sábado, 25 de novembro de 2017

Minha primeira demissão

No fundo no fundo, ainda que com aspirações exóticas e revolucionárias, sou um careta bem estático. Aqui estamos no terceiro milênio de um mundo fervendo a internet e à liquefação baumanniana da existência e eu consigo a proeza olímpica de me formar em uma boa universidade e permanecer cinco anos em uma mesma empresa cheia de velhos e que paga pouco. Sou uma espécie exótica em extinção. Mas minha proeza olímpica não alcançou proporções guinnescas porque recebi cartão vermelho: fui demitido. Em tempos de crise isso deveria me levar ao desespero total. Talvez até leve, já que do futuro ninguém sabe direito, mas confesso que até aqui a experiência está sendo bem interessante. Ser demitido, pra mim, foi assim:
Voltei a falar com outras pessoas da empresa. O pessoal do RH, do setor de benefícios. Gente simpática. No dia de fazer a tal da homologação, preenchimento chato de papéis na presença do pessoal do sindicato, pude conhecer muita gente interessante, velhos e jovens, dos mais diversos setores da empresa, que também estavam tomando um burocrático pé na bunda. Histórias das mais diversas. As realizações de uns, os sonhos de outros. Só gente dessas com quem dá prazer conversar por horas. Será que não demitem ninguém chato? Será por isso que tem tanta gente chata ainda empregada por aí? Fiquei, confesso, aliviado por ter sido demitido. Algo de legal deve existir em mim.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Sem volta

Chegou a hora de voltar para casa. E eu sabia que a casa não estaria mais lá.
As paredes, eu encontraria.
O telhado, eu encontraria.
A calçada com seus conhecidos desníveis, eu encontraria.
A padaria estaria no mesmo lugar.
Mas não era mais minha casa.
Não era mais o lugar em que eu contaria os minutos para te ver.
Não era mais o lugar em que eu escreveria poemas para você.
Não era mais o lugar em que eu sonharia passeios com teus sorrisos.
Não era mais o lugar em que eu aprenderia músicas para seus ouvidos.
E pensei: por que voltar?
Por que voltar se a volta, por fim, é impossível?
Aprendo assim, a tropeços, que a vida não tem volta.
Hora de olhar para frente. Descobrir o que nasce dessa penumbra estranha.
Dessa espeça dor em que você me mergulhou.
Hora de aprender novos sonhos.
Hora de plantar novas dores.
Mais um passo. E outro. E outro.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

As últimas horas

Mais duas horas e já poderei acordar. Mas nem durmo direito, fico acordando o tempo todo. Escuto as pessoas no corredor. Às vezes conversam animadas. Às vezes empurram carrinhos barulhentos. Macas. Escuto pela janela o barulho de compressores de ar automaticamente ligando e desligando. Ligando e desligando. Numa metáfora mecânica horrível para as outras "máquinas" que estão no prédio. Humanos ligando e desligando. Ligando e desligando. Até não ligar mais. Não há cortina na janela. O vento às vezes entra e às vezes desiste. Uso como travesseiro minha jaqueta de andar na moto, toda contorcida sobre si mesma. Não tenho direito a uma cama. Só a este sofá reto e desconfortável. Meu tio acorda. A comadre já está cheia de urina. Ele mal consegue se mover. Olha para mim com vergonha de dizer que mal consegue se mover. Levo a comadre ao banheiro, jogo todo aquele xixi na privada, a limpo com um pouco de água corrente para evitar a formação de odor mais forte e levo de volta para ele. Volto a me deitar. Mais esta noite. Logo amanhece. Mais algumas horas. As últimas horas.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Oceanos

”Não entendo as pessoas que vão todas como gado ver esses filmes da moda. Ou as músicas da moda. E nem sabem o que estão ouvindo. Escutam a ZAZ cantando a música que fala do SOS, a garrafa jogada ao mar, e pensam que é coisa dela. Não é. Os artistas dizem que é uma "homenagem". Só se for uma homenagem à incapacidade deles de criar coisas novas. Não sei o que acontece na nossa época. Temos recursos infinitos para a criatividade e uma criatividade infinitamente morta. Eu gosto dos cinemas pequenos. Dos filmes e músicas antigos. Aqui está, tome. Uma lista de cantores que gosto. Não conte a mais ninguém que eu te dei essa lista. Vão me matar. São, para os outros, um monte de coisas velhas e ultrapassadas. Para mim é o que ainda presta. Porque foi feito com coração livre em uma época em que a criatividade existia. De atual gosto só das músicas idiotas. As paródias, sátiras, bem estúpidas. São felizes e são livres também. Não acho que precisamos ser eruditos o tempo todo. Essa arrogância é estupidez. A vida precisa de alegria e a alegria, quando é um valor em si, não se importa de ser erudita ou boba. Que seja boba, então. Acordo cantando essas paródias imbecis. E sigo feliz olhando um mundo que se pretende sério e culto mas que não é mais livre. Não que todos devam pensar como eu. Mas seguem todos uma mesma maré. Somos correntezas diferentes. Mares diferentes.”

