- Sabe cara, é estranhíssima essa situação, por um lado você totalmente convicto de que agiu corretamente, mas ao mesmo tempo meio mutilado, sabe que a deixou mal, ou então parte de você com raiva dela, porque ela falou coisas que agora você quer revidar de formas muito melhores pra não deixar barato.
- É uma bosta... Mas não tem como ser diferente, não é?
- Não, não tem mesmo. É sempre assim.
- Ela disse que há coisas mal resolvidas no meu passado. Disse que a Melina está querendo me manipular, que é a Melina que fica fuçando no Orkut dela e tal, disse que descobriu alguma mentira nas coisas que eu já falei pra ela e que por isso perdeu a confiança em mim, mas não quis dizer que mentira foi essa.
- Nossa, isso é bem sério!
- É mesmo! Mas sabe, eu não tenho a menor idéia de qual mentira pode ser essa, e é muito, mas muitíssimo provável, que esta mentira seja alguma invenção da mente doentia dela, que fica caçando coisas. Pra mim, ainda que houvesse mentira, o problema continua sendo esse... O que ela está se metendo no meu passado? Cada um tem um passado diferente e o que importa é o daqui pra frente.
- Mas sua mentira foi um evento do presente, pertencente já à história de vocês dois.
- Boa, isso é verdade. Quer dizer, é verdade se eu menti, e eu acho que não. Acho que é coisa da mente doentia dela, como já disse. Mas tá, a mentira é um evento do presente... E por que, no presente, ela foi fuçar no meu passado?
- E se ela tem que ter uma postura de indiferença com relação ao seu passado, no sentido de que não deve fazer de qualquer coisa um verdadeiro cavalo de batalha, por que você não pode ter a mesma postura consigo mesmo e ser indiferente ao seu passado, deste modo falando livremente dele justamente porque não importa mais nada?
- Sei lá, ou fraqueza, talvez eu não quisesse que esse passado tenha acontecido, talvez eu tenha mudado a ponto de repreender certas coisas em mim, não ao nível do arrependimento, da crise de consciência, mas não quero mais que coisas do passado invadam o presente me definindo, aí decido esconder as coisas, é uma explicação plausível, não é?
- Humana demais, talvez.
- Sabe, falar que há algo de errado com meu passado, algo não resolvido em mim... Ela me manipulou, no fundo foi ela quem me manipulou. Eu sempre fui muito claro sobre tudo nessa história, mas ela nunca me deu ouvidos e acabou levando a história até um ponto insustentável.
- Como assim?
- Desde o começo eu falei explicitamente que não queria nada sério. E quando vai ver, a gente já está namorando! Quando viajei pra praia com ela, falei pra ela que minha vida estava mudando com o trabalho, que eu teria pouco tempo pra ela, que não nos veríamos sempre. E daí passamos a nos ver todos os finais de semana.
- Talvez ela não se sentisse segura.
- Exatamente, não se sentia. Ela não se sentia segura porque eu era transparente com ela. Se desse um jeito de vê-la todo final de semana pra fazer uma média, mandasse mensagenzinhas todos os dias cheias de declarações e tal, daí pra frente pouco importaria se eu comesse uma puta por dia. Mas não, eu só tinha minha mente voltada pra ela, e queria poder me dedicar às minhas coisas com o mesmo afinco que faço em tempos de solteirice, não gosto da idéia de alguém estar tomando meus pensamentos no meio do dia, não gosto da idéia de falar horas com ela no telefone ao longo do dia ao invés de andar pensando em outras coisas, outras quaisquer que sejam, porque tudo o que eu quero é esse tempo pra mim. Ela me acusou de não conseguir organizar a minha vida. Em parte tem razão, dou vários tiros no pé, é verdade. Mas é mentira que eu não consigo tempo pros meus amigos, pra minha casa, e pro meu trabalho e minhas aulas. A verdade é que nesse meio tempo em que ela esteve na minha vida, aí sim as coisas se bagunçaram. E se bagunçaram porque ela entrou com os pés na porta querendo tomar pra ela mais do que eu estava disposto a oferecer. E erramos os dois ao achar que havia como acomodar essa discrepância fodida de quereres que não se batem.
