, 12 de janeiro de 2020

Continental

As duas moças no banco de trás do ônibus eram um barato. "Um barato", que expressão... será que estou velho? Outro dia chamei alguém de "nó cego" e ninguém entendeu. Falaram que era uma expressão de vovô, que nunca tinham visto alguém usar isso desde a TV colorida. Enfim, mas as duas eram um barato, isso eram. Falavam de relacionamento. Uma delas estava com problemas de namoro e a outra ia aconselhando.

- Ih, mas é assim, é assim mesmo! Você quer sair, muda de planos. Sai do trabalho, dá uma ligadinha e fala um oi, fala que tá indo ver sei lá o quê, pronto desliga, tá avisado, sabe... É isso, é trabalhoso, mas é assim!

- Meu, eu não vou conseguir. Avisar qualquer mudança de plano todo dia? Eu não faço isso nem com a minha mãe! Não dá. Sei lá. Acho que é melhor assim: a gente namora de fim de semana e fica solteiro durante a semana. Não dá. Dar satisfação sempre? Nunca fiz isso na vida!

Como sensibilizei com ela. Quase virei-me para de repente dar um abraço nela, em sinal de identificação com a causa. E também em sinal de que eu reparara no quão bonita era a moça.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Corifeu

De que tamanho são os medos? Com que força é preciso que as vilências quebrem nossas mentirosas coragens para se ponham, nus, todos os medos a mostra? Para alguns, é a arma na cabeça. Para outros é a simples notícia na tevê. Para outros é o assalto sorrateiro. De si mesmo. Ou do vizinho. Ou de alguém de quem se ouviu falar.

Para ela, bastaram três pirralhos de bicicleta. Disseram estar armados. E com que força ela constestaria tamanha afronta? Suas mãos cederam antes que seus medos se soubessem ali. Um reflexo mecânico. Como quando a gente acha no chão os chinelos, logo pela manhã, e logo depois nem se lembra bem como foi que acordou. Os músculos despertam antes da mente. As mãos entregaram a mochila e o celular antes que o pavor se permitisse existir. Mas ele se permitiu. E ela não andou mais por aquelas ruas. E se escondia atrás da porta trancada, no apartamento. E palpitava de suores quando passos soavam atrás dos seus em qualquer calçada que fosse.

Pobre menina. Assim tão jovem e foram lhe roubar a mochila, o celular e a vida.

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Incidente

Eles dizem para começar a história pelo começo. Para dizer o que vem primeiro, logo de cara. Prender a atenção do leitor. E se eu não sei? E seu eu não sei o começo? E se eu só lembro do gosto maldito de vinho barato vazando pelo canto da boca, de uma náusea fudida e da dor enorme de ser espancado até não poder mais? É esse o começo? Isso não se parece com início de nada, mas é o meu começo. Porque eu não lembro de nada antes disso. Nada. Quebraram minhas costelas e minhas memórias.

Acordei e parecia não haver mais dor. Morto?

Não, não estava morto. Qualquer pequeno movimento lembrava que as dores ainda estavam ali. Abrir os olhos era possível. Exagerar na reação muscular e ativar também qualquer parte da testa, bem, isso não. Isso iria doer demais.

Paredes brancas. Lençóis brancos. Hospital.

Esse é o começo da minha história. Aquele breve flash que tenho de ser espancado, sem nem lembrar para onde ia, o que fazia. E depois esse liso teciso branco cobrindo boa parte do meu corpo. A parede branca ofuscando minha visão. E toda minha tentativa por redescobrir minha vida, a partir daí.

domingo, 8 de dezembro de 2019

Fim

Ontem terminei mais um relacionamento. Mais um, pois é. Como estou? Essa sensação de meia molhada de chuva descendo pela garganta à força, e olha que fui eu quem terminei hein, por ela nós estaríamos juntos até sabe-se lá quando. Mas terminar também é difícil, não importa o que digam. Será que a conversa derradeira nunca vai ser amigável? Sei lá, de repente os dois entendem ao mesmo tempo que não vai rolar, que não tem como dar certo, e se descobrem querendo conversar em direção a um mesmo objetivo. Seria possível?

- Oi Gabi, tudo bom? Precisamos conversar...

- Pois é Carlos, eu tava mesmo te procurando, tinha umas coisas pra te falar também.

- Sério? O que é?

