A minha métrica é a felicidade, a alegria pessoal vivida, sentida, experimentada.
Mas reconheço que há uma outra métrica, que pode talvez ser dita universal, que prioriza a originalidade, a complexidade agregada, e essas coisas. Assim, um livro de piadas que me faça rir é um bom livro para mim, mas uma grande obra filosófica, por mais merecimento que tenha na história do pensamento universal, só será boa para mim se eu me sentir, de alguma forma, feliz ao lê-la (pode ser uma felicidade sublime, contemplativa... não estou associando o mérito à gargalhada, mas apenas a um sentimento de prazer bom).
Aí é que, agora me ocorre, os bons livros se dividem em duas categorias, se tentarmos unir minha métrica à métrica universal. Existem os bons livros bons e os bons livros ruins. Os bons livros bons são aqueles tidos por todos como bons. Platão, Aristóteles, Marx e Weber são bons livros bons, assim como Shakespeare e sei lá mais quem. Já livros como A Expansão da Memória, de Luís Carlos Eiras, de 1986, se forem conhecidos de alguém mais além de mim, provavelmente serão considerados no máximo como uma ilustre porcaria. O mérito desse que citei, dirão, talvez seja o de ser uma sátira da informática escrito numa época em que a informática ainda engatinhava. Só isso. Mas, em termos de literatura mesmo, de estilo, impacto filosófico e tudo o mais, deve ser considerado pelos caras da Academia como um livro ruim. Já eu o considero um livro bom. Então junto as duas definições e tenho aí um exemplo de um bom livro ruim. Outros exemplos de bons livros ruins: Tratado Geral dos Chatos, de Guilherme Figueiredo, e O Guia do Assaltado, de Roberto Schneider e Vilmar Rodrigues (foram precisos DOIS para escrever esse!). Nenhum desses custará mais que US$0,70 em nenhum sebo do mundo.
Claro deve ser que um bom livro ruim não precisa, necessariamente, ter esse viés de tosquice desvexada dos exemplos acima. É mais uma questão de gosto mesmo. Para quem não gosta de Woody Allen e considera suas peças uma literatura menor, um recorte mal feito de questões que estão muito mais bem abordadas em outros lugares, tratar-se-ão de livros ruins. Como eu gosto de Woody Allen, então, passo a considerá-los também exemplos de bons livros ruins.
Até aqui, me preocupei só com terminologia, o que é uma chatice só (cf. Figueiredo, 1975, que também critica uso indevido de citações). Tenho, contudo, algo a acrescentar. Vou defender que os bons livros ruins são MELHORES que os bons livros bons. Ou, ao menos, que é muito mais nobre a admiração por um bom livro ruim do que a admiração por um bom livro bom.
Vamos lá... Ao admirar um bom livro ruim, você está assumindo ter tido prazer frente a uma arte menor. Então está valorizando o livro com base unicamente em um sentimento que você experimentou, e não em nenhum mérito do livro em si (já que, por definição, esse mérito nem precisa existir!). Você está declarando gostar da vida, valorizar a felicidade. Está dizendo que encontrou algo que tomou seu tempo mas que, como dentro de si algo se sentiu bem, o tempo não foi perdido. Está celebrando a simplicidade e ao mesmo tempo mostrando que você não se vende a padrões estéticos externos, já que sendo o bom livro ruim provavelmente uma grande bosta que não vale nada, declará-lo como algo bom é equivalente a colocar um piercing ou uma tatuagem em um mundo em que ninguém o faz. É equivalente a pintar a casa de verde num bairro em que todas as casas são cinzas. Todos os olhares serão de "hã? Tá louco!". E sua resposta, íntima ou em alto e bom som, será: "que é que tem? gostei, ué!".
Já gostar de um bom livro bom é algo muito suspeito. Talvez só na microscópica minoria dos casos trate-se de uma admiração genuína. Mas, em geral, gostar de bons livros bons levanta suspeitas de elitismo, de fraqueza nos julgamentos estéticos e morais, de falta de originalidade e até mesmo de falta de dedicação ao assunto. Se você realmente gosta de livros, não é possível que não tenha ainda achado algum por aí de que só você goste, um autentíssimo bom livro ruim. E vou ainda mais longe... Não é apenas DOS OUTROS que devemos desconfiar quando dizem gostar de um bom livro bom. É de nós mesmos. Será que realmente captamos a profundidade filosófica da obra, vislumbramos uma nova idéia, e tivemos pequenos orgasmos intelectuais a cada parágrafo, ou será que estamos desfrutando apenas de uma sensação de fartura de nossa vaidade, que acabou de se alimentar de um requintado e reconhecido pedaço literário? É em geral difícil saber a resposta, tão propensos que somos ao Auto-Engano.
Sei que vão dizer que estou construindo tudo isso apenas para defender meus péssimos livros como portadores de algum mérito. Não, não é isso, estou só registrando a idéia, talvez sob seu palpite mais uma idéia ruim dentre outras tantas do livro. Mas, ainda que estivesse falando tudo isso apenas para me defender, reconheça que fico com algum crédito no final... Afinal de contas, não é muito mais interessante defender um livro admitindo a hipótese de que ele é péssimo ao invés de fingir ser o único no mundo a achar que ele presta? E não é, por fim, uma sacada de mestre dizer: "tá, o livro é ruim! mas se ele te agradar, o fato de ser ruim frente a critérios estabelecidos é ainda uma razão a mais para que você o valorize!". E é aí que os invariavelmente pessimistas com problemas psicológicos (o tipo de gente que jamais deveria ler Freud) vai dizer: "se eu admitisse tudo isso, teria que reconhecer que um livro ruim que ninguém valoriza me divertiu, e isso revela antes de mais nada algo sobre mim, não sobre o livro. Qual a vantagem de descobrir que seu íntimo se identifica muito com algo que todo o resto do mundo desvaloriza?". Quanto a esse tipo de gente, que não sabem se bastarem da própria companhia em clima de paz, não posso fazer nada. Não sei se o Figueiredo reservou um capítulo a eles, mas acredito que sim! Caso contrário, já é hora de um volume 2, com melhorias!
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