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Fisiologia política

Vendo o que acontece em São Paulo só posso concluir uma coisa: empatia e ética são funções orgânicas que, nos políticos, dependem de água para funcionar direito.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

De saída

Olho o criado mudo ao lado da cama. Olho pela janela as árvores, a disposição das folhas. Sinto o cheiro que vem da cozinha. Último dia aqui. Me despeço da poeira do chão. Da torneira do banheiro. Me despeço da fechadura dos fundos. Mala nas mãos. Olho os céus. Olho o horizonte. Estou de partida. Sigo viagem. Olho as pessoas nas ruas. As crianças brincando ao redor das casas. Os cachorros tão mergulhados no presente quanto sou alheio a ele. Permaneço alheio. Estou em outro lugar. Estou em um futuro que nunca alcanço. E, não obstante, sigo viagem. Adeus.

domingo, 19 de novembro de 2017

Certeza inabalável

Jeferson é meu melhor amigo. E ele tem uma grande consideração por mim. Quando ele dizia aos amigos que sabia o endereço do bar e as pessoas duvidaram, inseguras, ele foi enfático:
-Aposto os rins do Adoniran que é lá mesmo, podem ir!

sábado, 18 de novembro de 2017

Notas de trabalho

Escrever sobre política, sobre experiências de vida, sobre o destino, sobre o tempo, sobre romances, sobre o amor, sobre ciência... Escrever e escrever mais. Escrever até acumular os textos, os conhecimentos, a minha experiência de vida. Escrever e escrever. E de nada valerão as letras ali jogadas, sem ninguém ler. E eis que alguém lê: obrigado.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Moto e medo

As palavras são até parecidas. A primeira e a última letra. Realidades próximas. Eu amaria andar de moto. Mas os motoristas não amam a vida: pouco amam a própria e nada amam a dos outros. Imagina que delícia, andar de moto à noite, na chuva. Tem tudo para ser uma experiência quase mística não fosse a enorme possibilidade de se tornar uma passagem só de ida ao misticismo definitivo. O mundo é cheio dessas coisas. Paixões encantadoras e perigosas. Acordos de paz impossíveis.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Óbito

De que importa se te presenteei meu tempo
Quem quer saber para onde foram minhas atenções
Se nem teus braços a querem
Vazio
Folha em branco
Recolho-me aos rascunhos errados que fiz de você
Abraço-os saudoso de quem sonhei
A dor do fim é a dor de uma morte
Morte de uma imaginação que se descobre falsa

domingo, 22 de outubro de 2017

Extravios

Dói mais fundo,
Por fim,
Dar a outras pessoas
As risadas
Que queria dar
A você

A humanidade é inajudável

A citação não é minha. Li em algum lugar mas sou desorganizado demais para lembrar onde foi. Tristemente, quase deprimido mas me recusando a cortar os pulsos, reconheço que concordo. Aquecimento global, concentração de riqueza, intolerância, extinção de espécies, morte dos oceanos, consumismo desenfreado, desvalorização da cultura e industrialização da existência exterior e esquecimento da interior. Quem quer ser ajudado? Quem quer ajudar? E que merda estou fazendo escrevendo essas palavras imbecis ao invés de sair e fazer algo de verdade?

sábado, 21 de outubro de 2017

Vida off-line

Tenho um projeto para um livro revolucionário. Não sei direito ainda a que categoria vai pertencer. Talvez a "contos fantásticos". Talvez simplesmente a "ficção". Vou falar de uma pessoa que decide viver off-line para se reencontrar. Desliga-se da internet, celular, telefone... Passa a encontrar com as pessoas pessoalmente para tratar de seus assuntos, caminhar prestando atenção ao caminho. Tem seus dias ignorando em boa medida as grandes manchetes mundiais. Dedica-se a ler textos até o final e a folhear o jornal do dia por quase uma hora, prestando atenção aos assuntos.
Já sei... o livro vai ocupar o lugar das "Utopias".

Volta aqui

Eu iria te escrever hoje! Onde você foi?

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Blindados

Quem não é capaz de entender um argumento, quem não consegue se expor à uma ideia diferente de suas próprias, apressa-se logo em tapar a conversa toda com um rótulo, um estereótipo, uma acusação genérica mergulhada em generalizações. Coxinhas, mortadelas, gays, brancos, pretos, pobre, rico, bandido, mulher, capitalistas, proletariado... Seres humanos se dividindo em times, em panelinhas, tudo vale para fugir do diálogo.

O escritor que eu fui está morto

Li um texto que escrevi há alguns anos. Confesso, sem modéstia, que gostei do que li. Gostei do humor sutil, da escolha de palavras, do tratamento do tema. Havia um nível suficiente de criatividade e de articulação ali. E quis escrever mais coisas daquele jeito. E não consegui. Descobri que a pessoa que escreveu aquele texto, quem quer que seja, está morta. Soterrado pelo tempo. Não vai escrever nunca mais. Outros escritores vão nascer em mim. O de hoje faz isso aqui: escreve sobre outras épocas e é o que tem para hoje, goste você ou não. Descobri que nossa existência interior é assim, essa onda: uma crista em movimento, com uma inércia própria, indiferente aos nossos desejos. Não vai parar onde desejamos. Vai continuar mudando. O contínuo movimento do nosso espírito. Nossa existência, diante dessa onda, resume-se a escolher, dia após dia, surfar tudo o que ela tem a oferecer ou deixar-se afogar em suas turbulências.

