quinta-feira, 30 de abril de 2015

Foto #120


Colecionador de sonhos

Sentado na poltrona. O chá esfriando na mesinha ao lado. Barulhos de vida lá fora. Gatos no telhado, crianças tomando bronca na casa ao lado. Rojões de torcida de futebol em algum lugar um pouco mais longe. E minha estante, na parede oposta, cheia de livros. Sempre achei que era isso. Uma estante cheia de livros.
Mas não é. Descobri que não é. A estante está cheia de sonhos.
Sou feliz por, cedo na vida, ter podido comprar muitos mais livros do que eu conseguiria ler. Mas esta felicidade é, em parte, artificial. A equação tem duas variáveis. Número de livros comprados e número de livros qu eu consigo ler. E este segundo número é baixo, o que faz o cálculo resultar em um número elevado. E este número é baixo porque a vida me engole. Ir ao trabalho. Atenção à família. Atenção à namorada. Essas coisas fazem parte, não estou reclamando delas ou questionando seus méritos. A questão, na verdade, é eu ter comprado, e continuar comprando, tantos e tantos e tantos livros a mais. E, pensando nisso, foi que descobri. São sonhos.
Sonhos sobre o que eu quero saber. Sonhos sobre os assuntos sobre os quais quero conversar. Sonhos sobre os tipos de pessoas que eu gostaria de conhecer. Gente interessada nesses assuntos. Gente que leu os mesmos livros que eu li ou, vá lá, que gostaria de ter lido. Sonhos de uma vida mental e interior algo diferente.

Eu já sabia

Dois textos por dia. Uma foto também. O que totalizam três postagens todos os dias. Aguentei até o final de abril até minha primeira grande tropeçada, mas estou colocando as coisas no ar novamente.
Fato é... eu já sabia que isso ia acontecer.
O que na verdade eu não sei é se essa crença prévia no fracasso era apenas um bom nível de auto-conhecimento ou se foi a própria crença que causou o problema. Ando inclinado a esta segunda leitura.
Temos dificuldade em acreditar de forma natural e espontânea que tudo vai dar certo.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Foto #119


Errados somos nós

Cachorros, balas de borracha e spray de pimenta contra os professores. Mas eles estavam bagunçando demais. Foram eles que começaram.
Outro vídeo: uma senhora tenta entrar em um banco, mas a porta está apitando por conta de uma placa de metal que ela tem no corpo. Um policial manda ela sair da porta, por estar obstruindo a passagem dos demais. Ela se recusa. O policial a arranca a força, arremeçando-a no chão. Mas, como bem comentaram abaixo, ela estava errada. Não estava colaborando com os pedidos do policial.
Errados somos nós todos. Nós que pensamos ser possível não baixar a cabeça com o que há de errado no mundo.
Vi a Yara hoje. Ela foi mais que ultrajada pela Etna. Comprou móveis lá no início do ano e já há quase quatro meses não consegue ainda receber o que comprou. Tive certeza de que ela iria cancelar a compra. Nas não. "Ah, eu gostei da estante e da mesinha, vamos ver se eles conseguem entregar dessa vez." Certa está a Yara, que abaixa a cabeça para o que está errado, sem reclamar.
Nação de vira-latas sujos e chutados.

Zen

Estou com o peito apertado. A alma cansada. Os sonhos moídos. A estante cheia de livros. Não sei bem o que eu quero. Quero mais vida. Quero outra vida. Quero tempo para ver pessoas queridas. Quero coragem para fugir das pesoas que não quero. Essa é minha culpa, não é? Meu tabu pessoal... Minha falta de coragem em rejeitar, em deixar. Como dói abrir espaço a machadadas. Hoje não estou zen. Hoje queria xingar alguém. Ofender mesmo, com gritos desses de sentir as bochechas tremendo.
Por que não estou zen hoje?
Quantas pessoas se fazem esta pergunta?
Você conhece as origens da sua paz interior? Conhece bem o que é um bom combustível para sua alma e o que apenas a açoita em sofrimentos dispensáveis?
Sem ter sequer este conhecimento, como é possível fugir das coisas ruins e procurar as coisas boas?
Pensar. Escrever. Um tempo para poder fazer isso. E, simplesmente por ter começado, já me sinto um pouco melhor.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Foto #118


Distâncias

Querida, obrigado pelas fotos. São de longe, tão longe. Mas trazem tantas histórias. Gostaria de ir aí, vez ou outra, e caminhar despretenciosamente tal qual fizemos três anos atrás. Você me contou de sua família. Eu contei da minha. Você me contou dos bairros da cidade, dos segredos ali escondidos. Roubou até hoje minha imaginação. Vejo estas fotos e penso que cada uma delas é também como aqueles recantos escondidos dos quais me falava. Lugares pequenos, pequenos sim. Mas também grandes: grandes porque profundos.

No sofá dos réus

Bem poderia ser o banco dos réus. Mas é mais largo e estofado. É o sofá dos réus. Porque no momento todos os que estão ali são meus acusados. A mãe. O pai. O filho. A filha. A família toda. Mas confesso que simpatizo com o pai e acuso mais gravemente a mãe.
Não se faz isso com os filhos. Ambos estão profundamente afetados e, a esta altura do campeonato, é provável, praticamente certo, que as sequelas sejam para a vida toda. Vamos por partes.
O filho. Portador de um ego colossal, acredita que o universo vai conspirar para lhe dar o que merece e qualquer coisa que o distancie de uma vida rica e bem sucedida deve-se pura e simplesmente ao azar. Criação. Sempre foi dono de todos os direitos e alheio a toda e qualquer obrigação. Nunca teve que prestar satisfações e foi desses jovens que, logo cedo, ganhou um carro para poder usar como bem entendesse. Sim, é culpa sua, ó mãe que se faz de desentendida, vendo a TV como se a conversa não fosse com você.
A filha. Acredita que está velha. Trinta e poucos anos. Conheci tanta mulher que, aos cinquenta, tem um espírito muito mais jovem. Também não se aceita. Não quer aparecer em fotos mostrando a barriga. Ou deixando o papo no queixo aparecer.
E eu, desavisado, pensando que fossem traços dela, só dela. Um excesso de vaidade, falta de auto confiança. Mas descobro, olhando para este sofá, que a culpa é sua, mãe desnaturada. Pelo visto sempre deu mais valor à aparência dos seus filhos, ao modo como eles se portavam e se mostravam diante dos outros, do que a qualquer conteúdo genuíno deles. Talvez você nunca tenha conseguido realmente ler o interior de seus filhos, tamanha foi a preocupação constante com as aparências.
O pai, de algum modo que ainda não consigo entendre, fica alheio a tudo isso. Criou uma bolha imaginária dentro da qual as coisas estão bem. A família se reúne para o almoço, todos juntos. Sentam-se no mesmo sofá para ver televisão. Uma família perfeita. Mesmo sendo que os pensamentos não poderiam estar mais estilhaçados. Uma cabeça pensando mal do Brasil que aparece em uma cena na televisão, outra cabeça criticando a foto tirada na praia, porque mostra sua barriga. Outro pensando que a vida está sendo muito injusta com ele porque vai ter que viajar para Belo Horizonte a trabalho quando gostaria mesmo é de ir para Londres para ficar longe desse país de merda. E o pai ali no canto, feliz da vida, porque a família está reunida.
Com licença, preciso vomitar.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

