sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Leonora

Ah, o mesmo movimento. Quantas vezes isso já aconteceu? A história é testemunha de que não há repetição que traga prática suficiente para evitar problemas. Quem quer que se aventure neste ofício deve abstrair destas impossibilidades. Ou, por bênção do acaso, deve possuir uma mente que já venha de fábrica muito pouco propensa a abstrações. Não é, portanto, nenhuma coincidência que seja assim as mentes dos mecânicos. Rústicas, brutas, como as chaves que seguram. Como o ferro que martelam, giram, derretem, puxam...

Lá está o Décio. Roupa completamente suja. Mãos, braços, tudo com o negro pegajoso do óleo, como a poeira do ambiente. Até no rosto. Um barulho estranho no escapamento. Um cansaço da engenharia e uma vitória da perseverante força da natureza que a tudo busca retornar ao caos. Mas lá vai o Décio e salva a civilização. Localiza o parafuso solto, o ferro torto, e endireita o perfeccionismo dos nossos anseios pelas melhores máquinas como metáforas para melhores vidas. Quantos Décios constroem a história? As pontes que permitem que o passado caminhe até o futuro com um ritmo sempre otimista?

Décio não sabe nada disso. Amaldiçoou um golpe mal dado que lhe meteu o alicate no indicador e depois ficou pensando que talvez tenha achado o defeito rapidamente demais. Afinal foi a Leonora, uma jovem arquiteta, que trouxe o carro. Uma jovem chamada Leonora, e dirigindo um carro desses, com câmbio automático e bancos de couro, não saberia a diferença entre um escapamento meio solto e um pistão faltando. Ele poderia ter enrolado um pouco mais e encontrado um outro defeito. Mas Leonora tinha olhos negros profundos e cabelos da mesma forma. E uma pele branca que parecia pintura, quase artificial de tão perfeita que era a combinação. E pediu o serviço com um sorriso. Algumas mulheres riem pelo instinto natural que tem nossa espécie de sorrir. Mas outras parecem saber que há no sorriso algo mais que uma mera reação visceral. Entendem tratar-se de uma verdadeira arma. E foi assim que fez Leonora. Incurtiu em Décio uma empolgação, uma empatia tal, que logo estava ele embaixo do carro, todo imundo, porco do suor que não se podia evitar no calor da pequena oficina, feliz. Resolveu o problema rapidamente. Não ganharia muito, mas ganharia um sorriso. Era apenas um mecânico. Na maioria dos dias um zé ninguém distante de toda a poesia de suas realizações. Mas sabia que muito em breve, ainda que por pouco tempo, seria no olhar agradecido de Leonora o melhor de todos os mecânicos do mundo.

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