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Amigos próximos terminam noivado

Meus grandes amigos, que vou chamar aqui de Carlos e Joana, terminaram o noivado. Estão pagando um apartamento e tudo o mais. Mas o Carlos não estava feliz. Joana, ao longo dos últimos anos, foi se revelando uma pessoa que não o fazia muito feliz e, além disso, não vinha pagando as prestações do apartamento. Eu sou amigo dos dois. O que me deixa numa posição difícil. Porque a Joana quer conversar comigo agora todos os dias. Ela tem esperanças de voltar. De recuperar o amor do Carlos. O que ela está fazendo? Ela está emagrecendo, correndo. Está fazendo brigadeiros para vender. Está buscando trabalhar seu humor com a vida tendo contato com coisas mais animadas. Teatro e filmes felizes. E as prestações do apartamento? Continua não pagando. O que o Carlos pensa disso? Pensa o que eu esperava que ele pensasse: por melhor que seja a Joana, não dá para confiar em passar a vida com ela. E quando os pais dela não puderem mais ajuda-la com suas dívidas? Ela tem emprego fixo, um salário aceitável e mora com os pais. E ainda assim torra sua grana com distrações corriqueiras. Eu já tentei dizer à Joana exatamente o que penso mas, quando começo a ser mais direto em meu discurso, as mensagens dela desaparecem. Joana... pare de querer voltar. Uma ótima coisa que você poderia fazer agora seria ter raiva do Carlos e não esse desespero de querer voltar. Valorize-se. Não importa aqui quem tem razão ou não. Importa você se valorizar. Ignore tudo o que você acha que ele espera de você. Cuide da sua própria felicidade independentemente dele. Não acho que você saiba o que é isso na verdade mas é uma boa hora para descobrir. Honre seus compromissos com o pagamento do apartamento mas sem vistas a retomar a relação. Faça isso pela sua dignidade. Nem pense em insistir para voltar com ele. Te juro, como amigo, que nada lhe faria mais bem.

Te reencontro mil vezes

Finalmente olho nos seus olhos. Escuto suas histórias. Faz-me amar, faz-me amor. E então se dilui em uma vida distante, te vejo turvada por detrás do seu trabalho, de suas viagens, de suas ambições. Vai-se embora nesse turbilhão de acontecimentos responsáveis. Novamente te encontro. Nos livros. Nas caminhadas. Somos soldados em um mesmo devaneio, soldados de uma mesma causa. Viajamos juntos nas mesmas imaginações. E novamente você desaparece. Levada pela certeza de uma vida estável. Levada pelas escolhas certas. Levada pela casa nova. Levada pelo novo emprego. E eu aqui amarrado aos meus sonhos. Espero. Espero. Procuro. Procuro. E te reencontro. Te redescubro. Te desenterro das músicas diferentes, dos sorrisos escondidos, da timidez dos primeiros carinhos. E novamente, ciclo infinito, a perco para a casa nova com cachorros. Com empregada às segundas. Para a vida com previdência privada. Enquanto eu me recusar a pertencer a este mundo você se recusa a ficar. Vem, aparece e novamente se vai. Já a encontrei nos passeios pelas pinacotecas e nas viagens de moto. Já a encontrei na música sob o luar e nos churrascos entre amigos. Já a encontrei nos bilhetes escondidos e nos alucinados pulos sem fim dos shows de rock. Já a encontrei no chão da sala e na mão dada do cinema. E, sorrateira, escondida por trás de mil rostos e mil vidas, novamente você, meu grande amor, sei vai. Mas eu sei que, logo mais, te encontro. Te reencontro. Te redescubro. Te reinvento. Te renasço. A esculpirei onde você me descobrir. A escreverei onde você me ler. A mergulharei onde você me afogar. A abraçarei onde você me amar. A encontrarei onde você me procurar. A protestarei onde você me manifestar. A dançarei onde você me musicar. A respirarei onde você me oxigenar. Te reencontro mil vezes.

quarta-feira, 18 de outubro de 2017

Biblioteca pública discrimina brancos heterossexuais

Vi a notícia de que uma biblioteca pública de São Paulo estava organizando um evento em prol da diversidade racial e cultural. O problema é que, no anúncio da série de palestras, deixava-se claro o seguinte: brancos heterossexuais não vão falar aqui, mas são bem vindos para ouvir. E aí gente? Tá certo isso? Por um lado podemos argumentar o seguinte: brancos heterossexuais falam o tempo todo, em todos os lugares. Na televisão, na política, na literatura... Brancos heterossexuais têm voz na sociedade o tempo todo e em todas as esferas. Por que então não fazer um evento em que, garantidamente, eles não falassem, com o único objetivo de garantir o máximo de voz para aqueles que nunca falam? Não acho de todo errado. Mas tenho medo de que não se perceba que no fundo a igualdade é isso: igualdade absoluta, e não a reversão da exclusão. Sei que discussão similar aparece outras áreas polêmicas, como cotas raciais e feminismo. Nós, brancos heterossexuais, não estamos acostumados à posição de excluídos e não queremos nos sentar nessa cadeira incômoda nem por dez minutos. Mas os "outros" ocuparam este desconfortável lugar por milhares de anos. Até que exista um número adequado de cadeiras confortáveis, custa revezar?