- Não precisa dizer que só tinha a mente voltada pra ela. Pouquíssimas pessoas passam repetidas vezes na vida por essa experiência de ter a mente tomada única e exclusivamente por uma pessoa. E mesmo nesses casos extremos é idealístico demais dizer que nunca passa por essa mente apaixonada considerações paralelas desta ou daquela vez que uma pessoa encantadora aparece surgida detrás de uma novidade qualquer.
- Tá, não quero dizer que meu coração é o lugar mais vazio do mundo, pois a verdade é longe disso, mas o fato é que fui fiel a ela esse tempo todo, e sem esforço algum, com naturalidade, e é foda pra mim, mas muito foda mesmo, saber que ela paga um pau ferrado pro Gustavo, por exemplo, pela forma apaixonada e cheia de atenção que ela o viu tentar reatar com a namorada. O que ela não sabe é que enquanto ele tentava reatar com a namorada comprando toneladas de flores e chocolates, comia uma por dia a semana inteira, ou puta ou uma coitada qualquer lá do serviço dele, e aí tudo passa a se justificar. Se eu comesse sei lá quem durante a semana, chegaria aos fins de semana certamente muito mais atencioso também, pois precisaria dar um jeito de jogar minha culpa pra baixo do tapete produzindo na outra pessoa qualquer sentimento de alegria cuja aparência se sobrepusesse à consciência dos meus erros.
- Calma, calma, não precisa também sair punindo os outros, julgando quem é ou não é mais culpado ou sei lá o que. Deixe seu amigo viver a vida dele como ele bem entende e você procure viver a sua como bem lhe convenha, é nisso que tem que se concentrar. De que adianta se comparar aos demais quando há tantas e tantas formas de vidas diferentes aí e não temos como saber, realmente, qual delas produz a pessoa mais feliz? Concentre-se na visão privilegiada que tem da sua própria vida e faça o melhor que pode fazer para si.
- Mas é isso que estou fazendo. Não estava bem nesse relacionamento que foi pra onde eu não queria ir, e saí dele. Essa discussão sobre o Gustavo é paralela, é só pra enriquecer a ironia que encontramos no mundo.
- Ah, as ironias do mundo. No fundo, confesse, você gosta disso, não é?
- Das ironias? Ô se gosto!
- Não não, não fique só nas ironias. Não é só delas que gosta. Gosta dessa vida bagunçada que te permite encontrá-las, não é?
- Ah sim, isso também.
- Sabe, às vezes você fica cheio de problemas com suas confusões, ou relacionamentos com as mulheres, ou suas confusões na sua casa, seu irmão distante, seu pai, enfim, uma série de coisas. Mas você criou um espaço no meio disso tudo, que por estranho que seja, você protege com um afindo assustador.
- Tá, acho que até faz algum sentido, se é o que estou pensando. Mas que tipo de espaço você quer dizer?
- Uma espécie de solidão móvel que você carrega em torno de si para mundos diferentes para olhar as coisas de um ponto de vista privilegiado e depois retornar em segurança ao calor do seu quarto e meditar a respeito. Você acorda e diz pra uma parte de si olha, vou ali fora olhar o mundo e já volto, tudo bem? E essa outra parte não vai junto não. Fica em casa, esperando o retorno. Tua crise aí com essa moça foi essa mesma, ela queria as duas metades, tá certa ela. Estranha essa sua relação de se reservar tanto, não acha?
- Ruim na medida em que faz mal pra mim ou pros outros. Neste caso, começou a fazer mal demais pra ela e eu não consegui fazer isso parar sem que não fizesse mal pra mim também, daí resolvi parar.