- Ah, sei lá, fala você primeiro.

- Não, pode falar você...

- Olha, sei lá, é que meu assunto é meio sério, sabe?

- O meu também Gabi, e não quero esperar mais pra falar disso, mas você está me deixando preocupado, aconteceu algo?

- Não Carlos! Não aconteceu nada! Quer dizer, aconteceu e não aconteceu, sabe? Mas tenho uma coisa pra falar que não pode esperar.

- Olha, meu assunto é sobre a gente, sabe. Então, se você tem algum outro problema sério aí, sei lá, a gente pode conversar disso depois, primeiro me diga o que aconteceu!

- Mas meu assunto também é sobre a gente!

- Sério?

- É!

E os dois se olham, curiosos...

- Sabe, Carlos... Faz um tempo que eu me sinto meio incomodada, entende?

- Entendo.

- Entende?

- É, entendo. Eu também me sinto um pouco incomodado, sei lá, parece que as coisas estão engripadas, não estão combinando bem.

- Pois é, exatamente! Tô sentindo a mesma coisa!

- Está?

- Estou! Olha, não acha que era melhor a gente por um ponto final nessa história?

- Sabe, eu acho sim. Eu tava pensando nisso vindo pra cá. Afinal, nós temos tantas coisas boas pra dividir um com o outro, e temos que achar a melhor forma de nos colocarmos um na vida do outro.

- Isso! E o que eu tava vendo, o que anda acontecendo é que sermos um casal não é essa melhor forma.

- Nossa Gabi, tirou as palavras da minha boca! Se continuarmos juntos, vamos acabar nos odiando!

- Pois é, e não tem porque nos odiarmos, se conseguirmos ser bons amigos. Se isso exigir que não fiquemos mais juntos, tudo bem.

- Tudo bem, as coisas têm que seguir seu caminho, não é? A vida não pode ficar parada insistindo numa idéia que já provou não funcionar.

- Ai Carlinhos, como você me entende!

- Pois é, pelo menos isso a gente tem de bom, né? A gente consegue conversar como se um já soubesse o que o outro pensa.

- Se as pessoas conseguissem se entender assim por aí, já pensou?

Os dois se olham, sorrindo.

- Querido, me dá um abraço?

Os dois se abraçam.

- Nunca pensei que fosse achar no mundo uma mulher com sua sobriedade. Meus amigos jamais acreditariam se eu contasse.

- Bobagem... Eu é que nunca pensei que encontraria um homem capaz de falar com tanto desembaraço sobre essas decisões difíceis.

- Oh, querida!

- Ai, querido!

- Me beija?!

E os dois se beijam. Se deitam. Se amam. Se misturam indissoluvelmente, unidos pela mesma certeza sobre todas as diferenças que existem.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Corporativo

- Mas e o Tiago, hein?

- Sei lá, tá numas de pegar coroa?

- Sério é? Logo ele que sempre foi tão de namorar e tal.

- Pois é rapaz. Acho que desencanou, viu. Agora tá indo atrás de coroa!

- Mas coroa da onde?

- Ah, dá internet, né?

- E coroa lá sabe mexer em computador?

- Coroa tipo um pouco mais velha, não as embalsamadas.

- Ah bom né! Mas ele tá namorando alguma?

- Não não, parece que não tem essa de namoro.

- Tá o que? Só comendo então?

- É, tá só comendo, mas o Tiago é foda. Meteu na cabeça que tá atrás de envolvimento sentimental, tá cheio das teorias!

- Teorias? Que teorias? Lá vem o Tiago com as viagens dele...

- Teorias! Chegou me dizendo que essas mulheres, na casa dos quarenta, solteiras e tal... Parecem estar cheias de amor pra dar e tudo mais, mas na verdade estão é tentando se esconder de si mesmas, se recusando a amar e tal.

- Ué, mas ele tá ou não tá comendo?

- Tá, tá, pelo que ele contou, tá sim. Aliás, ou ele tá inventando coisa, ou acho que vou entrar na dele viu... Pegar as menininhas de vinte da nossa idade parece que não tá com nada... Ele só me contou loucuras com essas quarentonas que andou pegando!

- Pô, se for assim, eu vou também... Tem uma lá no serviço, ah, aquela eu acho que até rola viu! Na verdade, ela já deu em cima de mim, mas na época eu afastei, por que era novo no serviço, e por ela ser mais velha e tal...