Das entranhas

Eu só sei aprender ensinando
Eu só sei me inspirar inspirando
Eu só sei ser amado amando
Eu só sei ganhar respeito respeitando
Eu só sei ser visto enxergando
Eu só sei ganhar premiando
Tenho uma alma feminina, é inegável:
Uma alma que só sabe viver doando vida à vida
Só sei sorrir se for parindo alegrias

terça-feira, 17 de outubro de 2017

Sou um marginal

Margem. Aquela linha ao redor de algo bidimensional. Aquela coisa que ainda é parte de algo mas não está no meio, não é sua essência. Mas que, dando-lhe contorno, é parte integrante da sua definição. Marginal, aquele que está à margem. Não confundir com esse uso deturpado do termo quando referente a criminosos infelizes. Sou da paz. Sou honesto. Mas sou um marginal enquanto aquele que rouba e é desonesto. Isso não. Mas sou um marginal enquanto aquele que está à margem, contornando sem entrar.
Ando pelas avenidas largas, pelas movimentadas estações de trem e pelos grandes aeroportos do mundo. Não sou dessa gente de terno e gravata. Não sou desses operários de macacão azul. Também não sou desses nerds de óculos e nem desses artesãos que fazem belas esculturas de arames retorcidos. Estou à margem. Gosto de ler e não conheço os grandes clássicos da literatura, leio devagar. Gosto de música e não tenho a disciplina ou o desespero apaixonado de estudar todos os dias. Um preguiçoso, talvez. Mas não, não é a preguiça porque sou muito inquieto. Estou sempre fazendo algo mas nunca é o mesmo algo. Hoje é o clarinete. Amanhã é a máquina fotográfica. Depois são as equações de elementos finitos nos modelos estruturais do MATLAB. Depois os mapas abertos para traçar os planos de voo. Estou em todos esses lugares e, saltando de um para o outro, não estou em nenhum. Porque é o que a margem faz: percorre, contínua, os contornos de toda a figura. Uma fronteira linear abraçando todo o mapa. Quero abraçar toda a realidade. Quero ser fotógrafo, jornalista, piloto, músico, artesão, operário, deficiente e alpinista, gay e freira, direitista e esquerdista, negro branco japonês índio e inuit. Quero implodir as definições confundindo-as sem fugir, olhando-as nos olhos. Quero ser médico e doente, quero ser astronauta e mergulhador. Quero ser imortal e um defunto. Quero ser sentimental e empresário, apaixonado e contador, honesto e advogado. Quero ser engraçado e mentiroso. Quero ser filósofo e estúpido. Correndo pelas margens vou dando voltas. Sigo não sendo fundamentalmente nada disso e, de um jeito estranho, sigo sendo tudo ao mesmo tempo.

Histórico escolar

Frequento escolas todos os dias. A que mais me deu trabalho foi aquela com paredes paredes e mais paredes. Gosto das escolas abertas. Dessa escola em que entramos ao abrir a porta de casa de manhã. Dessa escola que começa ao cairmos da cama. Dessa escola que começa ao nos depararmos com nós mesmos no despertar. Gosto dos meus muitos professores. Tenho professores velhos, cientistas, analfabetos, feirantes, brancos, pretos e dos olhos fininhos. Tenho professores crianças. Tenho professores que ensinam pelas declarações objetivas, "em agosto começarão as garoas de fim de tarde". Tenho professores que ensinam pelas demonstrações: as crianças com seus olhares curiosos emoldurados em sorrisos. Não fico apenas sentado. Nas minhas escolas também ando, deito, corro e me escondo. Aprendo com escritores de outros recantos do mundo e outros séculos. Aprendo com velhos escondidos em seus quarto escuros. Sou um abridor de gavetas. Um curioso que quer saber o que tem dentro. Pouco me importa o aspecto do cofre. Pouco me importa se o tesouro escondido é ouro ou uma velha carta de amor: me enriqueço do brilho de ambos.

