domingo, 26 de dezembro de 2010

Jarro

Confissões inconfessáveis que faço pra mim todos os dias. Todos os dias... Todos os dias nego as coisas que sei que são verdade. As coisas que faço serem verdade. As coisas que gosto que sejam verdade. As coisas que parecem não poder ser verdade. Meus pensamentos não são certos no mundo lá fora, mas são inevitáveis aqui dentro...

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Away

As paixões se instalam uma por vez. Neste coração primeiro. Naquele depois. Nunca junto. Nunca simultâneo. É deste descompasso de amores que padecem os desamados, nunca da ausência completa do amor.

Ele a quisera desmedidamente. Fez planos. Aceitou em paz que se tornaria então um adulto. Adulto de ter a própria casa, as próprias contas, os próprios filhos, a própria história. E ela não o amou. E ela o deixou. A vida, ah! Caprichosa... Não os deixou afastarem-se mais que o necessário para que certas feridas se solidificassem em cicatrizes maquiáveis. Redescobriram-se. Amigos. Amigos... E com o passar do tempo a tranquilidade excessiva dele vai soando aos olhos dela mais e mais como um cotidiano perfeito. Uma companhia desejável. Não era como o namoro em que suas carências a tinham metido. Era... era leve. Era natural.

- Eu te amo, ela disse.

- Duvido!, ele pensou, esbravejando dentro de si. Contra ela e contra a história. E silenciou. E desviou o olhar.

Desejo. Corpos se faltando. Mordidas em orelhas escondidas na escuridão. Umas nas costas. Vozes aquecidas em suspiros graves. Suores misturados.

E não se amam mais. Não ao mesmo tempo.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Sistemas

As pessoas tentam conduzir suas vidas, melhorá-las e alterá-las, como se a vida fosse um Estado. Um estático a ser moldado, talhado.

Mas a vida é um processo. Um processo sem ponto fixo. Em processos, controla-se as características do fluxo, o aspecto das mudanças, e não uma configuração estática, final e inalterável.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Descarte

Talvez uma das grandes razões para a importância da ciência e de sua difusão, em particular, seja o fato de que os homens, caso geral, não pensam. Não são profundamente críticos, não são dados a investigar, não se atrabalham com os cantos todos do interrogar. Assim, tanto melhor que exista um conjunto de tradições de conclusões bem encaminhadas, para as quais se possa olhar como que a um altar, e ao sair dos templos de instrução transcedental não se tenha que fazer nada mais além de seguir aqueles tantos credos cansadamente repetidos e repetidos.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Dor

Hoje quem sabe eu não poderia só morrer um pouco? Só sumir do mundo?

E não correr mais o risco de deixar minha namorada triste por falta de atenção.

E não ser uma falha nesta ou naquela carreira por não saber o que quero da vida.

E não ser mais uma incógnita pra mim mesmo.

Eu sou uma incógnita pra mim mesmo.

E quando os dias passam, indiferentes e impiedosos,

Ao invés de resolver minhas dúvidas, elas engrossam

Empastam, engessam.

Eu sou uma incógnita para mim mesmo.

E quanto mais os dias passam, mais sou esse não ser

É só mais um dia sem ter sido

É só mais uma tentativa não começada

Sou um potencial adormecido

Adormecido em sono profundo

De que valem os potenciais?!

Tudo tem potencial de tudo. Todo assassino é um anjo potencial

Todo deus é um demônio potencial

Todo caderno em branco é na literatura um nobel em potencial

Em minha casa vazia mora uma família feliz, falando potencialmente

Poderia ser você ali na sala brincando com as crianças

Poderiam ser nossas crianças

Mas você não está aqui

Poderia estar, potencialmente está

Mas não está.

sábado, 18 de dezembro de 2010

Saída

Caminhei pela cidade de dia,
Andando sem parar, nunca parar
Debaixo de Sol, em bairros bonitos
Em bairros feios, favelas
No meio de feiras
Em ruas desertas

Anoiteceu, anoiteceu e continuei andando
E queria sair dali, sair da cidade
E eu raciocinava a direção do norte
E ponderava minhas escolhas de curvas
E continuei andando
E não havia saída.

A cidade, perfeita ou problemática,
Rica ou pobre
A cidade, cenário de todas as possibilidades
Dessa vida que me engole,
Não tem saída.
E eu lá, só andando, e não há saída.

A cidade me engoliu.
Era outro dia já. E eu continuava andando.
Ao leste, andando ao leste sempre ao leste.
Assim de frente encaro o Sol
Lhe cuspo em revolta
Lhe deixo rir de mim,
Como impedir?