Foto #117


Celebrações

Já tem alguns anos. Não faço uma festa de aniversáro para mim como acontecia antes. Casa cheia de gente. Todos convidados. Sem me importar com a afinidade dos convidados, pois no fundo todos se entendem e encontram os seus espaços. Tem um tempo já que desisti de comemorar. Há alguma melancolia ali. Há alguma tristeza também porque nem tudo se desenrolou como deveria. Há uma aceitação depressiva de que certos sonhos se mostraram, ao longo dos anos, nada mais do que sonhos.

Seqüestro

O dia de hoje acabou. Tem mais dez minutos só. Dez minutos. O que não dá para nada. E todos os meus planos foram pelo ralo. Foi desde cedo essa novela. As pessoas estão aflitas, desesperadas. Se reúnem para falar mal do chefe. Para falar mal da empresa. Nada sai disso. Por conta dessas conversas meu trabalho atrasou. Mas no final do dia a coisa continuou. Fomos jantar em um restaurante e não houve distração. Falamos de trabalho. E meus planos foram pelo ralo. Hoje foi um dia perdido. Porque fiquei falando mal de várias coisas mas falar mal só me fez mal. Não fiz nada para tentar solucionar os tantos e tantos problemas que enumeramos. E agora fico aqui escrevendo sobre isso. O que é mais e mais desperdício de tempo. A não ser que eu aproveite a oportunidade para tentar, mais uma vez, aprender essa lição: preciso ser dono do meu tempo, e isso só pode ser conseguido a força.

domingo, 26 de abril de 2015

Autoria

Quem inventa o que eu escrevo? Eu sempre acho que não sou eu. Eu sempre acho que essa coisa de autoria, propriamente dita, não existe. Plagiamos como palavras nossas aquelas que a vida nos dá.

Foto #116


Atrasado

Eu e a realeza britânica. Dois atrasados. Posso incluir também o Vaticano, mas ele nos deixa no chinelo nesse quesito, vai muito além de qualquer limite imaginável.

Eu, atrasado em ver o filme sobre o Alan Turing. O governo Britânico atrasado em perdoar mais de quarenta mil pessoas condenadas pelo "crime" da homossexualidade. E o Vaticano atrasado em Séculos para admitir que o Galileu estava certo.

O que diminui um pouco minha melancolia é que, ainda que com atraso, finalmente estamos tomando pequenas ações no caminho certo.

sábado, 25 de abril de 2015

Viadagem

Viadagem é isso. É você sair do ônibus vendo aqueles dois mininos de mãos dadas e não conseguir controlar seu incômodo.
Viadagem é essa vontade louca de querer impor sua vontade ao resto do mundo. O que estão fazendo de mal a você?
Viadagem é isso. É esse desespero por viver em um mundo que não questione nossos valores porque eles já foram impostos a todos, não importando o que isso tenha custado.

Foto #115


Um blog Zen

Leu Babauta fez um blog realmente Zen. Você vai abrir o blog e vai entender que o cara é Zen. E tudo o que eu leio sobre ele me faz sentir uma admiração saudável. Espero que inspire você também: ZenHabits.net.

sexta-feira, 24 de abril de 2015

Oitavo andar

Ele conheceu uma garota de programa, mas se apaixonou por ela. Tinha um alto padrão de vida. Aí um amigo lhe pediu um grande empréstimo mas não estava conseguindo pagar. As dificuldades financeiras significaram que ele não conseguia mais dar o mesmo padrão de vida à namorada. Que logo virou esposa. E começou a cobrá-lo por coisas que ele não conseguia mais fazer. Vendo-se sem saída, e querendo garantir a segurança financeira da família, pulou do oitavo andar, mas com o cuidado de fazer parecer ser tudo um acidente. Assim a mãe recebeu o dinheiro do seguro de vida. E a viúva voltou para sua vida de exploração do desejo alheio em troca de dinheiro com um único remorso: o de ter ludibriado o cara errado. Dá próxima vez, ela pensou, arranjaria um rico de verdade.

Foto #114


Alma destilada

"A book is somebody's best self"
Zadie Smith

A escritora fala, em uma entrevista no YouTube, sobre o livro ser a melhor parte de uma pessoa. Diz que muitos leitores se decepcionam ao conhecer pessoalmente um escritor.

Essa entrevista, e outras, no vídeo abaixo:

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Suspenses

Sei que eles estão lá fora. Tenho uma garrafa d'água comigo. Escuto os ruídos de lá. Aqui seria o silêncio, o silêncio absoluto. O silêncio da minha respiração. Mas não. Há outros ruídos. Calma. Não está tudo perdido. O ar condicionado. O ar condicionado está funcionando. É ele que faz esse barulho estranho. Nhéc trec nhéc. Ou será que a minha própria respiração? Não quero olhar pra fora. Eles podem me ver. Eles vão me ver. Se eles me virem aqui, estarei perdido.

Um gosto amargo e ácido na boca. Parece que tive ânsia de vômito. Mas sei que não tive. Acho que não tive. As paredes são brancas. Não é meu quarto. Luz fluorescente no teto. Cheiro de remédio. Bip. Bip. Bip. Tem fios saindo do meu braço. Fios de cores diferentes. Um tubo. Um tubo? Por que tem um tubo saindo do meu braço? Penso em um café com leite. Café com leite e pão na chapa. Naquela padaria de esquina. Naquela padaria onde você senta em banquinhos, de frente ao balcão. Banquinhos. Balcão. Fico com as palavras ecoando na minha cabeça. Tem algo estranho com esses tubos. Nunca usei drogas. Que eu saiba. Mas deve ser assim. Deve ser algo mais ou menos assim. Quem foi que me colocou aqui? Penso em chamar a enfermeira. Penso no café com leite da padaria. A padaria lá onde tinha o Loucura. Um vira lata de pêlo preto, todo enrolado. Doido. Pulava na perna da gente. Depois saia correndo. Do nada. Enfermeira? A voz não sai. Bip. Bip. Bip. O que é esse barulho?

