segunda-feira, 6 de junho de 2022

Gênios desperdiçados

Quantas pessoas trabalham no desenvolvimento de um lançador de foguetes Javelin? Quantas pessoas trabalham em sua construção? Pense em tudo... na obtenção da matéria prima, na burocracia da cadeia produtiva, nos trabalhos de engenharia envolvidos, na logística de distribuição... Todo esse esforço para, por fim, matar quatro ou cinco jovens russos que não compreendiam o que estavam fazendo dentro de um tanque perdido sobre a Ucrânia. E esse tanque? Quanto esforço de desenvolvimento por trás?

Tento me distrair de tudo isso e abro o instagram, droga moderna que age diretamente nos centros de prazer no cérebro sem perturbar outros órgãos tal qual a cocaína ou o crack. Uma jovem toca músicas medievais em instrumentos típicos e canta também. Algo lindo. Mas... é ela mesma quem toca a flauta. O Bandolin. A percursão. Faz a montagem de todos os vídeos. O trabalho está excelente mas algo me incomoda...

Nossa vida social está fragmentada ao máximo e nossos esforços são mais coordenados nessas instituições cujo objetivo é destruir e matar.

O que essas pessoas todas poderiam estar fazendo caso o mundo compreendesse o valor inestimável da cooperação?

quinta-feira, 2 de junho de 2022

O que torna os humanos únicos

A discussão é velha. Tem sua face bíblica, sua face científica.

Talvez esse seja só meu palpite, nada mais. Acredito, contudo, que sustenta-se num certo empirismo.

Somos uma espécie em guerra absoluta. Estamos em guerra... com nós mesmos. Com a biosfera. E, por último, com a realidade. Fora destes três grupos encontram-se apenas uns deprimidos em estágio avançado.

segunda-feira, 22 de novembro de 2021

A parte e o todo

Quando a pessoa está triste, será que o neurônio da tristeza fica feliz?

Quando eu sonho com uma boa pizza, meus neurônios sabem o que se passa?

Quando um glóbulo branco persegue uma bactéria, suas moléculas sabem que estão vivendo uma aventura dramática?

Passando do nosso próprio nível organizacional e perceptível para baixo é fácil desmerecer essas questões como certas curiosidades bobas.

Mas o que dizer quando passamos para um nível acima?

Se nossa rede de comunicações estiver desenvolvendo algum tipo de inteligência ou mesmo consciência própria, nós de algum modo saberemos? Seria possível de algum modo investigar se isso está acontecendo, mesmo que a experiência e o conteúdo exato desse nível superior nos escape?

Essa possibilidade, para além de uma curiosidade teórica, é também um tanto quanto alentadora. Penso que a consciência do mundo interconectado está apenas começando a acordar. E, como um bebê recém nascido, ainda está formando muitas de suas conexões e está, inevitavelmente, cometendo muitos equívocos e erros durante o processo caótico de tentar aprender a interagir com o mundo.

Se este super cérebro vai algum dia adquirir alguma maturidade, ou se será para sempre um imbecil desfuncional, isso só o futuro dirá.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Urgências

 Não vou arrumar o mundo hoje.

Já me orgulho de ter arrumado a cama.

De ter preparado marmitas para uns três dias - sem carne.

Não vou arrumar o mundo hoje.

E o mundo vai continuar caindo aos pedaços.

Ódio, dúvida e equívoco se espalham. Chama em palha seca. Quem deixou a palha secar? 

Se alguns caem em erros óbvios hoje, outros erros são comuns a todos e não os enxergamos também a gente: a ideia de linearidade do avanço do mundo sempre foi uma ilusão sem fundamento. O mundo oscila em diversos processos vivos e complexos. As ideias avançam e se retraem feito ondas. Marés. Estamos vivendo uma inundação e não adianta ficar jogando água pra fora com baldinho. Está tudo inundado.

Mas é preciso continuar respirando.

E, se não dá para arrumar o mundo hoje, ainda há sentido em ajudar a pessoa ao lado.

É natural se sentir paralisado enquanto todos caminham para a inundação voluntaria e cegamente. Mas o futuro não depende de todos sobreviverem hoje. Basta alguns.