Caminhei, caminhei, caminhei
caminhei, caminhei, caminhei
caminhei caminhei caminhei caminhei
caminheicaminheicaminheicaminhei...
Até que a última gota de disposição queimou
Em alguma célula cansada de meus músculos
Caí ajoelhado no coração da cidade,
Na Praça da Sé

E, exausto, não conseguia mais pensar
Onde era o leste, onde era o norte,
O que era o Sol, o que era a Lua
E assim, sem pensar na fuga,
Sem ter na visão da minha mente
A sede do ar livre
Desci para o Parque Dom Pedro
Lá estava, salgada e tranquila,
Do outro lado da rua,
A praia, já do lado de fora
Onde deitei e durmi e acordei queimado e feliz.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Etimológico

O que sou, desisti de mostrar o que sou
Porque exibir meu ser é deixar de sê-lo
Porque mostrar é tirar da caixa
E a caixa sou eu
E o ar de fora me enferruja
E o mar namora na praia uma coruja
Mas ela voa
E voa e vai embora
E daí se a rima é tosca?
Se a imagem não faz sentido?
Se o que eu penso não faz sentido
Se o que sou não faz sentido
Se o que escrevi não faz sentido
Ao menos a coruja e o mar se entendem
E não discutem horários
E não se pedem explicações

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Calmo

Vou virar meu guarda-roupa abaixo, espalhar roupas, lençois e cobertores por todo o quarto. Jogar álcool. Meter fogo em tudo. E sair correndo de casa. Não vou andar pela calçada não. Vou passar por cima dos carros estacionados, pulando de um pro outro. Amaçando o teto, riscando o capô. Aí vou parar no meio de um cruzamento e gritar palavras sem sentido. Os cachorros perdidos da cidade, um a um, vão me acompanhar. Serei o líder de uma matilha de ensandecidos mordedores. Vamos todos sair latindo por aí. Bradando aos balbúcios qualquer coisa. Vamos encarnar o caos que todos sentem resignados dentro de si. Aí vou entrar em uma padaria. Pular pro outro lado do balcão. Comer coxinhas e fatias frias de pizza, uma coisa por cima da outra, sujando a cara. Com a cara dentro da estufa. Os cães todos impedirão que me impeçam! E vou passar por toda a Avenida Paulista sendo seguido por mais de mil cães. E não saberão o que fazer. A polícia não vai atirar, tamanho o surrealismo. Estaremos imunes. Muitos compartilharão em segredo com nossa causa. Vou descer a Consolação. Dois mil cachorros. Vou até praça da Sé. Deitar na escada da catedral. Cercado por dez mil cães ferozes. E vou dormir em paz.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Penumbra

Madrugada. Às vezes o som de um ônibus passando longe. Ele andava pela rua. Olhava sombras. Gatos andando sem maiores preocupações, esquivos. Lixo espalhado. Os barulhos de seus tênis. Seus pensamentos jogados. Aquelas palavras. O emprego errado. Tudo machucava. Tudo perturbava. Pensou em gritar. Alívio? Lua indiferente. Madrugada. Aproximava-se daquela casa. Aquela casa... De manhã, bem cedinho, passando ali em frente ainda antes da cidade acordar, era possível vê-la por entre frestas da cortina acordando, no quarto de cima. As frustrações de sua vida. A dor de uma rejeição tão violenta. O emprego entediante. A madrugada quieta e indiferente. E a casa daquela mulher se aproximando. Ela poderia estar lá. Salvaria o dia, a noite. Salvaria a caminhada. Lhe daria um sono tranquilo. Ver aquelas costas lisas. Aquele sutiã branco de volume perfeito para suas mãos. Aquele cabelo desenhado com ondas perfeitas. Foi se aproximando. Viu a casa ao longe. Apagada. Triste. Neurótico. Não passou em frente à casa. Abriu o portão e entrou. Não fez menção de encoleirar o silêncio; deixou-o fugir a longe! Subiu as escadas com pés pesados de sede. Respirava fôlego tenso. A maçaneta. A luz da lua era cúmplice. Ela já estava acordada, apoiando a cabeça sobre a mão direita, o ombro sobre o travesseiro. Não quebrou o silêncio, só remodelou-o com sussuros.

- Então é você mesmo...

- Sabia que eu viria?

- Não esperava a essa hora. Mas estava destrancado, não estava? Vem... vem!

Quebraram a cama, o segundo andar e o quarteirão.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Blues

Aí tinha aquele garoto que todos pensavam conhecer. Eu vi o jovem numa noite de música e conversa. De blues e mentiras. De gaitas e amores. Quieto num canto, por vezes quase ignorado. Abraçado e olhado noutras. As garotas gostavam dele, ah! Ah gostavam sim. E ele realmente parecia um paspalho abichalhado de tão imune que era aos abraços, aos carinhos, às bundas todas ali por se apalpar.

Enganaram-se porém todos os que foram superficiais no entendimento desse ostracismo. Ele estava de luto. Estava de luto de si. Havia um eu morto dentro de si. Morto a cada dia. E ele velava. Chegava em casa. Deitava no teto da sala e olhava para as coisas todas incrédulo. Incompreensível essa mania de apego ao chão. O chão não serve para nada. O chão não lhe servia para nada.

Diziam que ele não tinha tanto assunto. Ele ficava quieto engolindo todos os assuntos, olhando. Era tudo ao mesmo tempo na cabeça dele. O violão. A gaita. O zelador reclamando fazia parte da música que ele ouvia. O refrão seria outro completamente outro se a cerveja não se derrubasse ao tapete. A ficção mudaria de gosto se aqueles romances todos não se fizessem e desfizessem assim quase desnudos diante de seus olhos.