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Crise dos 30

O que fazer?
Abrir uma empresa.
Viajar pelo país.
Pelo mundo.
Pela Europa.
Pela África.
Pela cidade.
Fazer um curso. Mandar currículos.
Tocar numa praça pública para ver quantas moedas eu ganho.
Fugir para outro país.
Escrever um livro.
Parar de pensar na vida e adotar uma existência automática. Trabalha. Dorme. Paga contas. Bebe. Reclama e morre.
Crise dos 30.
Trinta anos. 10.957 dias.
262.968 horas.
E eu sinto que, no meio disso tudo, não soube aproveitar meia hora por dia para escrever uma bela poesia. Ler um livro realmente instigante. Ligar para uma pessoa excepcionalmente especial.
Mas no fundo é uma preocupação idiota. O que é uma coerência irônica, porque essa preocupação decorre de não perceber como a existência é idiota. Não fui explodido numa guerra sem sentido e não comando uma grande empresa escravizadora de pobres asiáticos ou africanos. Já está bom. Vou viver mais tempo que esses infelizes. Depois vou morrer também. E daí? E daí que eu queria fazer algo de útil. E daí que eu queria sentir que minha vida tem sentido. E daí que eu sei que se eu ficar pensando nisso minha existência será inútil por mais trinta anos. Ou por mais sessenta, se eu tiver azar.
Crise dos trinta. Um segundo nascimento. Depois de trinta anos olhando pra fora, é hora de aprender a olhar pra dentro.

O amor que eu quero

Não quero um amor garfo e faca.
Quero um amor de lambuzar os dedos
Não quero um amor com agenda
Quero um amor de improvisos
Não quero um amor polícia
Quero um amor transgressor
Um amor capaz de romper com os cabrestos da vida
Quero sentir saudades
As minhas e as tuas
Quero um amor que deixe a comida queimar
Quero um amor que esqueça a água fervendo
Quero um amor que perca a hora
Que estoure a conta do telefone
Que ache que o mundo vai acabar daqui a pouco
E que faça assim nascer,
Rompendo todas as cascas da vida
Nosso próprio mundo

domingo, 15 de outubro de 2017

Churchill e o Instagram da Mari

Era quase madrugada. Ou era já madrugada. Nem lembro. Tem semanas já. Ela me contava seu drama.
-Eu tenho meus projetos, minhas ideias, mas não sei direito o que fazer. Estou travada, entende. Não me sinto exatamente segura por onde começar, por onde ir.
E então contei a ela a história do Churchill que li anos e anos atrás numa velha coletânea especial da revista Seleções do Readers's Digest. Uma seleção especial sobre os tempos da Segunda Guerra. O texto contava que uma vez Churchill estava recluso em sua casa tentando se dedicar ao seu hobby pessoal. A pintura. E havia instruído os criados a não permitir a entrada de ninguém. Mas então chegou uma moça que era sua amiga de infância e que tinha muita liberdade com ele, com os criados, e que não se dobrava facilmente a instruções do tipo "ele pediu para não ser incomodado". Infelizmente não me lembro agora o nome da moça e ainda não fiz as devida pesquisas no Google (mas você pode cuidar dessa parte e me informar, fique à vontade). Acontece que a moça entrou no salão em que estava o notável primeiro ministro inglês e o viu estático, pincel na mão, diante de uma tela em branco.
-O que está fazendo?
-Estou pintando.
-Mas a tela está em branco! O que está pintando?
-Uma rosa.
-Mas não tem nada no quadro... por que?
-Estou pensando por onde começar!
E então ela retirou o pincel das mãos do Churchill, fez um único traço sobre a tela, devolveu o pincel àquele atordoado fumador de charutos e lhe explicou:
-Pronto, agora é só continuar.
Eu achei a história fantástica. Pensei em quantas e quantas coisas de nossa vida se reduzem no fundo à essa lição fundamental. A importância de um primeiro passo, qualquer que seja, como muito mais importante do que a consciência precisa do "melhor primeiro passo possível". O movimento sobre a estagnação. A vida em si como o próprio movimento. Contei todas essas histórias à Mari. E ela, fotógrafa, me contando sobre o plano de seu Instagram profissional para o qual não tinha coragem de convidar ninguém. Porque ainda não tinha as fotos certas. Porque ainda tinha dúvidas quanto ao projeto.
Conversamos por mais algumas horas. Depois nos despedimos e fui tomar banho.
Antes de dormir não resisti e conferi novamente o celular. Havia um convite daquele novo Instagram dela e uma nova foto publicada.
Minha querida, uma certeza eu tenho: Churchill estaria com inveja.

A era das navegações

São todos ilhas, separados por milhares e milhares de mares intransponíveis. Ou quase. É possível navegar. Mas para que se chega até o outro? Há os colonizadores que chegam para tirar vantagens. E há os exploradores que chegam para conhecer os novos mundos. Assim ocorre nos mundos de fora. Assim ocorre nos mundos de dentro.

sábado, 14 de outubro de 2017

Projetos de vida

Eu queria ser astronauta. Mas eu não sabia que minha preguiça em correr e andar de bicicleta e aprender inglês e estudar aquelas coisas complicadas de química orgânica iriam, em conjunto, configurar um grande impedimento. Também não tinha a noção de que havia nascido no país errado. Ainda que possível ser astronauta enquanto Brasileiro, enquanto escrevo as chances de sucesso para essa categoria são de cerca de de 1 para 200 milhões (0,000000005). Depois eu quis ser sociólogo. E quem sabe me tornar um político e atuar pela melhoria da educação. Mas eu não sabia que minha aversão a me misturar com as pessoas do centro acadêmico seriam um grande impedimento. Eu não sabia que me concentrar em estudar e ter boas notas não saria suficiente. E não estava preparado para um pânico que, por esta época, tomou conta até dos meus ossos: onde é que eu iria ganhar dinheiro?
Depois eu quis ser um engenheiro. Fiquei no básico: arrumei um diploma e um emprego com uma mesa e um computador. Mas faltavam coisas. Uma ambinção empreendedora que me motivasse a correr atrás do dinheiro. Eu ficava encantado demais com complicados modelos matemáticos e gráficos exóticos enquanto a carreira, fui descobrir depois, não saia do lugar. Fiquei depressivo.
Aí decidi ser piloto. Coisa com que eu flertava desde criança. Coisa que me levaria de volta a esse meio mágico e maravilhoso. Mas eu já estava ficando velho. "Moleques" dez anos mais velhos que eu já estavam com todos os brevês na mão e conseguindo seus empregos nas grandes companhias aéreas. Quem iria querer um engenheiro já algo barrigudo como novato copiloto? E eu não estava preparado para o bairrismo dos instrutores de voo que não me davam oportunidade porque, bem, eu era um cara de fora. Não era da cidade deles. E era um forasteiro cheio de diplomas e títulos nerds... O que eu estava fazendo ali? Briguei e me desgastei mas isso de nada adianta.
Isso sem contar as outras iniciativas, menos oficiais, que também não deram em nada. Fotógrafo de festas. Professor de inglês. Tradutor de trabalhos escolares. Guia para estrangeiros. Clarinetista em barzinhos. Cantor de bandas amadoras. Blogueiro de assuntos aleatórios. Historiador. Cientista de sistemas complexos. Uma infinidade de áreas exóticas às quais me dediquei por um tempo só para, no meio das complicações da vida, perceber que a correnteza havia mudado antes que eu pudesse me amarrar firmemente a algum atracadouro.
Até que, tempos atrás, descobri algo que eu comecei lá na infância e que nunca parei de praticar. Escrevo. Escrevo contando meus dias, meus namoros, minhas engenharias, minha aviação. Escrevo contando meus sucessos, meus fracassos, meus pensamentos, minhas dores. Escrevo praticando ser essa coisa que, ainda que falhe, não deixará de ter seu sucesso, porque se provou inescapável em minha vida. Descobri que não coleciono diversos projetos de vida que falharam. Descobri que estou fazendo exatamente o que um escritor deve fazer: explorando o máximo do mundo que posso.

Refúgios

Ouvi uma autora na Flip, e nem lembro quem era, dizer que a página em branco a assustava porque não estava acostumada a lidar com tamanha liberdade. Foi por isso que criei este blog. Uma grande página em branco. Precisava ser publicado. Nada do refúgio seguro das gavetas mofadas. Precisava ter outro nome. Precisava ter outra vida. Nada disso deveria me assustar. Nada disso deveria me prender. A liberdade de ser, nos textos, qualquer outro universo que eu quisesse. Mas há gente lendo. Há pessoas conhecidas lendo. Que erro, que erro! Erro? Preciso lidar com isso. Todos deveriam, na verdade. Explorar os limites absolutos das liberdades de pensamento. Visitar loucuras e voltar. Sair dos trilhos dos estilos e expectativas. Colonizar imaginários selvagens e suas especiarias ainda inexploradas.

sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Não quero falar com você pelos próximos 20 anos

Sei que a linguagem escrita tem seus problemas de interpretação. O principal deles, nos tempos modernos em que nossa interação cotidiana se dá por mensagens de texto no celular, é a confusão entre uma brincadeira e uma mensagem séria.
Outro dia fiz uma brincadeira com uma amiga. Insinuei que talvez eu não daria muita atenção à ela em nosso próximo encontro de propósito, tal como havia incidentalmente acontecido no encontro anterior devido a outros compromissos meus.
E aí ela respondeu assim:
-Não quero falar com você pelos próximos vinte anos
De início eu ri. Ri porque li como um gracejo. Uma mensagem de humor.
Depois, quando considerei por algum momento que ela estava falando sério, aconteceu algo que eu não esperava: doeu. Uma dor profunda, dessas que acontece com a gente quando algo muito grave acontece, algo que realmente não queremos na nossa vida. Como a perda de um ente querido, o término do casamento, a morte do cachorrinho querido ou a descoberta de que papai noel não existe.
Vinte anos é muito tempo.
Fiquei torcendo para que as coisas se esclarecessem antes. Bem antes.

