domingo, 26 de janeiro de 2020

Sobrado

Eu moro numa casinha num bairro jogado. Desses que, se aparecerem na TV, será num programa de doação de eletrodomésticos e móveis de quinta categoria ou, mais provavelmente, num jornal policial (também de quinta categoria). Jornais de boa qualidade estão por demais preocupados com indicadores mundiais e fofocas da política para gastarem alguma atenção com a monotonia dos rios de sangue dessa gente que morre por atacado mas nunca acaba.

Tem uma pizzaria aqui embaixo. Sim, é um sobrado, e embaixo é uma pizzaria. Moro num quartinho, na verdade. A casa é alugada por três pessoas. Um engenheiro, um estudante de física e uma estudante de letras. Eu, no caso, sou o engenheiro. Mas não se deixe iludir. Os estereótipos, como sempre, são distorcidos com muita selvageria pelas circunstâncias da vida. Eu passo todo meu tempo livre aqui às voltas com música e leituras. Já a estudante de letras, que não sabe o que quer da vida, não perde uma festa sequer e está cada semana com um cara diferente, que invariavelmente se apaixona por ela. Que invariavelmente toma um pé na bunda e fica arrasado. Que invariavelmente transforma o vazio amoroso em raiva na semana seguinte, quando aparece aqui e dá de cara com o mais novo substituto. Já o estudante de física, não, não está o dia inteiro em livros e em experimentos malucos e cálculos sem fim. Política. O negócio dele é política. Quer saber quem será o próximo reitor da universidade. Não entende o descaso do governo federal com a educação. Não entende o descaso de todos com o descaso da política. Não entende que eu seja engenheiro e só esteja preocupado com o bem-estar imediato do meu dia-a-dia. Não entende que a Laura seja humanista em formação e só queira saber de sexo, bebida, dança, sexo, homens, sexo, dinheiro, sexo e viagens.

Eu gosto da vida por aqui. Mudei faz coisa de um ano, por aí. Aqui é perto do trabalho. La no outro bairro em que eu morava, do outro lado da metrópole, lá era um canto esquecido, desses que nunca aparecem nos jornais de importância e onde vai se vivendo. Igual aqui. Mas era longe do trabalho. Como toda periferia, os dias de calor transformam tudo num inferno. Não temos uma piscina porque no lugar dela já tem vizinhos. Não temos vento porque são paredes e mais paredes por todos os lados. E os cômodos são pequenos demais pro vento entrar. Quente, no verão é quente. Mas fico à vontade.

Mudei só querendo ficar mais perto do trabalho. Mas descobri que mudar é bom. Deixei tanta coisa de lado. Lá em casa tinha minha família. Tinha meu jeito de viver os dias. Aqui como que me vi totalmente livre pra bolar dias novos. Foi assim que finalmente realizei meu desejo de começar a ler e a escrever mais. E a música, ah! A música. Todo final de semana vem uns amigos. Violão. Flauta. Pandeiro. Tambores de qualquer espécie, do bongô mais caro da Teodoro até uma lata de lixo ou balde velho, devidamente testado para identificar os timbres certos. Cantamos. No improviso ou na lembrança, no plágio ou na inspiração. Música é música. Música lava a alma. Lá na minha outra casa não tinha dessa mesma música. Dessas pessoas assim, que vinham, cantavam e iam embora. E lá a pizza demorava bem mais pra chegar. Lá eu tinha outras coisas pra fazer. Não podia sentar e ficar assim escrevendo à toa, porque tinha tanta coisa pra fazer. As paredes precizando de pintura, o gato precisando de comida, as poeiras precisando de vassouras.

Gosto daqui. Das pessoas que logo vão sumir. Gosto de saber que logo acaba, e que ninguém está dramatizando com isso. Gosto de saber que vai mudar logo, e não fazer a menor idéia de como vai mudar. Vai mudar e pronto. E os segundos são os mesmos, sempre os mesmos, e segundo após segundo, fico eu com esse sorriso espontâneo grudado na cara, de quem gosta de viver e está achando tudo muito bom.

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