Achavam que ele às vezes se isolava e não fazia parte de nada, quieto num canto. Mergulhado em seu mundo, sabia que um mundo era um só. Fazia parte de tudo.

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Você

Você me enxerga. Eu me escondo. Atrás da pedra. Você olha. E me vê. E não vê a pedra. Eu tenho olhos verdes. Verdes claros. Verde forte, fosforecente. Verde criptonita. Radioativo. E estou triste. E você me olha. E vê cinza. E vê escuro. E ninguém mais vê. Você me toca. Me toca com sede. Me toca tentando trocar nossos corpos. Aperta. Marca. Arranha. Sangra. Engole. Você é doce. É risonha. É linda. É séria. É mulher. É gostosa. Você me provoca. Você me desperta. Você me deseja. Você me faz te desejar. Você desnuda meu corpo, meus segredos, minhas mentiras, minhas dúvidas. Você é presente. Você é errada. Você é novidade. Você quebra todos os padrões das minhas caretices tuberculósicas que tossem conveniências repetitivas por aí. E não traz padrões novos. Traz tela. Traz tinta. Não traz pincel. Convida a pintar com a mão. Com os pés. Com a cara. Você é ilícita. Você é proibida. Você é diferente. Você é corrosiva. Você é perigosa. Você é irrecomendável. Você é inusitada. Você é exótica. Você é possessiva. Você é ciumenta. Você é carinhosa. Você é problemática. Você é irresistível.

sábado, 4 de dezembro de 2010

Noites turvas

Li as Noites Brancas e saí pra passear ao lado de um belo riacho.

Margem calçada de pedras velhas e ásperas.

Tinha a mão direita entrelaçada à mão de uma Nástienhka imaginária.

Tão material em mim que a mão esquentava.

Olhei ao horizonte, o Sol brincando de jogar as sombras lá longe.

Eu brincando de jogar o impossível mais perto.

E a Nástienhka ria. Imaginária e ria, desobediente, malandra que era. Um encanto.

Sem menos ou mais, ela tropeçou. Uma pedra ou um musgo a abalar o equilíbrio da mulher.

Caiu com a testa numa pedra pontuda.

Sangrava, eu a agitando em meus braços, aos gritos e soluços, desesperado.

Numa mesa de bar logo ali na esquina ria o próprio Dostoiévski a dar de ombros:

- Esse aí não cuida nem de um draminha curtinho, é novato!

O Camus, no bar da outra esquina, é que achou o máximo. Vibrou, até!

E virava outra vodka, batendo o copo na mesa.

O sol estava circulando o horizonte, que ir por cima de tudo de leste a oeste já lhe era monótono.

As sombras faziam círculos em volta das coisas. O sangue escorria da testa da minha Nástienkha, fugindo de sua sombra.

Veio a mão ao meu ombro, quase acusando. Virei-me.

A Nástienkha, em pé, brava a me olhar condenando de todas as formas silenciosas que se têm para condenar.

A Nástienkha, em meus braços, morrendo por um pequeno deslize, falta de cuidado meu? Fatalidade? Imperícia de meus socorros?

Por uma eu chorava. Da outra eu tinha raiva e queria gritar para ela me deixar em paz, que não era culpa minha.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A escrita

A escrita é uma introspecção que se deixa bisbilhotar.

Se não for, perdoe o equívoco, eu estava apenas aqui pensando comigo mesmo...

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Sempre lá

Já deixei rosas na porta da casa, no meio da noite. Já fiz cartões e deixei de surpresa nas coisas da amada. No armário da faculdade. Na bolsa. Já escrevi cartas apaixonadas. Já dei beijos cinematográficos na frente de muitos. De amigos. E de desconhecidos também. Mas isso, nunca achei que chegaria a um extremo tão grande. E nunca achei que seria tão difícil. E nunca tão pesado, indiluível... Alguém aí, por uma espécie de amor maior, já experimentou enterrar dentro de si um grande amor em segredo eterno?

domingo, 21 de novembro de 2010

Vida

O que é que a gente responde, quando não sabe a resposta?

Sons

Hoje ouvi talvez 25 versões diferentes de Misty. Instrumentais, cantadas... É possível se apaixonar por uma música?

Verdades

Amor...
...rima com dor.

sábado, 20 de novembro de 2010

sábado, 13 de novembro de 2010

Claustrofobia

Vou falar da poeira que se acumula no chão do meu quarto. Vou falar da rachadura que vi na parede do prédio. Vou falar da unha do pé que me incomoda. Vou falar de como é impossível desamassar papel. Vou virar as costas pra poesia. Vou desistir de perceber coisas que tocam o coração. Até que esqueçam de mim. A atenção é esse tipo de lenha que faz queimar uma chama narcisística dentro de cada um. Impossível ser diferente. Modéstia é um sobretudo que aquece o eu narcisístico e o esconde, não é o contrário. Esqueçam de mim e me deixem escrever em paz. Me deixem ser quem sou, nú de minhas censuras de mim. Despido de minha sede de olhares. Não quero escrever olhando para meu futuro de afetos. Não quero escrever por excesso de carência do mundo. Quero escrever para me livrar do mundo. Para tirá-lo de mim. Quero escrever pra olhar pra fora com a lanterna acesa. Não olhem pra mim, não quero cegá-los. Olhem pra fora, na direção que ilumino, e me deixem em paz. Vou falar da sujeira de pneu velho.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Corporativo

- Onde estão os relatórios? Eram pra ontem e ainda não estão prontos!

- Você pode terminar de formatar estas tabelas?

- Você não vai aparecer pra ajudar na construção? Estamos contando com você!

- Quem fizer parte da equipe mesmo, é bom se manifestar! Não vamos pegar ninguém pela mãozinha!

Ótimo, ótimo, ótimo! Deixem minha mãozinha em paz. Me deixem sumir. Não, não faço parte da equipe! Faço parte da minha equipe só. Só falta definir qual é o negócio dessa empresa de um. Quanto custa uma mochila? Quantos caminhoneiros por aí ainda dariam carona a um errante desencontrado de si? Vou conhecer o Brasil. A América do Sul. Do Norte. A Ásia. A Europa. A África. E se pá ainda arranjo uma carona de algum jeito pra Oceania. Austrália. Nova Zelância. Vou subir numa árvore alta em algum canto esquecido da Polinésia. Uma Palmeira, quem sabe. E lá em cima eu vou abrir uma bússola. Voltar-me em direção a São Paulo e gritar:

- Não tenho a menor idéia de onde estão os relatórios! E não estou neeeemmm aííííííí!

Creio que dará uma relaxada e tanto.

Alguém vai comigo? Com mais gente, poderíamos não só gritar, mas fazer um coral, quem sabe dividir a frase toda em várias vozes, alternar os timbres e fazer uma dança de acordes displicentes olhando pro leste. Mal posso esperar!

sábado, 6 de novembro de 2010

Brick

É que eu mergulho num imaginário
E sair é ver que as coisas só são
E eu gosto da agonia da falta de ar
Que dá essa urgência de um novo acontecer
Mas se algo acontece
Mas se a urgência é apaziguada
Pra onde vai minha agonia?
Quero afundar de novo
Não é melancolia
Não é tristeza
Ao contrário
É urgência de que a vida seja insolúvel
Pra que eu imagine não uma,
Mas duas mil soluções diferentes
A cada dia
E que nenhuma solução imaginada
Me prive do prazer de imaginar uma nova
Gosto da vida que é
E de inventar vidas que não são
E de esquecer irresponsavelmente
Se sou eu vivendo minha vida
Se sou eu vivendo minhas imaginações
Se sou eu imaginando minha vida
Se, quem sabe, não é tudo só
Um eu estranho imaginando que é só imaginação

quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Mistérios

E para onde vai a poesia, depois que a gente sente?

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Eterno retorno

Amor de verdade
Entalhei no granito
Virou lápide

sábado, 30 de outubro de 2010

Confissão

É que eu não me sei, entende? Você me olha, você me vê, me transpassa e ainda assim, também não me sabe. Você não me sabe e eu não me sei. Sou impulsos pra tantos os lados todos... A multiplicidade é cruel, sabia? A soma de todos os vetores que existem apontando em todas as direções é precisamente zero. A multiplicidade absoluta e infinita. E o completo nada. A mesma coisa. É que eu não me sei, precisamente por me saber demais, e ninguém é nessa extensão toda que finjo ser. É que ninguém é nessa lonjura toda que minto alcançar. Então não me perdoe, que é culpa minha. Foi culpa minha. Eu vim pra cá. Eu andei até sumir do seu horizonte. Do meu horizonte. Da linha do horizonte. E hoje é só um dia, sabia? E a gente sente o cheiro de toda a história. E a gente sabe de coisas de amanhã e de depois. O dia em que estamos é sempre o único dia que a gente não vive, mal experimenta até, gastando tempo pensando no resto deles. Vou terminar de construir o muro. Vou pintar a parede. Depois vou sair andando para outra cidade. E não vou levar nada. Não vou levar minhas roupas. Não vou levar meu dinheiro. Não vou levar meus documentos. Não vou levar meu rosto, minha saudade, meus amores, meus pensamentos. Vou ser outro. Vou a pé.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Moeda

Ele quer alguma moeda que o ajude a sobreviver mais um pouco à sua leucemia enquanto tenta de alguma maneira manter os filhos vivos e lutar contra as doenças deles. A pobreza deles. Deles todos.

Ele não vê a hora de chegar em casa, tomar um banho quente, ligar a TV e não assistir nada. Descançar os pés jogados em cima do sofá. Desligar a mente jogada num monte de nada.

Ela quer dar um destino melhor a cada um dos seus seis filhos. Quer que alguém compre seus chocolates e assim nunca mais precisará roubar. Roubar é repulsivo. Tira-se dos outros mas perde-se de si.

Ela só quer ver os e-mails quando chegar em casa. Saber do namorado. Saber da próxima balada de aniversário. Ler as notícias sobre o meio ambiente. Ler os textos cult sobre a miséria urbana.