Tal qual na história da evolução biológica, também na história das ideias muitas vezes o que conectará o futuro e o passado será um estreito fio de renegados sobreviventes de um período sombrio.

Não é hoje que vou arrumar o mundo.

Mas vou sobreviver. E vou ajudar alguém mais a sobreviver. E, hoje, é essa a tarefa mais urgente para viabilizar o futuro.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Desespero

Eu fui ali até a vida, me acheguei de jeito pra espiá o que se acontecia. E se acontecia muita coisa, ô! O homem da mesa empapelada ia nos países todos petroleando dinheiros, a deusa do vestido branco vozeava paraísos nos corações de públicos e câmeras: lentes e olhos choravam todos naqueles agudos suaves de deixar escorregar tristezas pra longe. Naquele mundo mágico até eu tinha um passado e sonhos e futuros e todos estavam ali juntos na mesa do bar rindo de suas mentiras deslavadas, de seus devaneios tolos. Não sabia quanto tempo eu poderia ficar ali olhando, curiosando coisas alheias, os segredos do mundo e de mim e de todos. E nem lembrava bem nas precisões da memória o lugar certo pra onde voltar. Voltar numa imaginária inconsciência do fluxo das coisas onde eu via menos e vivia mais sem saber nos detalhes o quanto da vida acontecia. Ali no mundo fantástico eu era um assombro: um fantasma que tudo via e nada tocava. E me sentia vivo. E de volta à vida, ao mergulhar em minha própria realidade de novo, eu sabia: viveria uma vida plena e, preso para sempre em uma vida só, me sentiria menos vivo. E vi a vida de perto, a vida dos outros. Dos felizes e dos sofredores, dos que fomeavam sem lembranças do último saciar, das brigas de almas desencontradas, das solidões tropeçadas em desejos tão tenros. E de algum jeito, dentro de mim, era ser preso demais ser condenado a uma vida só dentro de um universo tão rico. Inveja de Deus? Pequenez de si? Já se sentiu assim?

domingo, 2 de agosto de 2020

Das motivações positivas e negativas

A Física ensina que o movimento pode ser produzido através de tração ou propulsão. Um objeto pode ser posto em movimento sendo empurrado ou puxado. Na mecânica básica, onde despreza-se a dimensão dos corpos, ambos processos são equivalentes. No mundo real, tridimensional, a tração apresenta a vantagem da estabilidade: empurrar um objeto pode levar a instabilidades dependendo dos arranjos do centro de massa e das forças de resistência. Projetistas de navios e foguetes lidam o tempo todo com este problema, mas mesmo situações mundanas como carregar um carrinho em um supermercado são capazes de demonstrar esse fenômeno. (Você coloca as compras mais pesadas na parte de trás ou da frente do carrinho?) A motivação das pessoas também é multifacetada. Podemos empreender uma mesma ação, do ponto de vista externo, porém movidos por diferentes forças internas. Podemos fugir ou podemos buscar. Podemos agir por medo ou por paixão. Dado que o medo é um limite inferior que acontece naturalmente em diversas situações - no limite não há como fugir da morte e sua possibilidade sempre aumenta quando nos damos à inação completa, a sociedade até aqui vem se estruturando com base no gerenciamento do medo. A Economia moderna tem uma visão tão pobre e rasa da alma humana que não aprecia devidamente essa diferença. É freqüente, por exemplo, a narrativa de que um dos lados positivos da desigualdade é a motivação para a atividade econômica, pois pessoas mais pobres observam a vida que é possível nas camadas mais ricas e se motivam à ação. Essa interpretação pode parecer verdadeira ao se observar dados de produtividade e desigualdade em alguns países, mas essa leitura ignora por completo a natureza da alma, a experiência subjetiva de quem está a trabalhar. Uma vez que se considere também este aspecto, torna-se óbvio que um dos grandes fatores de motivação hoje não é a paixão por progredir mas sim o medo de retroceder. Até o presente momento de nossa civilização as estruturas construídas em torno do medo são responsáveis pela massificação, porém são as ocorrências em que as pessoas podem dar-se ao luxo de mover-se pela paixão que respondem pela verdadeira criação. Fábricas asiáticas que exploram trabalho barato produzem milhões de celulares todos os anos, mas foram cientistas movidos pela paixão da investigação que criaram a ciência e a técnica capaz de possibilitar tal maravilha. Esse aspecto da realidade humana está hoje completamente fora das análises econômicas. É um estudo que nem sequer começou. Se, no futuro, aceitarmos o desafio de entender como estruturar mais e mais setores da sociedade sobre alicerces de paixão e não de medo, abriremos espaço para a multiplicação de gênios - espíritos humanos que hoje silenciam sob vidas estruturadas no medo. A transição contudo esbarra em uma enorme barreira ideológica - uma transição de fase com altíssima energia de ativação. Hoje qualquer pessoa que busque estruturar suas condições de vida para possibilitar um movimento para a busca da paixão, minimizando o impacto das propulsões por medo, é vista como irresponsável ou como alguém marchando em busca de algo sem sentido. Quem quer se dedicar à música, à pintura, à escrita, ou basicamente a qualquer outra paixão que seja, vai ouvir inúmeras críticas ou dúvidas que são, pura e simplesmente, ecos do medo tentando recapturar sua presa perdida. “Vai viver disso?” “Mas e o seu futuro?” “E a estabilidade?” “E se não der certo?”

sábado, 1 de agosto de 2020

Por que estranha lógica haveria de suceder este impossível de ser um ser humano político algo superior e distinto em suas virtudes e em seu coração aos demais humanos? A irracionalidade maior das pessoas é essa confiança no poder dos títulos e posições como se suplantassem em seus desígnios aquelas marcas realmente pessoais que se abismam em cada um de nós. Mentira, engano. As instituições são tão somente a máscara padronizada, a certeza da mentira correta, a cortina pronta atrás da qual adormecemos nossos erros numa serena espera por desfrutá-los impunes.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

O que eu não falo

Eu não quero amar ninguém agora.
E eu amo, mas amo e não falo.
E amo um amor que não quero amar, que transformo mais em uma derrota do que em uma superação, em um mérito.
Preciso meditar, encontrar uma paz na minha vida que não sei onde está.
Como é que eu olho nos olhos e falo: ei, aprecio seu amor. Me comove. Me desmonta. Amo a beleza disso tudo. Mas agora não consigo...   ?
Como se faz dessas violências?
Não sei das violências.
Não sei ser nenhum dos personagens que gostaria, e é essa minha grande tragédia.
Sou um qualquer outro que não sei de onde vem.
É no improviso, e como todo improviso, nem sempre funciona.
Mas há em mim também uma ditadura feroz, atroz... pesada e sangrenta, que impede a verdade de tudo.
Quando acontecerá a revolução?
Não sei. Quem sabe?
Agora não. Agora eu não consigo...

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Ontem

Acuado num canto de seus pensamentos, morria de medo rotineiramente de ser descartado como um inferior pelos pensamentos dela. Estudada lá na França, um lugar grande e importante que fica do outro lado de um oceano imenso, ela era dona de si com a naturalidade de quem se desgarra logo cedo das raízes patrióticas. Sabia que esse medo era uma profecia poderosa de suas derrotas futuras, prelúdio e causa em um só. E não evitava, ao olhá-la nos olhos, esconder todo esse amor amassado por trás de sorrisos bobos e olhares doces e atitudes toscas.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

No trabalho

Você tem idéia, por acaso, do quanto a vida às vezes é prejudicial à reflexão?! Kleber M. empilhou as pastas num canto da mesa, uma a uma, organizando e vendo as listas, coladas na capa com cola Prit, dos itens a verificar. A relação entre a ética de Nietzsche e a certezas científicas daquele século, pensava nisso e só nisso. Mas Kleber M. tinha um trabalho a fazer e afundado num ódio profundo ao Doutor Zanetto sabia apenas prolongar sua inatividade em fingidos trabalhinhos irrelevantes. As pastas se acumulavam, é verdade, mas essas obviedades da ineficiência são sempre enevoadas demais às verificações de uma repartição pública. A irracionalidade humana historiada nos passados mais surpreendentes de gentes que suspendem os tiros da guerra para celebrar o natal em pulos e gritos com o inimigo, e volta aos chumbos tão logo a data célebre se alonge. Pensava nisso também, Kleber M., mas era o dia de preencher a ficha de apropriação de tempo das atividades da repartição. Mastigado por nadas sucessivos, seus pensamentos acabavam digeridos por essa tripa cheia de merda que era o dia ali dentro e expelidos todos sujos num enorme cu de despropósitos.

terça-feira, 28 de julho de 2020

Cego

Vejo, mas não quero ver.
Ouço, mas não quero ouvir.
O mundo grita absurdos.
Dentro de mim tenho as certezas que acalmam.
As prefiro.
As digiro.
As visto.

