domingo, 21 de julho de 2019

Das vozes

Eu amo cantar. Nem sei explicar. Não é um estilo específico. Não é por dinheiro porque não é nem nunca foi meu trabalho. Só lembro que desde criança tinha uns microfones de plástico e ficava cantarolando por aí. Gosto é da mecânica da coisa. De sentir o diafragma forçando o ar pra fora, a voz saindo, ora apaixonada ora revoltada como se eu fosse um deus a parir humores.


Mas quem vive de cantar? Uns poucos sortudos. Filhos de outros cantores que já ganhavam afagos de empresários muito antes de entender o que é uma conta bancária. Ou uns gênios que nasceram prontos sabe-se lá como. Esses caras que tem uma afinação perfeita e cantam óperas e cujas vozes variam vinte oitavas e atingem duzentos decibéis. E eles têm apenas seis anos. Vão a programas de TV e ganham prêmios até as prateleiras não aguentarem mais.

Eu não sou nada disso. Gostava é de ficar fazendo escândalos na sala ou no quarto, me esgoelando. Eu sempre me senti bem cantando, mas de que importa essa introspecção se o resultado objetivo é não lá muito melhor do que uma galinha sob lenta e sádica tortura?


Eu segui para a vida entendendo que minha paixão era uma distração e mergulhei em infinitos conflitos com todas as paixões que me distraíram.


Os estudos, os trabalhos, as coisas sérias. Infinitas coisas sérias. Tudo parece ser mais sério e mais importante e mais urgente que algo que não é mais que uma paixão íntima e pessoal. Mas nada nos falta tanto.

Viajava a trabalho e, claro, não podia ficar me esgoelando nos hotéis, nas reuniões ou nos táxis. Hoje me arrependo amargamente dessa falta de loucura. Esse comedimento que me corroeu a vida pouco a pouco.


Em busca de uma carreira que desse portas a esse futuro que todos entendem que é futuro, passava noites enchendo páginas e páginas e páginas com os exercícios de contabilidade e as revisões de direito constitucional e tributário enquanto meu quarto me afogava em silêncios.


Mas a gravidade das paixões, as verdadeiras, não tem botão de ON e OFF, não admitem um binário e definitivo abandono. Criamos distâncias mas sua força sutil, enfraquecida, segue agindo, segue puxando, segue com seu efeito invisível dia e noite. E eis que, bêbado num bar, num aniversário, lá está o microfone ligado ao videokê. E lá me vou madrugada adentro. Quando todos já foram embora. Os amigos, o aniversariante, o segurança, o garçom, o dono do bar, os cachorros da calçada e o uber que eu havia chamado.

E sigo cantando. Uma recaída que sinto como uma retomada. Parece que respiro depois de um mergulho de oitocentos metros. Tudo parece ter existido para justificar esse momento. Todas as contas que paguei foram para chegar até aqui e poder pedir minha garrafinha d'água. As roupas que comprei foram para não chegar aqui nu e ser expulso. As comidas que comi foram para ter energias de continuar cantando noite adentro.


Amo cantar. Mas quem vive de cantar? Não um ninguém feito eu. Só os mais sortudos ou os mais sofridos. Aquelas criancinhas, filhos de ciganos ou refugiados, que eram postas a cantar nas praças ao troco de qualquer centavo. Porque passaram assim tanto tempo praticando. Não chegarão a fama das mafiosas indústrias mas terão genuinamente vivido de um dom que esculpiram a força.

Não eu. Tive sorte de menos, conforto demais. Esse limbo que nos enforca com normalidade por todos os lados.


Confesso no meio disso tudo uma ousadia: crio minhas próprias músicas. Escrevo. Minhas letras. Imagino meus álbuns. Ideias que renderiam turnês e grammys e camisetas com meu nome em jovens inconsequentes.


Mas nunca institucionalizei essas paixões. Nunca estudei música embora gaste todo meu salário em livros sobre música, teoria musical, aprenda você mesmo, violão sem mestre, adesivinhos para o teclado, todas essas babaquices de amadores. Nunca entrei para grupos musicais nos centros sociais do bairro porque... É coisa de desocupado. E a prestação do carro, a pintura da sala, as compras para quando a sogra vier?


E as outras pessoas... as pessoas próximas. Claro que, em ousadias injustificáveis, vez ou outra mostrei alguma música a amigos. Não juristas musicais. Não outros cantores (outros?). Mas amigos. Amigos próximos. Amigos que me conhecem a vida toda. Amigos que riram. Amigos que me convenceram da estupidez de tentar ser qualquer outra coisa que eu pudesse querer vir a ser. Amigos que, em um encabulante esforço de simpatia, balbuciaram um tropeçante "hummm, legal..." que constrangeu até os bonequinhos do Toy Story que meu filho havia esquecido no quarto.


Mas ontem, sei lá porque, reincidi. Deve ser porque me mudei para Recife assim de impulso, de loucura, tem um ano já. Não conhecia ninguém, não sabia direito o que fazer. E ganhei esse sentimento de distância, essa percepção de que se pode fugir das vergonhas se desligar o Skype a tempo. Eu nem sei explicar o que fiz. Uma ousadia arrogante ou uma tentativa de suicídio.