Eles ocupam o mesmo vagão. Eles nunca fazem a mesma viagem.

terça-feira, 21 de setembro de 2010

Doente

Vou andando pela calçada e os passos pesam e ardem. Como se a cada passo um pedaço do meu pé fosse arrancado. Até minhas pernas começarem a tocar o chão desfeitas como dois tocos patéticos insistindo em ir onde não se deve. E vão também se corroendo pelo peso infinito do meu peito. E tudo vai se desmanchando. Como se eu rolasse por uma grande lixadeira de desfazer humanos. Até que sobra só minha cabeça, cambaleando entre os troncos de árvores e postes. Que finalmente rola para a rua e só persiste na existência por conta de freadas e buzinadas. Sempre na última hora. E vou ali, uma cabeça apenas, rodando, vendo o mundo girar. Vendo o fim chegar e desviar vezes sem conta, sem poder fazer nada. Sentindo que não há vontade que eu tenha que mude alguma coisa. É isso mais ou menos o que eu sinto toda a vez que a sei mais distante. Uma distância que não é segredo, que não é surpresa, que não é estranha nem incoerente. Mas que, toda vez que constatada, me invade intacta e explode lá dentro, estilhaços de granada. Não suporto. Não sei como suporto. Dói. Dói de fazer respirar menos. De por a mão no peito. De querer chorar e de sentir as lágrimas ao mesmo tempo patéticas e insuficientes demais. Machuca. Machuca pensar tanto e saber que vou dizer tão pouco. E não entendo como ainda assim não é suficiente para que eu tenha raiva. Para que eu tenha medo e fuja disso como quem tenta se livrar de uma posse demoníaca. Nunca fui tão pouco meu e ainda assim, a cada pouco que penso em você, não me importo. Se queria me livrar dessa dor toda era por uma só razão que não outra: poder ficar mais e mais perto de você sem maiores incômodos. Sem uma dor tão grande a esconder. Sem precisar fugir para poder existir sem te trazer uma culpa desmerecida; minha dor é minha, disso eu sei.

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Serião

O Tiago acompanhou a secretária até o supermercado. Também, tadinha, tinha machucado o dedinho. Topada forte e bem dada no pé da tábua de passar roupa. Quebrou. Mas o Tiago aproveitou-se da situação: arranjou pra Ana um daqueles carrinhos elétricos, de deficiente, só pra vê-la andando com aquilo por entre as gôndolas e poder rir um pouco.

Lá pelas tantas, amaldiçoou o céu e a Terra por não ter um celular capaz de tirar foto. Imagina, o celular dele não tira foto! Qual é o celular, hoje em dia, que não tira foto? Absurdo, absurdo!

Isso não seria problema. Não pro Tiago, que é altivo, comunicativo e descarado. É só pedir pra alguém tirar a foto e mandar por e-mail, ele pensou.

Aquela senhora?

Aquele moleque?

Aquele rapaz?

Aquele... aquele ali! Jaqueta preta, aparentando uns dezoito, dezenove anos...

- Amigo!

- Hum?

- O seu celular tira foto?

Olhar mal-encarado. Um assassino, parecia um assassino com raiva por a vítima ainda estar respirando!

- Tira, por que?

- É que, é que...

Pobre Tiago. As palavras lhe falhavam. Nunca tinha visto tamanha repulsa da parte de ninguém.

- .. é que eu queria tirar uma foto ali, daí você me mandava por e-mail...

- Não tô a fim! Serião! Num dá.

E saiu andando.

E o Tiago, perplexo...

- Nem todo mundo é como eu, poxa!

terça-feira, 6 de abril de 2010

Pró-Money

Dia desses o Lula andava por aí todo cheio de si, só falava do Biodiesel. Estava em cima do salto, dizendo que estávamos à frente de países de primeiro mundo... Estávamos avançados em matéria de combustível alternativo. País com o sucesso do pró-álcool, o Brasil caminhava a passos largos para uma nova era de energia renovável.

Mas aí...

Conseguiram achar o petróleo do pré-sal.

- Caramba, quanto petróleo no pré-sal!

- Que maravilha, maravilha!

- Calma, não podemos tirar esse petróleo de lá!

- E por que não?

- Porque petróleo é prejudicial ao meio ambiente. Precisamos explorar o biodiesel!

- Biodiesel é prejudicial ao meu bolso rapaz, dá licença que eu vou vender petróleo!

Acho que a lógica foi essa. Não escuto mais falar de biodiesel. Estamos orgulhosos de termos nos juntado aos países do primeiro mundo mais cedo do que pensávamos - optamos pelo caminho fácil, o de nos tornarmos, assim como eles, em poluidores cada vez mais poluidores.

