quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Escada

Eu ia escrever de amor agora. Eu ia escrever de solidão. Ou de alegria, quem sabe? é tão bom escrever sobre alegria, e escrever com alegria. Altivo, animado, inteligente e ainda por cima-bem humorado: o certificado indubitável que grita com o silêncio nobre das letras: "sou uma boa pessoa".

Dane-se. Acho que só gosto de ficar batendo nas teclas. Do barulho que faz. Que mal há? Precisa ter um tema?

Temas há tantos, tantos tantos tantos!

Mas quando a gente escolhe um tema e escreve e escreve sobre ele, escrevendo bem ou escrevendo mal virão muitos a ponderar, avaliar, comparar.

Que é o jeito errado de viver boa parte das coisas da vida.

Comparem os cálculos estruturais da viga da ponte gigante, que desses aí, os errados são assassinos, que a natureza não perdoará.

Mas quanto aos lirismos da alma vomitados em letras quaisquer, não, não há comparação possível, pois sua realidade se define em si.

Na escada suja da Estação da Luz, empoeirada, mal acabada, uns mendigos no chão, cantando felizes uns funks quaisquer, jogados na calçada, cobertores rasgados que afugentariam o frio mais por dissuasão psicológica do que por qualquer isolamento físico. Riam, riam e se riam.

No divã de estofamento aveludado a loira pastificada, siliconada e botoxada (leia "botochada" mesmo, pra ficar mais debochado), ia lá falando das mazelas da vida.

A bolsa do doutorado não saía. Ônibus lotados todos os dias. Ninguém respeitando a privacidade espacial seu corpo feminino: homens se apertando contra sua pequena estatura com a desculpa inegável da coletividade sobrecarregada daquela indecência administrativa. Baixinha, miúda, ia indo. O filho em casa, pequeno. Os pais dela ajudando ainda. E o pai do menino sumiu. Não deu certo, paciência. E ria, e ria com a criança, e contava histórias. E passava o dia no laboratório, escrevendo, lendo, tubos de ensaio, microscópio, egocentrismo da orientadora, exigências idiotas da FAPESP, burocracias fossilizadas da universidade. E conversava rindo, que o Hubble não daria conta de medir a beleza dos seus sorrisos.

Tem todos os temas ao mesmo tempo, mesmo quando a gente não escreve nada demais, nada específico. Tem todos os temas dentro da gente. O leitor que só vê palavras, desculpem ser politicamente incorreto: é um fraco, um idiota, um limitado. É alguém a quem nada mais resta fazer a não ser comparar com outros, a não ser esconder-se atrás de uma pretensa cultura para negar a fraqueza de sua introspecção.

O bom leitor encontra-se com o autor através do tempo. Transcende, entende. Entende que tantas e tantas diferentes expressões nascem das mesmas perturbações da alma.

E você não se engana, não: já mais de dois temas se vão discutindo aqui, sem conexão aparente.

Que a confusão da alma também é um tema em si, não é?

Nenhum comentário: