quarta-feira, 8 de junho de 2016

O Fera

Eu era um estranho chegando ali. Mas o Fera, a quem eu nem havia sido apresentado ainda, pulava alegre como se chegasse um velho amigo. Um cobertor e duas blusas. É o que eu tinha. Falei do frio. Entreguei o cobertor e as blusas ao Rafael. E o Fera pulava e pulava, feliz.

Tinham um canto na calçada. Não os expulsavam dali porque estavam em frente a um estabelecimento abandonado. Tempos de crise. E, naquele canto escuro, não eram uma presença marcante o suficiente para espantar a clientela da farmácia ao lado.

Mas o Fera não sabia de nada disso. Seus pulsos, giros, rabo abanando, eram indistinguíveis de qualquer outra realidade mais afortunada.

- Esse aqui é o Fera… Fica junto comigo até nessa friaca doida!

Rafael dobrou as blusas com o esmero de um alfaiate de alta costura. Mais uma vez, agradeceu. E ficaram ali, ele e o Fera. Sorrindo e brincando um com o outro.

Despedi-me e fui embora, aquecido.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Repente

Me disseram que repente
    Não pode ser só leitura
Tem que ter de fundo um ritmo
    E tem que ter candura
E no final de cada frase
    Não basta acertar a crase
É preciso encher de rima
    De baixo até em cima
......
E me disseram que o assunto
    Tem que ser coisa bonita
Não vale falar de boi
    E nem da vida da cabrita
Mas se tu falar de avião
    Desde que o vôo seja bão
Diga lá o que quisé,
Voá é mió que se ir a pé!

Os idiotas

É preciso admitir novamente: existem os idiotas!
Muitos avanços foram feitos nessa era de respeito político. Mas há exageros. As pessoas hesitam em apontar ao interlocutor e dizer diretamente: "Idiota!".
Claro que não deve ser um ataque gratuito e vazio. Mas, desde que se justifique o porque da idiotice, reconheçamos, oferece-se ao idiota a chance de entender a origem de sua condição e, assim, sair dela.
Claro que estou puto. Chamei um idiota de tal e fui veementemente repreendido.
Mas o que eu mais quero desse mundo é que, quando achem que estou eu mesmo cometendo uma idiotice, que me chamem logo de idiota e se expliquem!

Uma das maiores idiotices cometidas pelos idiotas é a negação da própria existência.

Argumentos

Eu estava no ônibus e ouvi conversarem sobre política. Estavam alguns bancos para trás de modo que eu não vi rostos. Mas ouvi algumas frases. E fiquei contente ao perceber que números eram citados. Taxa de desemprego. Hoje e há dez anos. Taxa de alfabetização. Índices de qualidade de vida. E números eram mencionados, casualmente, com duas casas decimais. Queria que toda a população tivesse esse grau de informação. Inclusive eu.

2016

Na mesa à minha frente, três mulheres. Aparentam em torno dos vinte e cinco anos. Conversam sobre como é viável ir fazer um curso na Europa. A passagem aérea e o dinheiro para seis meses de curso lá. Que curso? Qualquer curso:
- Em seis meses dá pra achar alguém lá pra casar... aí, casou lá, tá feita!

Três desejos

Quero morar fora por pelo menos um ano. Porque vou conhecer pessoas diferentes. Porque serei obrigado a caminhar mais. Porque verei paisagens diferentes. Porque algo inusitado vai acontecer. Não me interessam as fotos nos pontos turísticos. Não quero saber das camisetas-troféu. Quero uma viagem que me permita descobrir outros lugares de mim mesmo. Um processo, no fundo, egoísta.

Quero ter coragem de ignorar a opinião dos outros. Viver de acordo com meus princípios, meus sonhos malucos. E quero conseguir desenvolver uma blindagem à opinião alheia. Porque o que há de mais nocivo no olhar do outro é a capacidade de produzir desânimo. Não quero desistir de minhas aspirações mais estranhas.

Quero escrever sobre as pessoas que mudam de vida. Porque é fascinante. Porque é a chave para entender muitos mistérios. Compreender o anseio de mudança passa por compreender a origem dos nossos sonhos, das nossas motivações. Até a ciência econômica iria se beneficiar dessas reflexões em sua face mais profunda.

Políticos

Sei que ele parecia culto e bem intencionado. E sei que ele o tratou muito bem. Sei que ele reservou um tempo absurdo do dia dele para lhe dar atenção. Mas, sem querer ser mal educado, afirmo categoricamente: isso de nada importa! A única coisa que interessa, em um político, é em quais papéis ele assina e em quais não assina. O resto é fachada. Boa pinta. Está fazendo "política" no senso mais pejorativo e degradante da palavra. Eu sei que é uma companhia agradável. Mas ali, dentro das paredes daquele gabinete, o que ele fez nos últimos anos é deplorável. Execrável. Não importa o quanto a companhia dele seja agradável.

A pior parte

Não, eu não sei se o namoro de vocês vai continuar. Sim, sim. Ele falou comigo. Eu sei que vocês não estão bem. Quero que continuem juntos mas não posso prometer nada. Não, você não está me incomodando, podemos continuar a conversa sem problemas. Não, eu não sei nem mesmo sobre a minha vida, quanto mais sobre a dele. Quanto mais sobre a sua. Acho que o tempo trará as respostas e essa é a pior parte. Não dá para acelerar o tempo. Não dá para abreviar a resposta.

As escolhas implícitas

A cada hora
A cada minuto
A cada segundo
A cada milésimo
Vai pensar no que?
Vai olhar para onde?
Escolhas
Tristezas do passado
Sonhos de futuro
Tijolos de tristeza
Tijolos de alegria
A construção do Eu
A arquitetura do espírito