Meu irmão se encheu de estudos.
Diz besteiras. Fala vinte páginas.
O mundo é mais simples.
O meu mundo.
E o mundo dos meus amigos.
Os que acreditam em mim.
Os que atiram comigo.
Os que riem dos outros comigo.

Vejo, mas não quero ver.
ouço, mas não quero ouvir.
Aprendi a pensar com a própria cabeça.
Não para analisar explicações.
Mas para inventá-las.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Das fugas

Quantas vezes fugi?
Fugi para outras mesas.
Fugi para outros abraços.
Fugi para outros boa noites.
Fugi para bilhetes na porta da geladeira.
Fugi para outras cidades.
Fugi para outros trabalhos.
Fugi para o céu.
Fugi pelas estradas.
Fugi para o outro lado do mundo.
Fugi para outras músicas.
Fugi para outros livros.
Fugi para outras roupas.
Fugi para outros amigos.
Fugi para outras famílias.
Fugi para outros continentes.
Fugi para outros idiomas.
E riem na bagagem todos meus infernos.
Demônios tatuados fundo na minha solidão.

domingo, 26 de julho de 2020

Indício

Eu adoro os oprimidos.
Os que sofrem.
São um recurso infinito para aqueles que precisam de uma promoção fácil.
O político que aperta a mão do favelado.
E depois manda tratores para derrubarem a favela.
O que importa é o quanto circulará cada foto.
O que importa é que o político não estará presente no dia da demolição.
O padre que reza pelos oprimidos.
E a paz quieta e serena do ouro do Vaticano.
Eu adoro os oprimidos.
Sem eles, nossa hipocrisia não seria tão óbvia.

sábado, 25 de julho de 2020

Presente

Curioso que esta palavra tenha esses dois sentidos. Um presente como algo que se recebe de boa vontade de outra pessoa ou mesmo das circunstâncias. Um presente de aniversário. Um presente de Deus. Um presente do acaso. E presente também enquanto essa pontual e misteriosa fronteira entre passado e futuro. O instante presente. É uma coisa notável que o futuro seja infinito, o passado seja infinito, mas que a gente esteja preso no instante presente durante toda nossa existência. Já fiquei pensando se de fato existe essa coisa de passado e futuro ou se é tudo uma imaginação nossa, uma abstração. Aí percebi que nossas palavras não dão conta de investigar devidamente esses desdobramentos da existência. Porque existir é por definição um verbo no presente. Só existe o que é e o passado já não é, o passado foi. O passado não existe. O passado existiu e agora já se perdeu. Só sobrevive pelas marcas que deixou no presente. O que nos leva de volta ao encontro das palavras presente (de aniversário) e Presente (instante de tempo) que aqui diferencio apenas por meio de uma letra maiúscula (por falta de uma distinção melhor).
O Presente é o nosso presente.
Há ainda um outro uso, esse ainda mais curioso, e que talvez tenha algo a elucidar nessa questão. O uso da palavra em "fazer-se presente" Fazer-se presente ou Presente? Ou ambos?
Fazer-se presente, com p minúsculo, parece até arrogante. Fazer-se algo que seja visto como um agrado gratuito aos outros.
Fazer-se Presente, com P maiúsculo, pode ser visto como simplesmente manter-se vivo se a sua interpretação for a das mais frias e literais. Porém se você não está Presente, onde é que está? Aqui percebemos que nossa atenção, nossa energia mental, pode devanear facilmente a outros domínios. Precisamos dominar essas tendências para nos localizarmos onde realmente as coisas podem acontecer: o tempo Presente.
Fazer-se presente no Presente é um presente que você pode dar a si mesmo. Pratique.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Pão

Moreno sujo dentro de uma roupa graxada e fedenta lá estava o pequeno Cleyton pedindo a primeira moeda do dia. Que eu neguei. Um pão, sugeri em troca. Aceno sorridente com dentes e gengivas todos expostos. Entrei ao balcão da padaria e dali voltei com dois pães e cem gramas de presunto. Sumiu num sei lá onde o Cleyton, rumando direto prum sei lá onde. Matando a fome do corpo e morrendo da fome da alma. Em alguma miséria, afinal, somos todos iguais.