Tenho uma conta secreta no SoundCloud com várias dessas gravações ridículas sem estúdio sem mixagem sem nada e enviei a uma amiga que é fanática por música, que passa as férias ouvindo músicas, que gasta todo o dinheiro com CD's de tudo o que é artista que se possa imaginar. Onde eu estava com a cabeça?


Eu queria o golpe de misericórdia, eu acho. Eu não queria submetê-la aos traumas do desrespeito mas eu estava pronto para entender o silêncio que se seguiria.


Mas ela elogiou. E elogiou de um modo um tanto quanto insistente.
"Não sei se você vai entender a grandeza desse elogio, mas eu escuto muitas coisas. E suas músicas são gostosas de ouvir."


Paralisei. Congelei. Fiquei ali olhando aquela mensagem sem saber o que sentir. O que pensar. Só depois entendi que essa paralisia era consequência de sentimentos precisamente antagônicos entalando no caminho à consciência.


Em um primeiro momento senti uma decepção. Sim, uma decepção. Porque eu queria paz. Queria um silêncio que me convencesse de que não eram apenas meus amigos de gosto musical duvidoso e limitado, ou minha esposa preocupada demais com as urgência das casas e das contas, que não eram capazes de enxergar minhas qualidades latentes. O desprezo frio me daria a certeza de focar em coisas mais úteis da vida e me livrar dessa loucura insistente. Mas ela falou. E veio um elogio.


E com ele, claro, uma alegria toda vaidosa. Mas, mesmo ela, ambígua. Porque fiquei a pensar nas minhas décadas todas. Em todo esforço para tentar ser bem sucedido em mil outras profissões que me tornassem outra pessoa, ou me escondessem, ou me confortassem com essa falha inescapável.


E se eu tivesse reservado um tempo para cantar em algum barzinho toda semana? E se eu tivesse comprado um carro um pouquinho menor e pago um estúdio para gravar algumas coisas? E seu eu não tivesse a bunda-molice de ficar escondendo tudo em contas anônimas nos sites de música e mais e mais pessoas conhecessem o que eu faço? E se? E se? E se? Fico repetindo "e se" dentro da minha cabeça. A seqüência é tão infinita e rítmica que parece uma locomotiva em direção à morte. E..... se..... e.... se.... e... se... e.. se.. e. se. e se esse esse essee... piuuuííííííí! Pum, caixão.


Cinquenta anos logo mais. Meio século. Ainda tem tempo? Tem. Mas não se sabe quanto. Nunca se sabe. Eu podia ter morrido quando o carro capotou na Castello. Desviei do caminhão a tempo. Eu podia ter morrido se aquele sequestrador tivesse puxado o gatilho no meio de qualquer mal entendido. Quando ele perguntou se eu acreditava em deus, por exemplo. E eu dividido entre dizer que sou ateu e despertar desprezo e raiva, ou mentir dizendo que sou crente e ser condenado pelas forças divinas que ignoro por ter mentido. Disse a verdade. Ele não atirou. Sou hoje um pouquinho mais crente por ter tido a honestidade recompensada com a própria vida.


E tem outra. Cada próxima batida do coração pode não acontecer, quem sabe? Há prédios que desabam, aviões que caem, atropelamentos, bujões de gás que explodem, salmonela na comida, celular que pega fogo, um pequeno meteorito entrando na atmosfera a ointenta mil quilômetros por hora bem na noite em que eu acampava longe de tetos seguros, relâmpagos, choque no chuveiro, escorregar no sabão e bater a cabeça na pia.

O que, neste último caso, já quase quase aconteceu. Cheguei meia noite e tanto no apartamento de uma amiga fotógrafa, que morava em Madrid, para um turismo barato de fim de semana. Eu só a havia visto uma vez. Amigos em comum, contato via Facebook e essas coisas. Depois dos cumprimentos era tomar um banho e dormir. Escorreguei na banheira e caí de costas para fora, destruí a cortina do banheiro dela e depois constatei que minha nuca passara a poucos centímetros da pia. Que morte estúpida teria sido. Ficar estribuchando no chão do banheiro da minha anfitriã aterrorizada até que qualquer resgate chegasse tarde demais. Por que é que eu estava viajando por ali, em primeiro lugar? Eu poderia estar cantando.


Mas é o que as pessoas normais fazem. Viajam e tiram fotos e colocam nas redes sociais. Trabalham meses juntando dinheiro para fazer algo nas férias e depois viajam para esquecer de tudo o que desistiram ao longo do ano.


Eu fiquei contente com o elogio. É claro que fiquei. A ponto de achar que boa parte dele foi uma gentileza exagerada. Não havia afinal nenhum compromisso ali. Mas não tenho como esconder minha crise.


Estou desapontado comigo por nunca ter confiado o suficiente em mim para continuar a me desenvolver numa ascensão monotônica, ainda que lenta, por todas essas décadas. E estou desapontado comigo por não prestar nem mesmo para ser um fracasso total e viver assim livre das torturas das dúvidas. Fracassei em ser um sucesso e fracassei em fracassar.

Vejo o sol preguiçosamente aparecendo novamente no horizonte e penso no poder dessas teimosias cósmicas. Sinto-me, de repente, uma espécie de rascunho bonito. E vou pensando em como passar a limpo.

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