quinta-feira, 25 de março de 2010

Querida

Coitada da minha filha. Não está trabalhando com algo de que goste. Passa os dias lá, contabilizando aqueles números financeiros, montantes que nunca vai ver, que nunca vai tocar. Aí todo fim do mês pinga um dinheirinho na sua conta. Novecentos reais. Têm idéia da miséria que é isso? Se algum nativo do primeiro mundo estiver lendo isso, por favor, faça as devidas correções para o dólar ou o euro. Sim, vai ficar um número bem pequeno. E aí, todo fim do mês ela pega esse dinheirinho, ajuda na conta do telefone, paga ainda a internet sozinha, que é só ela quem usa, depois me deixa cinquenta, para o que eu precisar gastar. Aí o resto... O resto? Ela já recebe resto, mas enfim... O resto ela guarda um pouquinho na poupança para planos futuros. Pobrezinha. Trabalha por dinheiro, apenas. O que ela gostaria de fazer? Será que ela não tem vontade alguma? Será que ela está acomodada apenas? Por pior que seja o trabalho, é um lugar que a emprega e onde não há risco de ser mandada embora. Comodismo. E as coisas dela? O que ela realmente gostaria de estar fazendo? Eu gostaria tanto de saber. Tanto. Talvez ela devesse se jogar no mundo, viver misérias maiores porém mais cheia de emoção. Viver só esperando a vida passar não é lá dessas vidas mais magníficas, não é mesmo? Claro que não, todos sabem que não. Mas como eu a ajudo? Chego perto e ela se esconde. Passa o tempo todo no quarto. Vai ao trabalho, chega, vai pro quarto. Toma banho, quarto. Vai ao banheiro, quarto. Come qualquer tranqueira semi-biológica, quarto. Coitadinha dela.

terça-feira, 23 de março de 2010

Flagrante

Eu me faço mal. Estou com a boca seca, cabeça doendo. Eu não sou um super-homem. Quem disse que eu aguentaria isso? é que eu achei que não passaria por isso. Nunca decidi mentir pra mim: decidi, lembro bem, mudar o que sou. Deixar de amar, afinal, é isso, é mudar o que se é. Mas não consegui, e arco com as conseqüências. Amo, amo escodido. Amar escondido é amar? E minto pra ela todos os dias. Afinal, omitir é uma espécie de mentira menor, mas ainda assim uma mentira, não é? Ela se sentiria traída se soubesse? Não foi a intenção. É covardia se esconder assim e amar escondido? Ela deveria poder decidir se me autoriza ou não a amá-la? Ela deveria poder decidir se me submete ou não a tanto sofrimento por me contar tanto de sua vida? Eu não deveria perder tempo com essas questões. Essas questões, aliás, não deveriam existir, porque deveria ser tão fácil deixar de amar. O maior problema do mundo hoje não é justamente o oposto? As pessoas não conseguem evitar deixar de amar, não é isso? Namoros acabam, casamentos acabam, até a cumplicidade na traição, mais hora menos hora, acaba também. Ou será que acaba justamente porque desgasta, de modo que meu amor será eterno, eterno precisamente porque nunca começou?

segunda-feira, 22 de março de 2010

Eu líquido

Ler Bauman é perturbador, profundamente perturbador, porque eu me descubro mais filho desta época do que gostaria de ser. Sou mais filho deste mundo do que imaginava ser, e bem lá onde a gente se acredita mais escondido, mais individual: meu íntimo é um produto desta época. Lendo Bauman entendo tanta coisa sobre mim. Mas essa existência interior é tão concreta que permanece a questão: entendê-la é algo capaz de alterá-la?

quinta-feira, 18 de março de 2010

Pós leitura

Tive uma luz ao ler o último livrinho que eu li. Era de uma autora boa, dessas que futucam lugares escondidos, sabe? Já leu algo assim?

Descobri, correndo as páginas, que ando longe de mim. É esse o resumo de todos os problemas. Tenho me escondido, fugido, ficado ausente. Mas não dos outros. De mim mesmo. Minhas sinceridades não me contam nada há um tempão. Só ouço minhas mentiras, minhas coisas escondidas se escondem e se sufocam debaixo de escombros de mentiras. Mentiras pequenas, talvez. Mentiras inocentes até. Mentiras sem importância, considerando-se a história do mundo, o mercado do petróleo ou o risco de destruição por asteróides. Mas, ainda assim, minhas mentiras, minhas, e isso cria perspectivas tão aterradoras de importância pra mim.

Olha só onde estou agora. No trabalho. Estou trabalhando? Não. Estou escrevendo de mim para mim mesmo, uma carta que talvez eu não precisasse escrever pois, autor e destinatário em um só, eu poderia só pensá-la. Mas preciso disso. Nesse momento é necessário. O que é necessário? Estar um pouquinho próximo de mim, e isso envolve confessar abertamente, ainda que só no silêncio das minhas introspecções, a catástrofe que é eu estar preso a um trabalho que não é a coisa mais sensacional do mundo, enquanto todas minhas vidas, todas as coisas que me empolgam, que me movem, que têm um poder de me desabar em lágrimas de desespero, todas essas coisas estão lá fora. Essas coisas, essas pessoas. E aí, o que fazer? Preciso escrever porque, vendo as palavras aí fora, sei com um pouquinho menos de dúvida que meus pensamentos são reais. Pensar apenas pensando é algo muito fácil de apagar.

Quando terei forças de ser sincero? Já conheço o caminho, falta andar nele. Confessar minhas coisas aqui, que coisa mais estranha. Não sei se consigo.