Numerização

Preencho um formulário. Comunicação: cinco. Inovação: dois. Credibilidade: três.
Por que esse pessoal não vem conversar com a gente? Iriam encontrar a seguinte situação. Facebook aberto. Youtube aberto. Mesa bagunçada, cheia de coisas que não tem nada a ver com o trabalho. Nada.
Sou transformado em um número. Um número eficiente. E uma existência destruída.

Foto #113


quarta-feira, 22 de abril de 2015

Foto #112


Diagnóstico

-Você não gosta que saibam o que você está sentindo. Mas ainda assim, precisa sentir. E precisa saber o que sente. É um conflito e tanto. Precisa de um modo de deixar isso dito ao mundo. Mas não quer que venham fazer perguntas. Questionamentos. Conselhos. Tudo isso incomoda. Causa repulsa. E, ainda assim, você quer sentimentos mais e mais profundos. Experiências diferentes. Quer conhecer quais sentimentos são errados. Como fazê-los evoluir. Como ter um coração mais justo. Aprender a dizer não de um modo mais contundente. Aprender a dizer sim para você mesmo, superar medos: deixar-se experimentar. Com tudo isso, não é estranho, nem um pouco, que você precise escrever para poder existir.

Matéria prima

Um dos maiores escritores de todos os tempos acabou desconhecido. Porque não escreveu nada. Não escreveu nada porque teve uma vida calma demais, tranquila demais, e isolada demais. Mas a sua mente era a mais imaginativa. Sua memória, a mais invejável. Sua capacidade de criar diferentes formas de narrativa, das mais impressionantes. Essas habilidades, contudo, atrofiaram. Porque eram usadas, dia após dia, para descrever o nascer e o pôr do sol. Fez mais de mil poemas e dissertações sobre o assunto. Descrevia o voo dos pássaros e a mudança das estações. Foram centenas de ensaios. Romances. Pensamentos sobre o tema. E a vida dos poucos parentes que viu, naquele lugar rústico, no meio do nada. Não estudou. Não conheceu a história da filosofia. A aventura da tecnologia. O drama das guerras. Não frequentou bares. Nunca falou com uma puta. Nunca foi repreendido por um padre. O maior escritor de todos os tempos morreu. Morreu sendo um potencial não realizado. Condição que parece extrema e dramática mas que, para a humanidade, é a norma.

terça-feira, 21 de abril de 2015

Foto #111


Memes

Fato é que a realidade pouco importa. A aparência é que conta. Não importa que milhões morram em guerras. Mas uma foto de uma criança sofrendo, bem marketeada, pode alterar o curso da história. Ignoramos nossas verdades. E ignoramos que ignoramos nossas verdades. E combatemos aqueles que tentam nos tirar dessa condição. Assombroso que, com tudo isso, tenhamos chegado até aqui.

Arquitetura

É interessante, não é? Que os apartamentos tenham tornados as casas mais e mais próximas, enquanto os lares se tornam mais e mais distantes.

segunda-feira, 20 de abril de 2015

Foto #110


O amor de Schrödinger

Você está linda hoje.

Por que você se importa tanto com aparência?

Sua atenção com as pequenas coisas me comove.

Não tem assunto melhor não?

Seu olhar doce me deixa apaixonado e cheio e saudade.

Não esperava tanta carência de você.

Cadê a água?

Ele vai montar um novo negócio, e vai ser lá no terreno novo que comprou, próximo à chácara dos sogros. Decidiu furar um poço, para não gastar exageradamente com água. Furou, furou e furou. Achou que iria gastar dez mil reais. Furou, furou e furou. Nada de água. Furou, furou e furou. Já se foram trinta mil reais. E nada de água. Nossos sonhos também estão secando.

domingo, 19 de abril de 2015

Foto #109




O efeito canino

A rua é opressiva, perigosa. O frio da noite. A gente reclama do calor de São Paulo. A gente xinga as paredes das nossas casas, dos nossos apartamentos. "Elas retém tanto calor!". Não imaginamos o frio que ainda ocorre nas noites paulistanas. Não é fácil ser um mendigo por essas bandas. Dormir num papelão. Arranjar trapos velhos de cobertor. Por um bom tempo eu via apenas a física do problema: eu via um mendigo dormindo com um cachorro e pensava "está um aquecendo o outro".

Há um outro efeito também, que eu ignorava por completo. Lá no bairro morreu um mendigo, e o seu Rubens tentou cuidar do cachorro. Era conhecido de todos já, então não iríamos deixá-lo na rua, abandonado sem seu antigo dono. Não teve jeito. O vira-lata desesperou-se ao ver preso no conforto de uma varanda com comida garantia. Queria a rua. E aí percebi essa troca fundamental. Além do calor do corpo nas noites frias, o cachorro é fundamental para dar ao mendigo esse amor feliz pelas ruas. Algo impossível de um ser humano ter por si só. Sua função maior é aquecer a alma em nossos dias frios.

Ressonâncias

Ressonância. Duas cordas vibrando juntas, uma delas captando a vibração da outra, sucumbindo à vibração da outra.
Sei toquei em uma corda que estava quieta e escondida em você, e agora ela ressoa em mim também.
"Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas".
O pequeno príncipe.
Minha pequena princesa.

sábado, 18 de abril de 2015

J

-Como percebeu que seu filho tem TOC?
-Foi com a sopa de letrinhas.
-Sopa de letrinhas?
-Sempre que eu fazia sopa de letrinhas para ele, e perguntava depois lá da lavanderia, 'filho, já acabou?', ele respondia coisas como 'Não mãe, ainda estou na letra J!'.

Princípios

-Bigadu mô. Bigadu levá eu passeá no cinema e esquecê da vida...
-...mas não foi isso o que eu fiz!
-Não? E foi o quê?
-Levei você para passear para a gente lembrar da vida.

Foto #108


sexta-feira, 17 de abril de 2015

Má vontade

Ele era um novato na empresa. As pessoas queriam ensiná-lo. Mas ele se recusava. Tinha preguiça, ou não queria tanta responsabilidade, tinha medos. Um dia eu ouvi do meu chefe uma frase sensacional, que me fez entender o tamanho do problema:
-Só existe uma coisa pior do que diretor que esqueceu que já foi estagiário.
-E que coisa é essa?
-Um estagiário que não quer ser diretor.
A falta de ambição destruiu, dentre outras coisas, a vontade daqueles ao redor de ajudá-lo.

Uso do tempo

Sinto uma asfixia quando perto demais dessas pessoas exageradamente afetadas pela realidade. A vida delas: trabalhar matando as horas até que o dia se arraste ao horário de ir embora. Depois, pagar as contas. Ter sempre uma roupa adequada para não incomodar ninguém e exibir status, são regras do jogo. Depois, gastar o tempo livre apodrecendo em casa, enquanto o tempo passa. A minha vida: imaginar os segredos do mundo, as possibilidades, as coisas por explorar, as coisas que podem acontecer, as coisas que eu posso aprender a cada instante, um novo instrumento, um novo livro para ler, uma nova pessoa de quem ouvir histórias. Sou um lunático irresponsável. Preciso de pessoas responsáveis ao meu redor. Mas não consigo ficar perto demais. Contradições insuportáveis.

Foto #107


quinta-feira, 16 de abril de 2015

Eterno

Estou na mesma sala há anos. Há muitos anos. Há quantos anos? Dois anos. Três anos. Quatro anos. Vinte anos. Oitenta anos. Duzentos anos. Todos os anos. O ar condicionado faz esse barulho constante de sopro. Fica numa velocidade constante. Aqui não tem janela. A simetria do tempo é quebrada apenas pelo ruído que vem lá de fora. Ouço o barulho da avenida vizinha. Mas a luz interna é constante todas as vinte e quatro horas do dia. Lâmpadas fluorescentes. Essa luz branca igual, sempre igual. O que muda aqui são as pessoas. Uma ou outra coisa de lugar. O computador que está sobre minha mesa é mais moderno. A pilha de papel acumulado está em outro lugar. Dois meses atrás estava sobre o móvel aqui ao lado da minha cadeira. Hoje vejo que está na estante do outro lado da sala. Quando foi que organizaram esses papéis? Um mês? Um ano? Na verdade, não lembro. Não faz diferença. Toda vez que entro aqui é assim: o tempo é destruído, derrete-se nessa mesmice que estende-se de desde sempre para até o fim dos tempos. Por isso não é importante ir a uma reunião. Ou escrever mais uma página do relatório. Ou fazer o que quer que seja.

Fico aqui... Acesso o 9gag. O Sedentário Hiperativo. O Facebook. O Twitter. Leio as notícias do UOL. Do Terra. New York Times. Washington Post. Vejo as besteiras do Kibeloko, do Jacaré Banguela. E a luminosidade da sala não muda. É a mesma, é sempre a mesma. Lá fora pode ser o Alckmin ou a chuva, pode já ter voltado a ditadura, e aqui dentro é tudo a mesma coisa. Essa mesmice de sempre, diluindo minha existência. Se eu for raciocinar, cada dia aqui dentro é um dia a menos de vida. Mas isso é racional demais. Aqui dentro a vida parece infinita. Eu nunca vou ficar velho. Porque aqui nada acontece.

Cabresto

-Afe, não acredito... Alguém pelo amor de deus precisa logo colocar um cabresto em você!
Quando eu ouvi isso, querida ex-odiada, é claro que eu senti raiva. Como assim, colocar um cabresto em mim? Mas a minha raiva é porque eu não entendia um ponto fundamental: o "alguém" da tua frase podia ser eu mesmo.

Foto #106


quarta-feira, 15 de abril de 2015

Ao futuro, para ser lida em algum momento em 2030

Caro futuro eu,

Está vivo? A vida é um jogo muito difícil e de repente nos vemos lançados aos perigos do mundo. Talvez você tenha morrido em um assalto. Ou de dengue. Ou caindo de avião. Ou em um assalto. Ou em uma bala perdida. Ou num repentino ataque de coração que não deixou tempo aos médicos. Mas, se está lendo isso, está vivo. Fico contente, claro.

Está ganhando a batalha contra a vida? Porque é assim... para viver, é preciso ganhar a batalha contra a morte (um dia acaba-se perdendo, mas a batalha deve acontecer dia-a-dia). Mas existe também a batalha contra a vida, contra o lado ruim da vida, as pequenas mortes que se escondem nas rotinas. Ainda encontra espaço para ler um livro? Para tirar fotos de coisas belas quando viaja? Tem tempo para brincar com crianças? Andar de bicicleta na praia?

Como está o mundo? Derreteu sob aquecimento global? A ditadura voltou ao Brasil? Conseguiu realizar seus sonhos mais imediatos?

Caso você esteja acomodado em um emprego estável que paga mensalmente o suficiente para zerar as contas, às custas de ter deixado de lado seus sonhos, me envergonho de você. Talez os sonhos tenham mudado. Talvez adaptações tenham sido feitas. Mas espero que ainda consiga viver, apesar de todos os desafios cotidianos da vida.

Mesmo sangue

Você sempre foi de agir imediatamente. E eu ficava num canto, no quarto mais escondido da casa, lendo livros velhos e martelando a máquina de escrever em pensamentos indizíveis. Você queria abrir um negócio. Uma loja. Uma oficina. Uma pastelaria. Qualquer coisa. Não concordava com a idéia de trabalhar para um chefe, ter os horários definidos por regras externas. Ficar jogado no trabalho cumprindo horário. E eu lá, fazendo exercícios do cursinho. Lendo literaturas antigas. Escrevendo reflexões sobre a história da filosofia, sobre a aventura da construção da ciência e coisas assim. Mas temos o mesmo sangue. Somos assim, profundamente diferentes, e inúmeras vezes você me deixou à margem de julgar minha vida um erro. Incompetência para arrumar dinheiro, comprar um carro, comprar uma casa. Diferenças. Mas sei que, ainda que você não confesse, te deixei em dúvida também. Eu fazendo minhas viagens, e você pagando prestações. Eu mergulhdo em minhas paixões e você deixando a guitarra de lado porque havia se tornado um adulto sério cheio de responsabilidades. Somos dois extremos de uma mesma vida.

Foto #105


terça-feira, 14 de abril de 2015

E sobre sexualidade e política

Neste blog há a tag "Mulheres". Às vezes com reflexões amorosas, e eventualmente com cenas eróticas, narrativas com um pouco mais de apelo libidinoso. E em meu post anterior eu disse que enquanto a civilização não se interessar mais por política do que por bundas, estamos perdidos. Sou contraditório? Hipócrita? Não, não é isso... Amor e erotismo são fatos profundos da existência humana e adquirem uma profundidade muito maior do que a estúpida pornografia compartilhada aos PetaBytes diariamentes por Whatsapp e outros meios. É uma questão de qualidade. De profundidade. Assim como discutir política não é o mesmo que trocar mensagens do tipo "Esquerdista tinha que ser morto" ou "Vamos proibir já protestos pedindo a volta da ditadura, essa gente devia ser presa!", mensagens trocando flagras sexuais, fotos de gostosas, e vídeos pornográficos de um ou dois minutos não são erotismo, são pornografia barata, rala, sem conteúdo. Fazem um apelo barato ao que de mais primitivo existe nos instintos humanos e, o que é pior, nos convidam a ignorar o que pode haver de elaborado em nosso espírito. Vou continuar falando de mulher. E vou continuar achando que vivemos em uma época de neanderthais ineptos à civilização enquanto conviver com tantos e tantos amigos preocupados em dar um "share" em pornografia barata e sem paciência para ler mais que três linhas sobre política na internet. E não acho que essas coisas impliquem em algum conflito ou incoerência.

Vamos celebrar a estupidez humana

Vivo em uma era que conseguiu dominar o elétron.

Vivo uma era pós SR-71 Blackbird, uma maravilha da engenharia. Se bem que uma maravilha da engenharia que foi concebida para espionar outros países para fins de controle militar, planejamento de bombardeios e coisas assim.

Vivo em uma era em que brasileiros pedem a volta da ditadura.

Vivo na era da internet, em que qualquer um pode manifestar suas opiniões e reportar o que estão vivendo. Se bem que, ainda assim, a grande mídia, Globo, Veja e afins, polarizam os pensamentos da nação. Qualquer um pode procurar documentos na internet com estatísticas variadas, ler blogs, ver vídeos com outras opiniões. Mas o que a TV fala é a verdade.

Vivo em uma era de milagres. Avião supersônico. Engenharia genética. Aceleradores de partículas. Mas há ignorância difundida em excesso e cada vez mais essa ignorância tem o poder de se auto-catalizar em ações danosas. Só existe um remédio para isso sem prejudicar os valores desejáveis para a sociedade: mais educação, mais conhecimento. Mas em um nível mais profundo, cultural. Não é apenas a educação de escola. Quando é que vamos preferir compartilhar posts com longos textos sobre política ou ciência ao invés de fotos de bundas e memes com opiniões prontas e sem nenhuma reflexão?

Quando coloco a questão dessa forma, quando vamos preferir refletir a ver bundas, confesso que caio em uma rasa porém persistente depressão e penso que a humanidade já está descendo a ladeira.

Foto #104


segunda-feira, 13 de abril de 2015

Foto #103


Respeito

Eu não concordo com suas razões de protestar. Eu não concordo com as coisas que você está dizendo. Mas vá lá. Diga. Saiba de uma coisa. Isso é democracia. Esse respeito, por princípio, às diferenças de opinião. Os dois lados dessa história precisam aprender sobre democracia. Sei que é difícil respeitar os idiotas. Mas existe sempre a possibilidade teórica de que o idiota seja você. Ou eu.

Qualificações

Para ser jornalista hoje em dia, ou blogueiro de grandes jornais e periódicos, parece ser fundamental esta qualidade: a capacidade de acreditar profundamente em absurdos e em olhar parcialmente a realidade. Um olhar lúcido nunca terá tanto apelo quanto o fanatismo cego pura e simplesmente porque duvida inclusive de si mesmo. O jornalismo que se atualiza a cada segundo e briga por cliques e mais cliques não pode se dar ao luxo de perder o apelo das certezas absurdas.

domingo, 12 de abril de 2015

Foto #102


A vida é um risco

Os inimigos de Putin aparecem mortos por aí. Os EUA matam abertamente, com drones, bombas e o escambau. Manifestantes em São Paulo tomam bombas de borracha no olho. Pobres da periferia tomam balas de chumbo na testa. A vida não é segura. Precisamos ter gente disposta a morrer para conseguir brigar pela vida. Pessoas dispostas a se colocar diante das armas. Mas, quando o mundo vai bem, essas pessoas se tornam mais rarefeitas. E quando elas se tornam mais rarefeitas, instala-se o cenário para que abusos se difundam pela sociedade. E as pessoas não vão decidir se arriscar mais e mais para brigar por justiça e liberdade até que a situação esteja, novamente, muito grave. Algo que os matemáticos adorariam modelar com suas equações oscilatórias cheias de complexos ciclos-limite.

Os militares

Vejo mais e mais cartazes pedindo intervenção militar. Pedindo renúncia. O Brasil dividido ao meio. As cabeças também. As memórias também. Que venham os militares: talvez seja o único jeito de o povo entender o porquê de isso ser um grande erro.

sábado, 11 de abril de 2015

Foto #101


Nora

O gato gosta de tocar piano. Passa o tempo livre em pé, andando sobre as teclas. Dedicando-se à curiosidade. Dentre 90 milhões de gatos nos Estados Unidos, é ela, Nora, quem faz isso. Variações aleatórias? Será que todos os gatos têm um contato diferente com a música? Será que, em uma população de uma mesma espécie, alguns indivíduos podem ter uma relação diferente com a arte do que com outros? Fernão Capelo Gaivota: um indivíduo que decide se dedicar ao prazer e à exploração de sensações ao invés de ficar prso à repetitiva luta pela sobrevivência até o derradeiro último suspiro.

Evidências

A Globo mostra as manifestações. Eu sou contra a corrupção. Todos são. Os corruptos são contra a corrupção, com certeza. Mas onde estão os Black Blocks? Onde estão os policiais descendo borrachada nos manifestantes? Curioso... A manifestação é contra o governo e o governo corrupto opressor não está reprimindo a população. Há algo de seletivo no modo das coisas acontecerem. Mas as pessoas não refletem sobre isso. Ser contra a corrupção e ser contra o governo são coisas diferentes. Há uma mistura de coisas. Mas eu não consigo acreditar no desenrolar dos fatos. Sou forçado a concluir: somos todos desinformados e vítimas de um profundo auto-engano. Nos entregamos voluntariamente à manipulação mais conveniente. Quanto mais eficiente for a manipulação, mais profunda será nossa crença de que a opinião é nossa mesmo, e não de terceiros.

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Que coisa mais chata

Vou escrever uma história de detetive. Uma morte logo no começo, para dar emoção e suspense. Não, muito manjado. Vamos ver. Um romance. Isso. Um romance. Pessoas apaixonadas. Cenas descrevendo olhares e mãos se tocando, com uma linguagem cheia de sensibilidade. Não não. Ficção científica! Isso. A Terra está ameaçada. Ou já vivemos em uma outra era, em um outro planeta, com uma tecnologia super inovadora. Ou nossa tecnologia aqui está muito diferente. Ou a humanidade deu errado e vivemos um grande inferno. Não não, deixe-me ver... Um livro filosófico. Desses mais experimentais, mais literários. Afinal, livros policiais, ou de ficção, ou romances... Nada isso é literatura, certo? Paulo Coelho nunca vai soar um Dostoievski, não é? Investigar os profundos do espírito humano. Encher trezentas páginas com frases de efeito. Não não... O que dá dinheiro mesmo é livro de auto-ajuda. Porque a auto-ajuda, para ser mesmo auto, é a única literatura que dá dinheiro a quem a escreveu. Ou, então, eu posso escrever sobre um jovem já não tão jovem, de bom coração e apaixonado pelas letrinhas, que sonha em escrever e só não faz idéia do que escrever. Afe, que coisa mais chata.

Foto #100


Delícia

Sento com meus amigos para tomar uma cerveja em um bar e vejo uma lindíssima morena entrando. Uma roupa dessas que acentuam curvas, e um corpo desses feito de curvas, como uma estrada perigosa, um violão com personalidade. Penso que meus pensamentos estão se tornando ofensivos. Eu sou um machista incorrigível? Estou só olhando. Essas sensações todas são só hormônios dentro de mim. Não preciso dizer à morena que a estou imaginando nua. Acho que os hormônios fluem pelo canal auditivo. Porque, de repente, não estou mais ouvindo meus amigos. Estou apenas olhando aquela calça agarrada, contendo aquela bunda perfeita. E estou imaginando como deve ser dar uns amassos nela apalpando aquelas nádegas por cima daquele tecido macio. Para depois retirá-lo, claro. Ela não olha para mim. Mas, desconfio, caso se vire em minha direção encontrará dezenas de olhares voltados para ela. O meu é só mais um. E ela vai me ver ali, com cara de babaca, devorando-a com os olhos. Não vai saber que não sou desses filhos da puta que querem comer e nada mais. Quero comê-la, claro que quero! Mas quero fazer uma viagem boa com ela, andar por aí conversando de muitas coisas e dar boas risadas. Será que ela é boa de conversa? Ou só sabe falar de roupas, novelas e sapatos? Será que ela sabe quem foi a Marie Curie? Será que ela sabe que o Picasso nasceu na Espanha? Ou se eu falar "Picasso" ela vai rir com voz de vagabunda e me achar um rude sem vergonha?

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Paradoxo

-Esse país precisa de educação, e na época da ditadura, ao contrário de hoje, a educação era melhor. Disso os militares sempre cuidaram. E não era uma educação de ensinar a fazer greve para tudo, como os historiadores da USP fazem hoje. Era uma educação de gente trabalhadora, de gente correta. A educação de hoje em dia é péssima!

De certo modo, ele não está errado. Leandro, meu amigo que disse a frase acima, tem vinte e três anos e se educou nas melhores escolas pagas desses tempos de democracia. E, pelo visto, não aprendeu nada sobre ditaduras. Paradoxal, não?

Foto #099


Globo

Tem gente pegando dengue.
O dólar bateu dois e setenta, como é que pode?
Tem gente comprando uma geladeira pela primeira vez.
O dólar bateu três reais, que absurdo!
O país vai parar.
Mas o país está andando.
A Petrobrás está cheia de corruptos.
Mas eu não conheço ninguém que está trabalha na Petrobrás.
Vejo as coisas pela TV.
Viajo, mas não tanto quanto gostaria.
Não conheço direito o continente Brasil.
Minha empregada bateu panela também.
Ela é elite branca opressora?
Vamos brigar pelos termos.
Pelas idéias.
Danem-se o que elas significam no fundo.

Não sei porque estranham essa coisa de o povo acreditar na Globo. Não é burrice. Quando se cultua um modo de vida em que você trabalha sessenta horas por semana para conquistar o direito de ficar jogado diante da TV durante todo seu tempo livre, de lazer, então não se trata de se deixar enganar. A TV É, e esse é é maiúsculo mesmo, a TV É a realidade do povo trabalhador branco elitista, ainda que esse termo descreva, muitas vezes, negros trabalhadores na favela. Enfim. O termo é ruim. "elite branca elitista, opressora". Não gosto do termo. Mas entendo o que ele descreve. Essa gente para quem a TV é mais real que o mundo. Que se orgulha de ter tempo de ler a Veja e não lê nada mais e se entende mais culto e bem informado que todo o resto.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Volta

Foi uma boa viagem. Eu me apaixonei várias vezes. Várias. Me apaixonei pela paisagem urbana se rarefazendo em verdes e desertos. Me apaixonei por aquelas cidades minguantes, uma após outra. Me apaixonei por aquele sotaque cada vez mais rítmico, cantado. Não me admira que para as terras lá de cima dominem tanto dos batuques e percurssões. É o que fazem em todas as falas. Me apaixonei pelos sabores caprichados, presente mesmo em todos os lugares simples. Me apaixonei pelo isolamento da estrada. Parecia traçada a lápis, de um extremo a outro da folha. E eu perdido lá no meio. Me apaixonei pelas pessoas de poucas falas e sorrisos em excessos. Pelas gentilezas inesperadas. Pelos sons da manhã. Pelas refeições sempre rústicas e simples, e sempre saborosas e fartas. Pelo gado ao mesmo tempo curioso e desconfiado. Pelos lobos que espiavam entre os arbustos. Pelas nuvens, que dia após dia redescobrem naquela tela azul todos os significados da arte. E hoje, como em todo amor, mergulho na contemplação de um coração partido pelo abandono.

Um dia normal

A paz dos dias me afoga de um jeito bom. É mais um dia como outro qualquer. Cheio de choros de recém nascidos. Pedidos de casamento. Mortes em assaltos. Mortes passionais. Mortes em acidentes. Provas-surpresa nas escolas. Declarações polêmicas no jornal. Temores políticos lá no primeiro mundo. Aumento de preços. Empregada arrastando móveis para varrer atrás. Cobrador caindo no sono enquanto todo mundo usa o bilhete único. Médicos correndo contra o tempo para salvar uma vida. Mais algumas espécies nos limites da natureza desaparecendo no fundo da extinção. Um bebê brincando com um iPhone. Uma viúva rezando em paz diante do túmulo. Atores mirins estreando uma peça para uma platéia repleta de familiares e amigos. Um cara solitário, às seis da manhã, na praça de alimentação de um aeroporto, escrevendo coisas.

Foto #098


terça-feira, 7 de abril de 2015

Foto #097


Fui

É estranho se entender livre no mundo. Vínculos. Seguranças. Nada disso. Livre. Perguntas que eu não consigo responder: qual será minha fonte de renda mês que vem? Onde estarei morando daqui um ano? No que vou trabalhar daqui seis meses? Incertezas. Aventuras. Saltei de um precipício em busca de aventuras. Espero que a névoa se dissipe e revele espaço suficiente para o pára-quedas abrir.