- É, mas ó aí, é a teoria do Tiago, certinha! As mulheres de quarenta, solteiras, vão até atrás! E muito mais que as menininhas de vinte... Elas precisam se sentir amadas. Em parte pra apagar a dor de alguma rejeição passada, do casamento que não deu certo, essas coisas.

- Não rolando namoro, pra mim tá bom.

- Não, pelo que sei, é só sexo.

- E o Tiago, onde tá hein?

- Comendo a Silmara, que conheceu nessa quinta...

sábado, 23 de novembro de 2019

Silvia

Tinha um certo friozinho no ombro então puxou mais a coberta. Descobriu os pés, inferno. A névoa quase negava a manhã e vidros da cabine respingavam umidade condensada. Já estava acordada, mas se negava a abrir o olho. Um misto de satisfação e arrependimento. Aquele mesmo arrependimento da primeira vez. Será que nunca ia se acostumar? Abriu os olhos, por fim. Estava só. Sozinha na boléia, no estacionamento, na estrada, nos dias, nos choros, nos frios, nos calores, nas saudades, nos sonhos e nas desilusões.

quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Eta

O prazer é um dos combustíveis mais poderosos para a atividade humana. Será? As grandes criações da humanidade não são necessariamente frutos do prazer, do trabalho apaixonado. As pirâmides e a esfinge, as grandes metrópoles, ou mesmo o envio do homem à Lua. Emprego maciço do trabalho escravo, uso intensivo de assalariados vivendo nas camadas mais baixas da cadeia econômica, ou então uma rígida estrutura burocrática coordenando os esforços de um grande número de pessoas mais díspares. Quais dessas realizações surgiriam se, por hipótese, não tivéssemos que nos preocupar com nossas necessidades básicas e pudéssemos empregar todo o tempo da vida à satisfação de nossas paixões?
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Dez anos depois: Fica claro aqui o quão difícil é deixarmos os equívocos da humanidade para trás e pensarmos com a própria cabeça até ver o que olhamos por nós mesmos. "Grandes criações da humanidade"? Sim, quando ohamos o coliseu, as pirâmides e a esfinge, sabemos que esse monte de pedras não se amontoa sozinho daquele jeito. E se você e seus amigos quiserem construir outros pra vocês, não vai dar. A não ser que você tenha uns milhares de amigos (não de facebook; amigos mesmo!) Hoje está claro para mim que quando a sociedade classifica algo de "grande" está frequentemente deixando algo de lado, varrendo algo para baixo do tapete. Nem mesmo a ciência, desafio real de desvender os segredos da natureza, escapa dessa sede de hipocrisia. O que seria da ciência sem a matemática das balísticas, a quimica da pólvora? O radar que hoje salva aviões de colisões foi desenvolvido para poder derrubar outros aviões. As radiações que hoje encontram e tratam doenças foram compreendidas para destruir cidades inteiras.

Curioso que sociólogos, cientistas, políticos, turistas... todo mundo, continuam considerando coisas como a música e a literatura como eventos "lúdicos" - sempre com uma certa conotação de vagabundagem, mesmo quando esta não é explícita. Deveríamos nos questionar mais quanto às nossas motivações - e lidar com todas as vergonhas que virão à tona no processo.

Talvez esse seja um ponto central de uma devida definição de estágio civilizatório - se alguém ousar tentar tal definição. A mudança em nossas motivações. Quando deixarmos de considerar manifestações de poder e capacidade de opressão como nossos maiores feitos e passarmos a valorizar e admirar abertamente, mais que tudo, as verdadeiras grandezas, então teremos finalmente passado a um estágio significativamente diferente. Até o momento temos apenas a ilusão. A ilusão em forma de tecnologia, gravata e pib. Mas não passamos de selvagens estúpidos segurando uma tecnologia fantástica sem saber o que fazer com ela. Ainda estamos no primeiro estágio. Ainda apresentamos um rendimento extremamente baixo quando comparamos a felicidade real que obtemos com o esforço empreendido e com o conhecimento disponível.

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Foi assim

- Finalmente eu fui conhecê-la!

- É mesmo? Não acredito! E aí?

- Ela é linda, linda! E tão, tão... tão interessante!

- E o que aconteceu, me conta!

