domingo, 10 de janeiro de 2016

Choro

Era início da noite. Hora das mães darem às crianças comidas gostosas e broncas por modos inapropriados ou escolhas erradas de cardápio. Mas minha mãe chorava sentada na beirada da cama. O quarto escuro. A noite já escura demais. Não digo que chorava copiosamente porque nunca entendi essa expressão. Quem quer copiar um choro? E porque justamente um choro intenso inspiraria essa idéia de cópia, como inferiu minha curiosa ignorância acerca do uso dessa problemática expresão. Fiquei ali em pé naquele chão de tacos de madeiras. As ranhuras cheias de poeiras e pulgas escondidas que meu pai matava quando fugiam do calor para se alimentarem de nossas entranhas. Olhei minha mãe e a via soluçar de olhos cerrados. Essa expressão eu entendo. Chorar triste assim vai serrando mesmo. Primeiro os olhos, desce pelo nariz e chega fundo na alma. Uma trinca que se abre. O choro é o terremoto na tectônica da alma.

Eu tinha nove anos. Meu pai, com seus quarenta e cinco, havia decidido ir embora e assim o fez. Pegou aquele fusca amarelo, colocou em tudo o que era espaço livre suas malas velhas e sacolinhas de mercado cheias das coisas que lhe assegurariam não precisar retornar. Meias. Sapatos tênis e chinelos. Os desodorantes baratinhos de usar no dia-a-dia e aqueles perfurmes um pouco mais caros, de jogar por cima para disfarçar a pobreza dos outros cheiros. As camisas e calças. Bermudas. Livros. O que coube. Uma luminária de lâmpada fluorescente. Uma caixa de ferramenta que o possibilitaria ser útil diante de qualquer emergência doméstica que nunca acontecia. Ele só não tinha uma ferramenta de consertar o choro da minha mãe, que largou ali chorando como a gente joga no canto uma lâmpada que não tem mais jeito. Fique lá ela com seus defeitos que vamos arranjar outra coisa.

Eu não entendi nada disso na época, é claro. Meu pai estava indo para o carro mas ele sempre ia para o carro. Todo dia saia com aquele fusca barulhento que precisava de aceleradas exageradas para não morrer na marcha lenta. Todo dia ele voltava. Quando carregava o carro em exagero era para viagens. Demorava mais, mas voltava também. O que havia de errado?

Ele tinha pressa e pediu para meu irmão ajudar no carregamento das sacolas, malas e caixas. Ainda hoje meu irmão o olha como um agressor que o mutilou. E eu entendo. Porque é de uso comum dizermos "meu pai". E esse "meu" é uma posse. Meu irmão foi obrigado a levar ao carro algo que era posse dele. Foi roubado. Meu pai se transfigurou ali em um assantante que roubou a si próprio do lar ao qual pertencia. Das pessoas que o possuiam. Esse é o dilema insolúvel das separações: ele se pertencia também e, dono de si, bem podia se levar a qualquer canto a qualquer hora.

Sem entender nada disso, até porque as décadas ainda não tinham transcorrido, eu olhava minha mãe se transformar lentamente em lágrimas e soluços. Eu precisava falar algo. Ou fazer alguma coisa. Buscar uma almofada. Fazer um chá. Oferecer benflogin ou biotônico fontoura. Essas coisas todas que os adultos me faziam para induzir melhoras e reforços. Eu não sabia fazer nada disso. Não mexia no fogão e não alcançava o armário dos remédios. Só sobrou falar. Balbuciei incentivos como pude. Mãe, falei, você é como uma formiguinha.

Ela ficou me olhando, um pouco sem saber se devia continuar a chorar. Porque o enigma daquela declaração desconexa roubava suas atenções. O que, embora eu ainda não soubesse, já era um lucro e uma das grandes vantagens das declarações sem sentido imediato. Prossegui tentando dar um sentido àquilo. A formiguinha, expliquei, é muito pequenininha, mas carrega coisas bem pesadas quando precisa. E vai muito longe. E nunca chora. Já viu, mamãe, formiguinha chorando? Eu nunca vi, e já olhei bem de perto.

E aí ela chorou mais. E eu achei que tinha feito tudo errado. Mas ela me abraçou forte, bem forte. E aí eu comecei a aprender que existem vários tipos de choro.

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