Recorrente

Já estou com saudades. E nem sequer saí daqui ainda. Nem terminou. Nem cheguei em casa. Mas quero voltar. Ou quero ir para novos destinos. Quero que a vida continue em trilhos novos. Por que será que eu gosto tanto de trilhos novos? Foi estranho. Eu sentia algo se contorcendo dentro de mim hoje conforme a estrada ia passando. O horizonte ia mudando. Uma euforia e uma depressão. Tudo ali, junto. Um abandono. Porque eu havia adotado aquele mundo. Eu adoto o mundo. As pessoas. Os novos sorrisos. Os novos sotaques. Os novos latidos. Os novos silêncios. Eu adoto o mundo e depois o abandono, estrada afora. Dói partir.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Injustiças

Uma história das mais escabrosas. Trocam-se aqui os nomes mas permanecem os fatos e as indigestões morais. Marcos era um primo meu desses que a gente nunca viu exatamente como primo. Foi sempre um adulto como os outros. Sua maior proximidade em minhas memórias deve-se ao seu espírito e não aos ramos de parentesco. Marcos era alegre. Contava piadas. Contava histórias. Vinte e tantos anos mais velho e ainda nos dava atenção. Coisa bem atípica para qualquer adulto. Quando estávamos em férias na fazenda ele andava conosco na noite. Tinha lições sobre os matos e bichos para dividir. E histórias de mistérios e terrores para contar. Seres vindos do espaço. Roedores que se transformavam em lobos, cobras e gente. Pássaros que espionavam segredos. Espíritos que perambulavam entre os galhos, vindos do sol e da lua.

Está morto. Tem já um tempo que fui ao seu enterro. Era um certo Berro d'Água como o da literatura. Cheio de amigos vagabundos. Odiado de certo modo secreto pela família, que desejava apenas alguém normal, e amado por todos os demais a quem nunca faltou com atenção, sorrisos e risos. Até aí, nada de anormalidade. A morte acontece. Muitos morreram hoje, muitos mais morrerão amanhã e um dia eu morrerei também, assim como você. E outros continuarão a fazê-lo por todo o sempre.

O que descobri nas conversas pequenas desses dias, nas entranhas da família, é que o falecimento não foi desses mais naturais como imaginávamos. Se bem que, naquela idade, sem um câncer aqui ou ali e sem nenhum atropelamento ou outro acidente trágico como justificativa, aquela morte nunca fora exatamente natural. Marcos fora achado no chão do banheiro. Convulsava. A mãe tentou socorro mas a vida já se tinha ido, restando apenas falecidos movimentos de um corpo que se desativava. Uma besteira. Foi unânime que alguma besteira ele tinha feito. Exagerou no álcool? Teria mexido com algo ainda mais perigoso, como cocaína ou uma dessas outras drogas que a gente nem sequer sabe o nome direito?

Foi o que todos acreditaram. Marcos havia exagerado em alguma droga. Uma recaída em suas explorações mais ousadas. Vítima da própria curiosidade e descontrole de seus anseios. Foi a versão em que acreditei também. Até que, apra minha surpresa, no café daquela tarde, e a voz baixa como se os vizinhos de repente pudessem ter algo que ver com aquelas segredâncias, falavam do Alcir. O irmão mais novo. O irmão normal. O irmão de vida correta, nos trilhos. Alcir tinha sua família. Sua casa. Seu carro. Visitava os pais para jantares de domingo. Tinha seu emprego. Carteira assinada e tudo. Andava de camisa e tinha o cabelo penteado. Não saberia dizer o nome de mais de duas ou três marcas de pinga, muito menos reconhecer-lhes o gosto. Pertencia a um universo distinto dos mundos de Marcos. Um universo complementar e em nada coincidente. Partilhavam o parentesco e a infância em comum. E nada mais.

E diziam, ali entre cafés e biscoitos, que talvez Alcir tivesse que ver com aquilo. Duvidei dessas escuras conjecturas, mas outra morte recente na família, a do pai dos dois irmãos, parecia trazer maiores suspeitas. Alcir visitava o pai com frequencia no hospital e todos viam ali a marca de um filho perfeito e amoroso. Até que uma tia encontrou vidros de remédio descartados no lixo, ainda cheios, e ao tentar conversa ouviu profundas ameaças. As veias do pesçoco estufadas e as mãos de Alcir a estrangular uma projeção imaginária diante de si: "Você fique quieta e cuide da sua vida, isso aqui não é com você... Eu mato você se tentar mexer na minha vida, entendeu?".

Mal pude acreditar no que ouvia. Alcir nunca fora brincalhão e sorridente como Marcos. Mas aquele tipo de ameaça, para essas insuspeitas circunstâncias, estava além de qualquer normalidade aceitável. Seria tudo por conta de heranças? Multiplicar nomes em escrituras? Cogitaram fazer algo. Era coisa para polícia. Uma pessoa maquiavélica e calculista assim, que teria dado cabo do pai e do irmão, seria capaz de tudo para atingir seu objetivos. Talvez não fosse caso "apenas" de objetivos gananciosos mas, ainda pior, houvesse ali também o motor de uma aleatória psicopatia. Que perigo ele representaria para mulher e filhos? Para estranhos da casa ao lado? Uma pessoa assim assustadora deveria apodrecer na cadeia, não havia outra opção.

Mas como iriam provar alguma coisa? E se fosse feita uma acusação dessas vazias, baseadas na memória dos outros e nada mais, sabiam que nada iria acontecer. Para a justiça você é inocente até provar o contrário, a não ser que seja extremamente pobre ou que alguém muito importante precise de um laranja infeliz. Muita agitação fizeram aquelas revelações. E por fim decidiram que eram vítimas também, vítimas da falta de provas. Só poderiam ficar longe desse monstro e observar se alguma morte nova surgisse. Torcer por um deslize com as evidências da próxima vez. Deslize que nunca aconteceria.