Miopiens

Vamos faturar um milhão quando vendermos todas as almas dos nossos índios num leilão.

As almas de nossos índios.

Os futuros das nossas crianças.

O petróleo dos nossos subsolos.

As águas dos nossos aquíferos.

As vidas das nossas florestas.

As riquezas de nossas empresas.

A bolsa comemora. Se a bolsa comemora, se as cotações estão melhorando, o que mais pode estar errado?

Que tipo de ser é esse com uma visão tão limitada da existência que olha apenas a indicadores financeiros e ignora todo o resto?

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Em carvalho

Eu sinto raiva de você. Eu sinto uma raiva enorme. Não sei porque ainda não terminei. Não consigo entender. Acho que estou fraco. Acho que estou com preguiça. Acho que estou...
Aí entendo.
Aí entendo que sou eu. Sou eu, não é?
Porque faz sentido. Faz um sentido enorme.
Eu não vim até aqui por amor a você.
Eu vim até aqui para fugir de mim.
Estava cansado de sonhar. Estava cansado de amar.
Estava cansado de tentar sonhar.
Estava cansado de tentar amar.
É claro que um suicídio resolve, mas eu não sou desses. Sou certinho demais. Meus dramas são todos imaginados, nunca piso muito além das encenações.
Eu me matei.
Simbolicamente.
Retirei-me da minha vida.
Desapareci minha vida de meus arredores.
Outra casa.
Outra rua.
Outra cidade.
Outro país.
Outro continente.
Outro idioma.
Outras músicas.
Outros amores.
Outras vidas.
Outras vidas.
Outras vidas.
Sou eu a desistir de mim.
Por isso ainda não lhe deixei.
Porque você tenta me apagar.
Quando tenta me segurar na cama vendo NetFlix, tenta me apagar.
Quando não quer conhecer meus novos amigos e dividir a vida comigo, tenta me apagar.
Quando não se interessa pelo que eu escrevo, tenta me apagar.
Quando não me convida para os eventos de tatuagem para me colocar no seu mundo, tenta me apagar.
Quando não gosta que eu fique cantarolando pela casa porque os barulhos te incomodam, tenta me apagar.
Quando não vê nada de empolgante nos livros que compro, tenta me apagar.
Quando não se importa de viajar sem mim, tenta me apagar.
Quando não se interessa por ouvir meus passados, tenta me apagar.
Quando não tem vontade de aprender as coisas que eu amo ensinar, tenta me apagar.
E eu sem entender de onde vinha minha covardia em prosseguir.
Mas agora entendo.
Eu tentei me apagar. Você foi minha cúmplice maior.
Você é o caixão em que eu mesmo trancafiei minha alma, e pelo qual paguei caro, e agora acho uma desistência estúpida tentar sair.
Mas a vida, a revelia, sempre insiste: vive.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Das mortes

Estou lendo o que escrevi onze anos atrás. Lá pelos idos de 2008. Nem sei onde a vida estava. Sei que eu dizia outras palavras, de outros jeitos. Gosto de algumas das coisas que li. Mas gosto de um jeito que incomoda, de um jeito que assusta. Gosto como quem encontrou um livro interessante. Eu não sei quem escreveu. Estou descobrindo coisas que eu não imaginavam que existiam. E foram escritas por mim. Não sei se é uma catástrofe das minhas pobres sinapses ou se é uma transformação da minha alma. Só sei que sou outro. Que alguém de mim morreu. Não escreveria outras coisas como aquelas, com certeza. Mas não deixei de ser um extrapolador. Sei que a escrita é só um dos muitos cheiros da alma. O que aconteceu com minhas palavras, minhas vozes, meus olhares, meus amores, meus toques, minhas risadas, minhas atenções, meus medos? Tudo mudou. Tudo morreu. Tudo é outro. E nada reconhece ter sido outro.