- E vai ser assim pra sempre? Se for assim, talvez você acabe se isolando de todo mundo, porque no fundo o que você está fazendo é impedir que as pessoas tenham acesso a uma parte de você, que mais cedo ou mais tarde, você deveria dividir com alguém.
- Por que diabos eu teria que dividir com alguém essa metade do meu íntimo?
- Porque se não essa metade nunca vai existir. Só existe o que é compartilhado. Talvez alguém tenha pintado quadros melhores que os de Monet ou Van Gogh, e os pintou em isolamento e jogou as telas no rio ao lado. Talvez alguém tenha feito músicas mais fantásticas que as de Mozart, Vivaldi, Beethoven, mas perdeu as partituras. E daí? Talvez alguém tenha feito a melhor piada da história, e morreu de rir ao contá-la pra si mesmo, e pro resto do mundo, que não soube dos detalhes, a coisa toda não teve a menor graça, pois só tiveram que carregar o corpo e nada mais.
- Você está perdendo o foco.
- Como assim?
- Minha vida é vivida por mim. Sou espectador o tempo todo. Se ninguém mais vê minha vida, que usem esse tempo vendo as próprias vidas. Se não estou dividindo algo porque acho que esse algo é melhor vivido a sós comigo, então que respeitem isso e, se quiserem sei lá porque ter acesso a isso, que façam por merecer, que não estraguem a coisa toda, né? Você convida pra entrar na sua quem acha que a visita vai valer a pena, de alguma forma. E se, uma vez lá dentro, a visita começar a destruir tudo, então você a expulsa, não é?
- E sua intimidade é assim?
- É, é uma boa descrição.
- Você me parece frio.
- E você me parece permissivo demais, ou talvez desorganizado em seus princípios. Ou talvez você me pareça apenas decidido a me contrariar. No fundo você age como eu. Pode não pensar explicitamente como eu penso, mas aí é só falta de auto-conhecimento da sua parte, e não, em última instância, divergência entre a gente.
- Manipulação barata.
- Conversa dos diabos.
- Nem me diga.
- Sabe, mulheres, mulheres.... Eu as amo, sabia? Cada uma de um jeito, mas eu amo as mulheres.
- Como era mesmo a frase que você leu naquele livrinho lá?
- Que livrinho? Como você quer que eu responsa uma pergunta tão vaga?
- Aquele lá se como a gente se engana inconscientemente e tal, que falava sobre amar muito também, como era?
- Ah certo, lembrei. A frase era assim. Amar igualmente a todos equivale a não amar ninguém. Algo assim.
- Então. Sai por aí amando todas as mulheres, e agora fica nessas.
- Não é por aí. Há o detalhe. O igualmente. Eu não amo igualmente todas.
- Mas também não ama completamente nenhuma.
- Não misture as coisas, pelo amor de deus, não é disso que eu estava falando, quando digo sobre amar as mulheres... Sabe, as coisas precisam ficar mais quietinhas em seus próprios conceitos ao invés de sairem fugindo por aí pra outras discussões com funções deturpadas.
- Não fique bravo.
- Estou bravo, estou puto com tudo isso. Você fugindo dos contextos em que as coisas são compreensíveis. Pessoas se apaixonando por mim quando não deveriam, pessoas não se apaixonando por mim quando deveriam, meu gato besta querendo pular da janela enquanto eu escrevo...
- Então você ama alguém, não é?
- Amo, amo sim. Não, não sou correspondido. Não, não sou tão mal resolvido como parece. Eu deixaria essa moça desse último caso tomar o lugar dela, era só ela não ter tido tanta sede, não ter feito as coisas de um jeito que sufocou minha vida. Que me bagunçou, que me fez sair do meu próprio controle.
- Drummond tinha razão com o Quadrilha, né?
- Ô!
quarta-feira, 8 de janeiro de 2020
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