sábado, 30 de outubro de 2010

Confissão

É que eu não me sei, entende? Você me olha, você me vê, me transpassa e ainda assim, também não me sabe. Você não me sabe e eu não me sei. Sou impulsos pra tantos os lados todos... A multiplicidade é cruel, sabia? A soma de todos os vetores que existem apontando em todas as direções é precisamente zero. A multiplicidade absoluta e infinita. E o completo nada. A mesma coisa. É que eu não me sei, precisamente por me saber demais, e ninguém é nessa extensão toda que finjo ser. É que ninguém é nessa lonjura toda que minto alcançar. Então não me perdoe, que é culpa minha. Foi culpa minha. Eu vim pra cá. Eu andei até sumir do seu horizonte. Do meu horizonte. Da linha do horizonte. E hoje é só um dia, sabia? E a gente sente o cheiro de toda a história. E a gente sabe de coisas de amanhã e de depois. O dia em que estamos é sempre o único dia que a gente não vive, mal experimenta até, gastando tempo pensando no resto deles. Vou terminar de construir o muro. Vou pintar a parede. Depois vou sair andando para outra cidade. E não vou levar nada. Não vou levar minhas roupas. Não vou levar meu dinheiro. Não vou levar meus documentos. Não vou levar meu rosto, minha saudade, meus amores, meus pensamentos. Vou ser outro. Vou a pé.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Moeda

Ele quer alguma moeda que o ajude a sobreviver mais um pouco à sua leucemia enquanto tenta de alguma maneira manter os filhos vivos e lutar contra as doenças deles. A pobreza deles. Deles todos.

Ele não vê a hora de chegar em casa, tomar um banho quente, ligar a TV e não assistir nada. Descançar os pés jogados em cima do sofá. Desligar a mente jogada num monte de nada.

Ela quer dar um destino melhor a cada um dos seus seis filhos. Quer que alguém compre seus chocolates e assim nunca mais precisará roubar. Roubar é repulsivo. Tira-se dos outros mas perde-se de si.

Ela só quer ver os e-mails quando chegar em casa. Saber do namorado. Saber da próxima balada de aniversário. Ler as notícias sobre o meio ambiente. Ler os textos cult sobre a miséria urbana.

Eles ocupam o mesmo vagão. Eles nunca fazem a mesma viagem.