Foto #096


Quinze anos

Eu lembro da sua dedicação em ser a melhor aluna da classe. Eu lembro da cara que você fazia ao comer um doce gostoso ao final do intervalo. Eu lembro dos momentos em que nossos olhares se cruzavam, e você arrumava os óculos e olhava para outro canto. E lembro muito vividamente das veze em que, ao desviar o olhar, deixava escapar meio sorriso no contorno dos lábios. Fazia meu dia. Minha semana. Meu mês. Minhas lembranças de até hoje. Lembro de como você só olhava para mim quando tinha algum trabalho sério para apresentar, porque eu sempre prestava atenção e não zoava você. Lembro de quando achou que eu queria ficar com você mas eu, todo tímido, apenas queria te entregar um presente de aniversário. Queria perguntar se você ainda tem o presente. Você ainda guarda? Tenho tantas lembranças. Lembro dos cartões do Garfield que eu deixava de surpresa nas suas coisas, no meio de algum caderno ou embaixo da sua mesa. Lembro de sonhar que você faria parte do meu futuro e que, de um jeito ou de outro, acabaria dando certo.

domingo, 5 de abril de 2015

A tinta

Escrevo ainda a mão. É meu ritual de contato com o milênio passado. Meu folclore pessoal para homenagear a humanidade que nos trouze até aqui. Mas hoje o que eu escrevo à mão pouco interessa. Nunca serão descobertas as novas filosofices de papel. A partir de hoje só existe o que for twittável.

Foto #095


Projeções

Com quatro namoradas o Dia dos Namorados tornava-se um verdadeiro desafio logístico. Uma delas vai ser comida e as outras vão ter que englir uma desculpa. Agia assim, discursava assim. E sempre que os amigos falavam em casamento dizia não querer se casar nunca. Motivo: não confia em mulher.

sábado, 4 de abril de 2015

Conquista

Foi em um dos raros dias em que a neblina cai baixa sobre a manhã de São Paulo. Ele acordou ainda sob a escuridão da madrugada. Foi ao carro. Hesitou por um minuto e por fim partiu. Trinta e tantos quilômetros. Avenidas principais. A marginal. Foi até a porta da casa dela. Estudou a rua, a fachada. Encontrou um lugar apropriado. Deixou ali uma rosa e uma carta. Por fim, não conquistou a garota, mas a mãe da garota o ama até hoje como o pretendente mais romântico que já existiu.

Foto #094


Não

Eu sabia que, já durando meses, a derradeira palavra iria aparecer. Ela iria dizer. E eu precisava fazer algo antes. Não deu tempo. Nos encontramos no terminal de ônibus. Ela me olhou nos olhos e disse:
-Eu te amo.
Eu respirei fundo. Empatia, razão e desespero. Olhei-a nos olhos, tremendo.
-Eu não te amo...
Quis falar "desculpe", mas não consegui. Quis explicar. Ficou o silêncio por justificativa. Assim soou para mim. Uma falha, um erro, uma impotência. Não consegui amar.

sexta-feira, 3 de abril de 2015

Foto #093


As terras distantes

Eu penso nas distâncias e penso nas presenças. Não aprendi a estar presente. Aprendi a conviver nas terras livres das distâncias. E me importo. Me importo com seus sorrisos, suas felicidades, sua segurança. Mas volto ali à minha morada, as terras distantes. Onde fico em confidências com a única companhia que aprendi a tolerar: a minha.

Organograma

Não tem nada mais importante neste trabalho do que não faltar. Fazer o trabalho não é importante. Mas não pode faltar café. Entregar os relatórios no prazo não é importante. Mas é bom estar presente na reunião e contar histórias engraçadas. Resolver um problema do cliente não vem objetivamente ao caso, mas é bom estarmos sentados à escrivaninha quando o chefe fizer a ronda do fim de tarde. Existe um organograma com nomes. Deveria existir outro com hierarquia das atividades. E, neste quadro, trabalhar fica lá embaixo. E enrolar fica lá em cima. Não brinque com os organogramas.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Foto #092


Infiéis

Por que as pessoas negam Deus desse jeito? Em todas as suas qualidades... Ele não é onisciente? E por que nos negamos a saber de todos os fatos, de todos os lados da história, de todos os diferentes sentimentos e acontecimentos? Ele não é misericordioso? Por que cultivamos as soluções pelo ódio? Um dos grandes problemas das religiões é a infinita capacidade de aceitar seguidores não devidamente religiosos.

George Berkeley apaixonado

Se uma árvore cair na floresta e ninguém estiver lá para ouvir, ainda assim ela fez barulho?

Pode uma poesia ser bela se ninguém a estiver lendo?

Pode uma música ser bonita sem ninguém para ouví-la?

Pode um amor existir sem sorrisos?

Especial


quarta-feira, 1 de abril de 2015

Foto #091


Este post não tem título

Odeio ler. Tenho nojo de pobre. Essa ditadura dos bons modos é pura encheção de saco sem nada pra ensinar. Este blog é famoso. Tenho noventa e dois anos. Morri ontem. Adoro berinjela. Não considero que anacronismos ortográficos sejam um êrro. A Veja é minha revista preferida. Dinheiro é o foco da minha vida. Inteligentes necessariamente enriquecem ou estão fazendo uma burrada. Sou burro. Não quebrei o vidro do Fusca quando era criança. Não sinto saudades abissais e inconfessáveis. Não gosto de abraçar. Fodam-se as baleias. Traí todas minhas namoradas. Não vou comprar mais livros. Comecei meu regime hoje. Só vou pegar um Bis, pode guardar os outros.

Foi bem assim mesmo

Chegamos na sala de espera. Uma multidão Sábado chuvoso, aquele cheiro de gente molhada. Olhei para ela a fim de conferir. Ufa, sobreviveu à chuva também. Ofereci: café ou água? Café, café! Fui à máquina de café só para constatar que ela não fazia nada. Não me dei por vencido. Comecei a apalpar atrás dela (da máquina), e aí ela (a namorada) falou: vai mexer aí mesmo? Será que pode? Está desligada! Vou ligar. Liguei. A máquina. E uma luz vermelha apenas. Nada da luz verde. Luz verde é boa, vermelha é ruim. Comecei a abrir os compartimentos superiores. Essa caixinha aqui está cheia de café. Essa outra de um pó diferente. Deve ser o do capuccino. E essa outra.. ah há! Cadê a água? Comecei a pegar água do bebedouro e colocar com cima dela (da máquina), e ela (minha namorada) ficou apreensiva: vão dar bronca na gente! Mas a máquina não está quebrada, só está sem água, e é para uso das pessoas da sala de espera, que somos nós, então pronto. Tudo certo. Tomei um café. E ela, um capuccino. Estava uma delícia. Tanto que outras pessoas se aproximaram. E foram se deliciando até acabar a água. Seguindo meu exemplo, que haviam observado com aquela reclusa expectativa pela tragédia alheia, pegaram água do galão do bebedouro e foram fazendo mais café. Fiquei orgulhoso do meu feito e da inspiração que tive sobre aquela gente. Até que fiquei com sede e constatei que haviam usado toda a água.