Nada

Nunca me senti tão nada.
Tão ausente dos seus pensamentos.
Tão insignificante nas suas manhãs.
Tão inexistente nos seus travesseiros.
Você me desapareceu.
Ainda me vejo por você.
Sinto-me desaparecido de mim.
Encontrarei um jeito de quebrar
Essa destrutiva mecânica
Deixarei de te olhar
Para me enxergar novamente

quinta-feira, 12 de outubro de 2017

Choro

Você não quer falar comigo. Você não lê as mensagens que eu escrevo. Você nunca tem a iniciativa de falar comigo. Você não me conta do seu dia. Você não consegue me dizer três ou quatro palavras carinhosas para me deixar feliz. É esforço demais.
O que você sente por mim?
Por que eu insisto em querer quebrar uma parede que você insiste em reforçar, em deixar mais e mais e mais espessa?
Vim para longe, mas só consigo sentir que me quer ainda mais longe.

quarta-feira, 11 de outubro de 2017

Manifesto contra os dias jogados fora

A humanidade já fez revoluções pelo petróleo. Pelo ouro. Para defender suas terras. E continuamos perdendo nosso bem mais sagrado e fundamental sem perceber. Nosso tempo. Essa entidade abstrata que não pode ser colocada em containers e escapa a um controle rígido do governo: o tempo continua fluindo a uma taxa constante. Mas o tempo psicológico, o tempo da nossa existência, esse é sim engolido e devorado pela vida moderna. O tempo no trânsito. O tempo em que estamos rendidos ao cansaço. Os filhos lá brincando, lendo histórias, você lá em estilhaços sobre o sofá sem entender o que se passa ao redor. Estaria mais consciente da vida se estivesse em coma em uma UTI.
Por isso estou escrevendo este manifesto contra os dias jogados fora. Um espectro ronda os trabalhadores do mundo. E os vagabundos. E os boêmios. E os ricos: o desperdício dos dias. É um recurso valioso que vai embora para nunca mais voltar. Os dias se perdem quando você se rende ao sofá. Às reprises de série. O tempo se perde quando você se alimenta mal e joga seu corpo na lata do lixo da preguiça. O tempo é aniquilado quando você deixa para ligar para aquele seu amigo ou amiga depois.
Precisamos lutar como gladiadores para salvar nosso tempo. Colocar energia nessa missão. Escrever de tempos em tempos para nossos queridos. Um e-mail, uma mensagem de whatsapp ou, quem sabe, uma carta no papel e caneta, colocada no correio. Precisamos fazer uma caminhada. Às vezes sozinhos, às vezes acompanhados. Precisamos de tempo para aquelas coisas de que gostamos. Nossos projetos pessoais. Seja brincar com o cachorro, ensinar tabuada para o filho ou pintar bugigangas de artesanato. Todas as categorias são válidas desde que estejam conectadas ao seu coração. Se sua grande paixão é ler livros de administração, ou pintar suas unhas ou trocar de piercing, não importa... mergulhe em suas paixões sem medo. Recupere o tempo que está se esvaindo pelos ralos.
E não caia na armadilha do desespero pela eficiência. Coisa que os americanos inventaram para transformar uma causa justa em neurose (coisa em que eles, aliás, são muito bons). Usar bem o tempo signifia que quando o que você quiser fazer for precisamente não fazer nada, precisa fazer isso direito. Nada de celular, televisão, distrações... Encontre seu refúgio de paz e seja um fazedor de nada digno de louvor. Há também aí toda uma arte escondida.
Estamos em uma civilização que decidiu se jogar no lixo. Destruir rios, deturpar a economia, se mutilar em guerras e cultivar a ignorância. Nosso último reduto de salvação é nossa existência interior. E o terreno que essa existência ocupa é o terreno do tempo. É por aí que devemos começar a nos proteger e daí que devemos iniciar nossa revolução se for para, algum dia, ter condições de voltarmos a brigar pelo resto.

Silêncio

Eu queria lhe contar as coisas. O que eu comi de sobremesa. E como o universo foi feito. A velhinha que eu vi no ponto do ônibus e como a música funciona.
Mas só havia silêncio.
Seus silêncios me envolveram.
Escuros e frios.
Doem nas veias dos braços
Desligam as pernas.
Silêncio.
Silêncios
Eu queria lhe contar as coisas.

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Ciência dos materiais

Diz a lei de Hook que pequenas tensões produzem pequenas deformações. Estas, ainda, são proporcionais. Isto é: um pequeno aumento na tenção leva a um pequeno aumento na deformação. Sabemos, porém, que tensões maiores podem produzir tensões permanentes. Esforços exagerados, ainda podem levar ao que se denomina genericamente por ruptura. Grandes tensões não são a única forma de produzir ruptura. Há também algo conhecido como "fadiga": a repetição de pequenas tensões alternadamente que acumulam, ciclo após ciclo, mais uma micro-ruptura, e outra e outra, até que o colapso completo seja inevitável.

Eu nunca sei quando estes livros estão falando de vigas ou de corações.