- Então, conversamos pouco, eu estava tímido, sabe, sei lá, leve, por um lado, e tímido por outro; duas coisas que deixam a gente quieto.

- Ué, então não conversaram muito?

- Na verdade não, porque ela tinha que trabalhar. Mas rascunhamos algumas perguntas sobre as nossas vidas, nos olhamos...

- E depois?

- Depois os anos se passaram, cada um vivendo sua vida no seu canto. Depois um morreu. Depois morreu o outro.

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Rascunho

Ele saiu de casa. Subiu os sete quarteirões até o fim da rua e virou à direita.

Desceu as escadas. Estava um pouco de sol e ofuscou-se de início. Caminhou decididamente rua acima, até dobrar à direita e continuar seu caminho.

-.-

Faz onze anos que comecei  escrever isso.

Só achei hoje.

Vejo que não acabou.

Vejo que não foi a lugar nenhum.

Vejo que nem sei para onde ia.

Vejo que é como a vida.

domingo, 21 de julho de 2019

Das vozes

Eu amo cantar. Nem sei explicar. Não é um estilo específico. Não é por dinheiro porque não é nem nunca foi meu trabalho. Só lembro que desde criança tinha uns microfones de plástico e ficava cantarolando por aí. Gosto é da mecânica da coisa. De sentir o diafragma forçando o ar pra fora, a voz saindo, ora apaixonada ora revoltada como se eu fosse um deus a parir humores.


Mas quem vive de cantar? Uns poucos sortudos. Filhos de outros cantores que já ganhavam afagos de empresários muito antes de entender o que é uma conta bancária. Ou uns gênios que nasceram prontos sabe-se lá como. Esses caras que tem uma afinação perfeita e cantam óperas e cujas vozes variam vinte oitavas e atingem duzentos decibéis. E eles têm apenas seis anos. Vão a programas de TV e ganham prêmios até as prateleiras não aguentarem mais.

Eu não sou nada disso. Gostava é de ficar fazendo escândalos na sala ou no quarto, me esgoelando. Eu sempre me senti bem cantando, mas de que importa essa introspecção se o resultado objetivo é não lá muito melhor do que uma galinha sob lenta e sádica tortura?


Eu segui para a vida entendendo que minha paixão era uma distração e mergulhei em infinitos conflitos com todas as paixões que me distraíram.


Os estudos, os trabalhos, as coisas sérias. Infinitas coisas sérias. Tudo parece ser mais sério e mais importante e mais urgente que algo que não é mais que uma paixão íntima e pessoal. Mas nada nos falta tanto.

Viajava a trabalho e, claro, não podia ficar me esgoelando nos hotéis, nas reuniões ou nos táxis. Hoje me arrependo amargamente dessa falta de loucura. Esse comedimento que me corroeu a vida pouco a pouco.


Em busca de uma carreira que desse portas a esse futuro que todos entendem que é futuro, passava noites enchendo páginas e páginas e páginas com os exercícios de contabilidade e as revisões de direito constitucional e tributário enquanto meu quarto me afogava em silêncios.


Mas a gravidade das paixões, as verdadeiras, não tem botão de ON e OFF, não admitem um binário e definitivo abandono. Criamos distâncias mas sua força sutil, enfraquecida, segue agindo, segue puxando, segue com seu efeito invisível dia e noite. E eis que, bêbado num bar, num aniversário, lá está o microfone ligado ao videokê. E lá me vou madrugada adentro. Quando todos já foram embora. Os amigos, o aniversariante, o segurança, o garçom, o dono do bar, os cachorros da calçada e o uber que eu havia chamado.

E sigo cantando. Uma recaída que sinto como uma retomada. Parece que respiro depois de um mergulho de oitocentos metros. Tudo parece ter existido para justificar esse momento. Todas as contas que paguei foram para chegar até aqui e poder pedir minha garrafinha d'água. As roupas que comprei foram para não chegar aqui nu e ser expulso. As comidas que comi foram para ter energias de continuar cantando noite adentro.


Amo cantar. Mas quem vive de cantar? Não um ninguém feito eu. Só os mais sortudos ou os mais sofridos. Aquelas criancinhas, filhos de ciganos ou refugiados, que eram postas a cantar nas praças ao troco de qualquer centavo. Porque passaram assim tanto tempo praticando. Não chegarão a fama das mafiosas indústrias mas terão genuinamente vivido de um dom que esculpiram a força.