Mistério

A Clarice Lispector, minha nossa, é altamente depressiva. Ler suas linhas desafia a alma a continuar onde está: arrasta para baixo com força. E aí sou forçado a pensar: o que é isso que há de belo na depressão?

terça-feira, 21 de julho de 2020

Dos silêncios

Instalei aplicativos para conhecer pessoas com quem praticar idiomas. Coisas modernas. Nada de ir a uma escola. Você inicia uma conversa com outra pessoa e continua. É como ir a um bar, mas sem o constrangimento, a cerveja, a conta e o bar.

E tentei. Eu juro que tentei. Falei com gente de todos os cantos. De todas as idades. De tudo o que é país. Mas estou cansado. Estou cansado de não encontrar eco.

- Olá! Vi que está interessada em aprender italiano e francês. Posso te ajudar! Estou estudando em um programa de mestrado em estatística. Falo esses idiomas. Estou em outro país. E você? Tem estudado com algum livro? Está interessada apenas em conversas cotidianas? Espero que possa me ajudar também.

- Oi. Blz.

Não há eco. As pessoas não falam mais. O que há com esse mundo?

Descobri que sou verborrágico. Talkative person. Mas qual é o contrário de talkative? Acho que as pessoas estão mortas.

Mortinhas de tudo, caminhando por aí.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Das amarras

Quando eu preciso sair de casa, quando eu preciso sair da rua, quando eu preciso sair da cidade, quando eu preciso sair do país, quando eu preciso sair do continente, quando eu preciso sair do meu idioma, quando eu preciso sair das minhas memórias, quando preciso sair de mim... entendo que tento escapar do peso esmagador da realidade. Das considerações sensatas. Da percepção de quão idiota é essa imaginação que não faz nada além de imaginar. Ai sim, finalmente, lá no longe confortável das loucuras, escrevo.

Silêncio

Como diabos vive quem não escreve? O que fazem com esses sentimentos todos que não podem ser falados a ninguém, que ficam escondidos, apertados, pressurizados? Fico sem escrever uns poucos dias e sinto um mundo explodindo dentro de mim. Preciso contar das saudades, tristezas, exorcizar meu mundo. Como vive quem não escreve? Isso fica tudo entalado lá dentro? Como é que funciona? Eu não sei.

domingo, 19 de julho de 2020

Pedido

- Faz uma literatura para mim?

- Você quer com vida ou sem vida?

- Depende... onde eu encontro você?

- Fico sentado na beirada das reticências só esperando para cair, sempre.

- Faz assim então, desse jeito mesmo, que eu me jogo atrás e caio com você até o fim da página.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Das simetrias do mundo

Não me canso de apreciar as complementaridades da natureza.

Algumas pessoas têm naturalmente um pensamento científico.

Outras pessoas constituem naturalmente um mistério para a ciência.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Há tempos

Me deixa, me larga, me solta
Não lembra que te amei,
Não lembra que cansei?!

Deixar de te amar
Custou deixar de amar!

sábado, 25 de abril de 2020

Nunca vou tirar esse amor de mim
O segredo não o apaga
Parece que ele bebe do segredo, se fortalece
E ela me adora
Diz isso
"Adoro você!"
E me conta das suas alegrias
E dos homens que ama
E sofro porque o amor é invisível
Não posso concluir outra coisa
O amor é invisível
Quase que involuntariamente,
É dela toda minha atenção e dedicação
E por ver tanto carinho
Sem ver nenhum amor
Contente, ela sempre declara:
És meu único triunfo

domingo, 29 de março de 2020

Os números

Quando os números de famintos sobe, não estão nem aí.

Quando a economia ameaça soluçar, não querem que os trabalhadores fiquem em casa, porque se não vão passar fome.

Enquanto nós paramos, o mundo veio nos olhar de perto.

Nas ruas, cervos, porcos, cisnes.

Golfinhos entraram nos portos, nos canais de Veneza.