Lembro anos atrás, a empolgação com que eu me atirava às minhas coisas. Meus trabalhos, minhas curiosidades. É aterrador constatar o quão frágil era isso tudo. Frágil sim, porque foi por pouco, tão miseravelmente pouco que tudo se diluiu. Ou isso não é pouco? Um pequeno segredo fica gigante com o tempo? A História se importa?

O imbecil

Qual a receita para ser um completo imbecil? Ele sabe, é claro que ele sabe. Ele chega aqui todo dia e repete a receita. Eu, que não sou imbecil, confesso uma certa dificuldade para entender todos os meandros desse mecanismo de imbecilidade. Não é que apesar de não ser imbecil eu seja burro. Não é isso. É que a imbecilidade é intrinsecamente aleatória e toda aleatoriedade desafia com garras duras as delicadezas da razão. Então eu não cheguei ainda a uma fórmula geral, tenho apenas os eventos isolados. Os comentários jogados, os sorrisos conclusivos que declaram não reconhecer a completa impertinência do que se disse. Isso é importante, ora como é. Um sorriso, qual belo é um sorriso, não é mesmo? Mas ele não é algo de valor absoluto, de forma alguma. Há sorrisos sarcásticos, há sorrisos que produzem ódio. O sorriso do imbecil, logo após ele ter dito alguma imbecilidade, atesta o tamanho de sua burrice. O que é pior do que se orgulhar abertamente de algo que não apresenta o menor mérito? Em uma criança, atribui-se todos esses momentos à infantilidade. Ela ainda não entende, que bonitinha! Está aprendendo, olha que doce. Mas o imbecil, o imbecil é diferente. Ele deveria saber, mas não sabe. Esse não saber causa um grande incômodo. Não se trata necessariamente de um saber técnico, enciclopédico, que deveria estar na cabeça dele mas não está. É em geral um saber mais profundo, social. Ele conta uma piada que não tem a menor graça, que ofende o bom gosto de todos os ouvintes, e ri. Ri com uma sinceridade que irrita, incomoda, desconcerta. E inicia-se um carnaval de calamidades. O riso é medonho não só porque acontece, mas também porque permanece. Ora, um idiota que continua a rir de algo completamente desapropriado, que saiu de sua própria boca, é claramente incapaz de captar os gritantes sinais de desaprovação de todos. Não se trata de ceifar a criatividade. Não se trata de um elitismo verbal de minha parte, como se eu preferisse que todos parassem de falar merda. Falar merda é ótimo, é sensacional, é uma condição essencial para a existência humana ser humana. A pertinência completa e mecânica de todas as sentenças ditas em todas as situações vividas sugeriria com grande ênfase que estaria na hora de nos substituirmos por máquinas, ou que talvez já tivéssemos terminado de nos metamorfosearmos em tal. Não é isso. Mas, quando falo merda, das duas uma... ou eu acreditava falar algo totalmente genial, e então percebi, com a ajuda do espelho público que é o rosto alheio, o tamanho da asneira que proferi, ou então eu já sabia de antemão o desordor da intestinice que iria proferir e cuidei para adotar uma reação cabível. Em suma, o que incomoda no imbecil não é a imbecilidade em si, não é o conteúdo de sua manifestação, propriamente dito. O que incomoda no imbecil é sua completa incapacidade de se saber idiota. De entender o que lhe dizem todos, e enfatizo, todos os que estão ao redor e reagem aos seus ditos com um olhar que não deixa dúvidas: nossa cara, como você é imbecil! Fora isso, não consigo mesmo captar uma receita geral. Às vezes ele é imbecil na reunião. Às vezes é imbecil quando fala de mulher. Quando emite opiniões técnicas sobre os assuntos do trabalho. Quando oferece café. Quando conta uma piada. É um imbecil muito pró-ativo, e eu terei que conviver com isso.

Existir, feliz

Existir, quando eu existo? Quando estou no trabalho, fazendo as coisas? Quando ganho mais dinheiro? Quando a vida é viabilizada? Ou quando me sinto profundamente feliz e vivo com a simples leitura de um livrinho aqui fechado num apertado e meio fedido quartinho dos fundos? Eu estou feliz. O livro é tão bom. A mente se sente tão viva. Como poderia um corpo ser vivo sem uma mente plenamente viva? Eu vivo da mente pra fora, mas ando ou andava morto por aí. Ressucito, volto, teimo. De que adianta morrer e largar o corpo andando por aí? Tenho meu jeito de viver e gosto de deixá-lo acontecer. Feliz, feliz.

quinta-feira, 25 de fevereiro de 2010

As perguntas...