Não eu. Tive sorte de menos, conforto demais. Esse limbo que nos enforca com normalidade por todos os lados.


Confesso no meio disso tudo uma ousadia: crio minhas próprias músicas. Escrevo. Minhas letras. Imagino meus álbuns. Ideias que renderiam turnês e grammys e camisetas com meu nome em jovens inconsequentes.


Mas nunca institucionalizei essas paixões. Nunca estudei música embora gaste todo meu salário em livros sobre música, teoria musical, aprenda você mesmo, violão sem mestre, adesivinhos para o teclado, todas essas babaquices de amadores. Nunca entrei para grupos musicais nos centros sociais do bairro porque... É coisa de desocupado. E a prestação do carro, a pintura da sala, as compras para quando a sogra vier?


E as outras pessoas... as pessoas próximas. Claro que, em ousadias injustificáveis, vez ou outra mostrei alguma música a amigos. Não juristas musicais. Não outros cantores (outros?). Mas amigos. Amigos próximos. Amigos que me conhecem a vida toda. Amigos que riram. Amigos que me convenceram da estupidez de tentar ser qualquer outra coisa que eu pudesse querer vir a ser. Amigos que, em um encabulante esforço de simpatia, balbuciaram um tropeçante "hummm, legal..." que constrangeu até os bonequinhos do Toy Story que meu filho havia esquecido no quarto.


Mas ontem, sei lá porque, reincidi. Deve ser porque me mudei para Recife assim de impulso, de loucura, tem um ano já. Não conhecia ninguém, não sabia direito o que fazer. E ganhei esse sentimento de distância, essa percepção de que se pode fugir das vergonhas se desligar o Skype a tempo. Eu nem sei explicar o que fiz. Uma ousadia arrogante ou uma tentativa de suicídio.


Tenho uma conta secreta no SoundCloud com várias dessas gravações ridículas sem estúdio sem mixagem sem nada e enviei a uma amiga que é fanática por música, que passa as férias ouvindo músicas, que gasta todo o dinheiro com CD's de tudo o que é artista que se possa imaginar. Onde eu estava com a cabeça?


Eu queria o golpe de misericórdia, eu acho. Eu não queria submetê-la aos traumas do desrespeito mas eu estava pronto para entender o silêncio que se seguiria.


Mas ela elogiou. E elogiou de um modo um tanto quanto insistente.
"Não sei se você vai entender a grandeza desse elogio, mas eu escuto muitas coisas. E suas músicas são gostosas de ouvir."


Paralisei. Congelei. Fiquei ali olhando aquela mensagem sem saber o que sentir. O que pensar. Só depois entendi que essa paralisia era consequência de sentimentos precisamente antagônicos entalando no caminho à consciência.


Em um primeiro momento senti uma decepção. Sim, uma decepção. Porque eu queria paz. Queria um silêncio que me convencesse de que não eram apenas meus amigos de gosto musical duvidoso e limitado, ou minha esposa preocupada demais com as urgência das casas e das contas, que não eram capazes de enxergar minhas qualidades latentes. O desprezo frio me daria a certeza de focar em coisas mais úteis da vida e me livrar dessa loucura insistente. Mas ela falou. E veio um elogio.


E com ele, claro, uma alegria toda vaidosa. Mas, mesmo ela, ambígua. Porque fiquei a pensar nas minhas décadas todas. Em todo esforço para tentar ser bem sucedido em mil outras profissões que me tornassem outra pessoa, ou me escondessem, ou me confortassem com essa falha inescapável.


E se eu tivesse reservado um tempo para cantar em algum barzinho toda semana? E se eu tivesse comprado um carro um pouquinho menor e pago um estúdio para gravar algumas coisas? E seu eu não tivesse a bunda-molice de ficar escondendo tudo em contas anônimas nos sites de música e mais e mais pessoas conhecessem o que eu faço? E se? E se? E se? Fico repetindo "e se" dentro da minha cabeça. A seqüência é tão infinita e rítmica que parece uma locomotiva em direção à morte. E..... se..... e.... se.... e... se... e.. se.. e. se. e se esse esse essee... piuuuííííííí! Pum, caixão.