O ar clareou.

Resta saber se vamos lembrar de olhar as estrelas a tempo.

sábado, 28 de março de 2020

Das emoções

Emoções não são argumentos.

Por isso não devem ser usadas durante a exposição de ideias, mas isso a filosofia e a ciência já aprenderam há muito tempo.

Muitas vezes, contudo, é inevitável que emoções transpareçam em discussões. Sejam elas cara a cara, ou mediadas pela rede.

Há algo de útil a aproveitar destes deslizes, a partir de uma observação simples.

As pessoas que não se importam com o seu stress e indignação são também pessoas que não se importam com a sua felicidade.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Só isso

Meu tema é o mundo, é assim que é. É essa a razão. Criticam com gosto a indeterminação de meus temas. E daí? Eu não me rendo facilmente, de modo algum. Além de pensar sobre a natureza, sobre o amor, sobre a matemática, sobre a música, sobre as verdades e sobre a política, passo a pensar também sobre isso: sobre o tempo que as pessoas investem em criticar a indecisão de meus temas. Soma-se à lista um novo tema pois no fundo o tema é sempre um: o mundo. A experiência da vida. Isso não se divide. E, sinceramente, custo a entender lá nos limites de minha abstração como é capaz que outros escritores consigam tal limitação. Eles enxergam com preferência apenas uma fração específica do mundo? Ou será que a vida lhes ceifou a curiosidade em áreas muito mais dispersas?

Senta-se diante da mesa. Hora de escrever. Pode-se falar sobre a origem dos nomes de plantas raras em alguma ilha do Pacífico. Pode-se também falar sobre a polêmica envolvendo o preço do transporte público aqui na minha cidade. E pode-se inventar uma história totalmente maluca, talvez de mistério, talvez de amor. A questão é: por que este tipo de escolha deveria ser irreversível? A modernidade não chegou completamente aos escritores, talvez seja isso. Não é de estranhar por completo, claro. Afinal a escrita é muito menos apegada ao presente do que qualquer outra coisa. Telefones celulares são presos ao seu tempo. Preconceitos são presos ao seu tempo. Orientações políticas, essas coisas. Mas a escrita não. A escrita tem uma inércia muito mais lenta e os escritores, via de regra, são muito mais conectados ao passado do que qualquer outra pessoa. Ganham até de paleontólogos, pois não estão ligados aos restos presentes de um passado distante: estão mergulhados na essência completa do pensamento antigo tal como ele se cristalizou na escrita. Leia um clássico e torne-se um ser dos séculos.

Mas um dia a modernidade tem que chegar. E é da modernidade essa coisa de liberdade. Os Estados Unidos são muito mais livres que a democracia ateniense, que escravisava e negava votos. E a modernidade permite o divórcio em nome da felicidade, não é mesmo? Pois bem, todos os dias me divorcio. Peço o divórcio dos estilos com os quais me comprometi ontem e vou explorar novos terrenos. Talvez eu volte aos terrenos antigos, claro. Mais que um amor simplesmente livre: promiscuamente libertino. É assim mesmo. Meu prazer com as letras ultrapassa o gozo sexual. E é por isso mesmo que não ligo para as críticas, não há como. Porque não consigo desligar meu sorriso de prazer. Que eles reclamem, reclamem e reclamem enquanto eu me deleito com um mundo infinito de assuntos por descobrir e esmiuçar.

quarta-feira, 18 de março de 2020

Olá

Obrigado. Obrigado? Você não sumiu. Podia ter desaparecido. Podia ter simplesmente me esquecido, passado a me ignorar. Não fiz nada para merecer sua consideração. Não fiz nada que fosse realmente digno de uma espécie de perdão. Dessa espécie de perdão. E aí está você, falando comigo novamente. Trocando simpatias como se o tempo fosse um outro universo diferente de nós. Diferente do que somos. Talvez eu não deva agradecer. Talvez tenha sido sempre isso: eu quis uma existência nova. Fugi daquela existência. E aí está você novamente. E eu deveria me revoltar, pedir que me deixe em paz. Largue de mim. Deixe tudo pra lá. E aí está você, falando comigo normalmente. Só que, no fundo, não é normal.