Alguns pesquisadores têm recentemente investigado a relação entre as crenças religiosas das pessoas e seu grau de otimismo. Será que há alguma força evolutiva que favorece o surgimento de um instinto religioso? No fundo, afinal, é esta a pergunta à qual os pesquisadores se debruçam. O que eu não entendo é a razão para tantas dúvidas num caso em que a relação é tão óbvia. Qualquer pessoa sensata e minimamente informada, observadora das coisas ao redor, saberá de imediato que tanto a religião como o otimismo demandam um elevado poder de blindagem contra a verdade. São, portanto, sintomas diferentes da mesma patologia. Não que não possam trazer benefícios. A lucidez humana enxerga a desgraça em uma perspectiva individualista. Assumindo que todo o resto continuará inalterado, a perspectiva para o isolado indivíduo pensante não é das melhores. Mas um louco jamais manterá sua mente tão limitada, seja ele religioso ou otimista. Ao invés de centrar seus pensamentos sobre si mesmo, cederá à tentação de acreditar que os outros mudarão com ele. E aí volta-se ao mundo da lógica, pois assumindo-se que os outros irão mudar também, muitos outros mundos tornam-se possíveis. O meio ambiente enfrenta problemas, mas se todos mudarem, então a situação não é das mais graves, e tudo se salvará. Comete um equívoco o esperançoso incorrigível por achar que o comportamento humano é assim tão plástico. Mas erra também o cético desolado e isolado ao achar que tudo contiará como está. Muda, sempre muda. O que ninguém sabe, e que é um desconhecimento tão aterrador que convida toda a Sociologia a se confessar ainda não nascida, é a velocidade e a direção da mudança. Qual a inércia do comportamento humano? O que vai mudar o comportamento das pessoas? E para onde este comportamento vai mudar? O economista não sabe. O publicitário adoraria saber. O vendedor faz o que pode. O sociólogo finge que já sabe há séculos. O antropólogo não se dá ao trabalho. O engenheiro nunca pensa no assunto como deveria, o que talvez seja um grande mérito ao seu favor, já que aqueles que o fazem não chegam a lugar algum. É a pergunta fundamental, na verdade, ainda que esta não interesse devidamente aos pesquisadores: por que as pessoas fazem o que fazem? Como acontecem as mudanças de comportamento? Sei lá. Eu? Sei lá!

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Pequena reflexão

Como assim? Meus posts são muito longos? Dez, vinte linhas quando muito!

"Ah, as idéias são boas, mas você escreve bastante, dá preguiça de ler tudo."

Maravilha, maravilha. Não lemos mais. É isso. Achamos um jeito de fazer a comunicação dar a volta ao mundo em segundos. Coisa que antes tomaria meses de viajantes aventureiros destemidos. Coisa que não seria possível em muitos trajetos. Ano mil setecentos e vinte e sete. Você está em Estocolmo e, no dia dezoito de dezembro resolve mandar um cartão de natal para seu filho. Que está viajando o mundo e neste momento encontra-se em Santiago do Chile. Não, não vai dar, esqueça. Talvez ele nem esteja vivo. Ou talvez não sobreviva o suficiente para receber suas felicitações. Não tem como saber.

Ano desses aí em que estamos. Você está num banheiro escuro, num posto de gasolina abandonado, no meio de uma estrada esburacada na Bahia. São quase três da madrugada. Você faria suas necessidades pela estrada mesmo, mas como achou um posto abandonado, resolveu que seria minimamente mais civilizado usar uma instalação sanitária. E lá, sentado no trono da redenção gastronômica, o que você faz? Saca do bolso da calça seu potente Blackberry, seu iPhone, e tuíta. "Três da madrugada e tô num banheiro de posto abandonado aqui na bahia, mó escuridão! Me cagando de medo!". Minutos depois, talvez segundos, seu filho, que está fazendo mestrado no japão, te chama pra um chat de voz via skype, pra sacanear sua situação.

Comunicar-se é trivial. Mas o que comunicar? O que interessa dizer? Com tanta gente dizendo, quem é que tem o direito de falar demais? Olhe o tamanho desse post... Se você está lendo até aqui, sinto muito, você é um perdedor, um desperdiçador de tempo. Até aqui foram quase mil e oitocentos caracteres. Ou seja: dez posts grandes no Twitter!

Mas tenho teorias alternativas. Antes eram poucos os que usavam a linguagem escrita. A imbecilidade já era difundida, talvez até mais que hoje. Mas isso não era registrado ou tão pouco assim manifesto. Não nesse extremo. Acontece que o mundo tecnológico obrigou a alfabetização de milhões, pois a mão de obra especializada precisa saber ler avisos de "não fume" e de "uso obrigatório de ê-pê-í". Então foi que os imbecis aprenderam a escrever, e de posse da escrita, invadiram o mundo dos letrados. A internet é o reinado dessa socialização. A indústria do livro impresso filtra um pouquinho essa imbecilidade. Mas bem pouquinho. Quase nada. Passam pra lá aqueles que sabem escrever mais de cento e oitenta caracteres e os que se dispõe a escrever você ao invés de vc. O que não garante nada quanto ao conteúdo.

E tenho ainda outras teorias. Estamos nos desumanizando. A fala antes refletia o mundo interior. Por isso era complexa, longa, intrincada. Mas há cada vez menos mundo interior em quem quer que seja. Então, pra que falar muito? O mundo exterior é bem mais objetivo. Por isso, desde sempre, engenheiros foram muito menos poéticos que os poetas para escrever sobre o que quer que seja. Falar sobre o sentimento de paixão exige infinitamente mais parâmetros e detalhamentos do que especificar as vigas de uma ponte. E o mundo agora só existe lá fora. Coisas e momentos. Descrições de externidades. Quem quer refletir muito sobre isso? Vc?