Cinquenta anos logo mais. Meio século. Ainda tem tempo? Tem. Mas não se sabe quanto. Nunca se sabe. Eu podia ter morrido quando o carro capotou na Castello. Desviei do caminhão a tempo. Eu podia ter morrido se aquele sequestrador tivesse puxado o gatilho no meio de qualquer mal entendido. Quando ele perguntou se eu acreditava em deus, por exemplo. E eu dividido entre dizer que sou ateu e despertar desprezo e raiva, ou mentir dizendo que sou crente e ser condenado pelas forças divinas que ignoro por ter mentido. Disse a verdade. Ele não atirou. Sou hoje um pouquinho mais crente por ter tido a honestidade recompensada com a própria vida.


E tem outra. Cada próxima batida do coração pode não acontecer, quem sabe? Há prédios que desabam, aviões que caem, atropelamentos, bujões de gás que explodem, salmonela na comida, celular que pega fogo, um pequeno meteorito entrando na atmosfera a ointenta mil quilômetros por hora bem na noite em que eu acampava longe de tetos seguros, relâmpagos, choque no chuveiro, escorregar no sabão e bater a cabeça na pia.

O que, neste último caso, já quase quase aconteceu. Cheguei meia noite e tanto no apartamento de uma amiga fotógrafa, que morava em Madrid, para um turismo barato de fim de semana. Eu só a havia visto uma vez. Amigos em comum, contato via Facebook e essas coisas. Depois dos cumprimentos era tomar um banho e dormir. Escorreguei na banheira e caí de costas para fora, destruí a cortina do banheiro dela e depois constatei que minha nuca passara a poucos centímetros da pia. Que morte estúpida teria sido. Ficar estribuchando no chão do banheiro da minha anfitriã aterrorizada até que qualquer resgate chegasse tarde demais. Por que é que eu estava viajando por ali, em primeiro lugar? Eu poderia estar cantando.


Mas é o que as pessoas normais fazem. Viajam e tiram fotos e colocam nas redes sociais. Trabalham meses juntando dinheiro para fazer algo nas férias e depois viajam para esquecer de tudo o que desistiram ao longo do ano.


Eu fiquei contente com o elogio. É claro que fiquei. A ponto de achar que boa parte dele foi uma gentileza exagerada. Não havia afinal nenhum compromisso ali. Mas não tenho como esconder minha crise.


Estou desapontado comigo por nunca ter confiado o suficiente em mim para continuar a me desenvolver numa ascensão monotônica, ainda que lenta, por todas essas décadas. E estou desapontado comigo por não prestar nem mesmo para ser um fracasso total e viver assim livre das torturas das dúvidas. Fracassei em ser um sucesso e fracassei em fracassar.

Vejo o sol preguiçosamente aparecendo novamente no horizonte e penso no poder dessas teimosias cósmicas. Sinto-me, de repente, uma espécie de rascunho bonito. E vou pensando em como passar a limpo.

segunda-feira, 20 de agosto de 2018

Tudo isso aqui

Todos eles nascem assim, hoje. Assim em dois berços. No berço hermético que habita em mim, berço fechado em si que se projeta pra si que só quer saber de si. E nos exorcismos. Nas erupções incontidas. Nas cuspidas escatológicas pra fora no último desespero abrupto que salva de um engasgue mortal. Exorcismos herméticos. Expressões desesperadas de mim que precisam nascer antes que me matem, mas cujas raízes e ligações finais guardo pra mim, covardemente demais talvez, prudentemente demais, espero. Eu sou um escritor no sentido mecânico de gastar tempo considerável na lida de escrever. Mas sou um leitor também, e como leitor estou longe de ter meus escritos como preferidos. Sou medíocre. Sou consideravelmente medíocre. Na variedade dos temas, na criação de cenas, nas fronteiras do vocabulário e no trançar do estilo próprio. Bem medíocre. E gosto disso, por fim, é estranho, difícil de explicar aos outros e difícil de explicar a mim mesmo. Mas gosto dessa mediocridade. Ela me dá a paz de saber que vou poder continuar escrevendo única e exclusivamente por conta disso: precisar escrever. Porque em outros domínios da vida já me deixei admirar em meus méritos e sei o fardo que é uma admiração próxima toda cheia das expectativas que cheiram de perto, olham de muito perto e querem tocar o tempo todo. Não se tem paz. E se tem algo que quero quando escrevo e que eclipsa toda minha mediocridade e me conforta é bem isso: essa paz.