Um dia desses marquei uma reunião com meu autor. As coisas estavam muito bagunçadas, eu estava ficando perdido. Pra começar: sou um pseudônimo ou um heterônimo? Sim, essas coisas precisam ficar bem claras, se não a gente não se organiza, sabe?
Aí ele insistiu para que eu fosse um heterônimo, falei que tudo bem até, mas que isso dava muito trabalho e tal. Ele não mudou o pagamento. Ora, é muito pouco! - esbravejei. Ele ficou irredutível.
- Um personagem fictício não pode viver só de migalhas!
- Ué, não pode?
- Claro que não! É abuso, exploração, escravidão até!
- Ué, mas um personagem fictício não precisa se alimentar, não precisa andar de carro, não precisa ter um guarda-roupa tridimensional como o nosso! Você não precisa de um salário!
- Como não, como não? Olha, um personagem fictício desses figurantes por aí, vá lá. Aparecem num conto, colocam a cara na página, falam umas coisinhas e somem pra nunca mais aparecer em sebo nenhum. Esses realmente, não precisam de nada. Mas e eu?
- Ô bonitão... o que tem você de especial, hein?
- Não ironize! Respeito, ou te denuncio no sindicato! Eu sou um heterônimo, não é isso que exige de mim? Um heterônimo tem que ler outros livros, ter outros princípios políticos, se vestir de outro jeito, amar outras mulheres, ver outras paisagens... Como quer que eu faça tudo isso se ficar o dia inteiro sentado num canto aí vivendo a vento esperando você aparecer?
- Não não, é que...
- É que nada! Sem essa de é que. Exijo um salário, décimo terceiro e tudo, e exijo horário de trabalho definido. Cara, um heterônimo assim culto, viajado, ter que ficar servindo pras suas historinhas no meio da madrugada, soa a fim de carreira, né não?
- Você não está feliz?
- Estou exigindo meus direitos, isso não tem nada a ver com felicidade!
- Você está bravo comigo?
- Olha, não estou bravo. Só estou atrás de uma relação profissional, para que tudo funcione bem. Eu cuido da minha vida, você cuida da sua. Que tal?
quarta-feira, 28 de agosto de 2019
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