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Manual do Adoniran, pg 78

Regra 313 - Não gosto de ficar longamente ao telefone. O tempo sozinho é algo raro na vida de hoje e das duas, uma: ou não poderei atender por estar em algum trabalho envolvendo outras pessoas, ou estarei sozinho, o que é socialmente visto como a condição em que posso atender o telefone. Mas não é o meu caso. Este é o horário mais ocupado do meu dia. Aquela pequena fração da existência em que eu posso ficar em contato comigo mesmo. Ler meus livros. Assistir meus documentários sobre o universo, a biologia, a sexualidade, o tráfico de armas, a direita e a esquerda e o equilibrista exótico. E, muitas vezes, é a janela de horário em que eu posso ficar deitado, olhando para o teto me concentrando no silêncio até poder escutar meus pensamentos. Porque com o barulho da vida moderna nossos pensamentos ficam tão lá dentro, tão quietos. Respeite isso. Não fique horas comigo ao telefone. Pelo amor de deus. Por obséquio. Por misericórdia. Quando estiver mesmo com saudade, me visite e chame para uma caminhada. Aí vou te amar.

Mecânica

Ela quis ser difícil
Questão de prudência
Conseguiu o amor
Amor à distância

domingo, 8 de outubro de 2017

Garçon fanfarrão

Tempos modernos. Diversidade cultural, racial, feminismo, secularismo e tudo o mais. É essa a era em que estamos, certo? Isso não impediu um garçon de zoar minha zoeira. Explico. Havíamos todos combinados de nos encontrar em um tradicional bar da Rua Augusta. Trocando os nomes para preservar a privacidade dos meus queridos, digamos que eu aguardava a chegada da Sarah, da Mariana e do Jeferson. Estava sozinho lá e comecei a perturbar meus amigos pelo WhatsApp. Temos um grupo com todos e lá comecei a mandar as tradicionais mensagens.
-Já estou aqui!
-Cadê vocês?
-A cerveja está esfriando!
Aí perguntei para o Jeferson, que costumava se enrolar no serviço:
-Jé! Você vem mesmo? Já arranjei uma mesa!
E ele mandou uma mensagem engraçada:
-Me espere com uma rosa vermelha que eu vou!
Juro que, nesse instante, estava passando bem em frente à janela da minha mesa um vendedor de rosas, desses ambulantes. Ele oferecia as rosas a um jovem de um casal que estava sentado nas mesinhas da calçada.
Como eu acho que o humor e o riso vale mais que qualquer coisa, achei as rosas até que baratas. Comprei e deixei à mesa.
Quando o Jeferson chegou, viu a rosa sobre a mesa e riu. Já ali minha compra havia valido a pena.
Mas aqui deve-se acrescentar um detalhe importante à narrativa. Jeferson é negro. Assim como o garçon. E quando o garçon veio nos oferecer mais uma cerveja viu a seguinte cena:
Ambos sorridentes, eu e o Jeferson, sentados um de frente para o outro, com uma vívida rosa vermelha entre a gente, na mesa.
Estávamos na Rua Augusta, um dos lugares mais liberais da cidade. Mas ainda assim o garçon não se conteve. Olhou para o Jeferson e teve uma efusiva reação.
-Ah não! Poxa amigo! Como é que fica pra gente? (e ao dizer isso apontou, com o indicador da mão direita, para o braço esquerdo, evidenciando a cor da pele).
Rimos, explicamos a piada e ainda reagimos:
-Amigo, mas estamos na Augusta e você reage assim? E se a gente fosse gay mesmo? Acabava processado!
Ao que ele riu novamente e se defendeu:
-Processado nada, estou rindo, brincando. Aqui é tudo na paz.
Era um garçon fanfarrão. O tipo de pessoa que faz valer a pena não ir a um McDonnalds.

Coreografia

É uma dança. É uma dança, por fim. Ao movimento de um cabe um movimento do outro. O par buscará harmonizar-se. Não adianta que um dos dois tente movimentos exagerados enquanto o outro está estático. Não adianta que um silencie de mais quando o outra busca movimento. Devem buscar o denominador comum de seus corações. É uma dança.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

Mancada com o melhor amigo

Quem é seu melhor amigo? Há quanto tempo vocês se conhecem? Estudaram juntos? Cresceram juntos? Qual a maior mancada que você já deu com ele? Sim, porque acontece. Com uns mais, outros menos. Às vezes um segredo que foi revelado. Sem querer ou por querer, vai saber.

Eu, que não sou lá uma boa pessoa (mais por acidente do que por má vontade... tenho bom coração mas me atrapalho com a vida porque ela é complicada), tenho várias histórias de mancada com meu melhor amigo. Mas vou contar só uma porque sei que vocês não vão querer ler vinte páginas desse tema.

Meu melhor amigo conheceu uma menina. Pela internet. Não somos velhos, mas já somos da geração em que este jeito de conhecer pessoas era meio que novidade, uma ousadia, um experimento excêntrico. (tá, somos velhos...).

Ele falava sempre com ela. Se telefonavam. E vez ou outra já tinham se encontrado. Mas não estavam ainda "ficando". Eram amigos e nada mais. Até que um dia fomos nós três a um bar. E lá eu bebi. E lá eu conversei com ela e fiz amizade com ela. E depois nós ficamos. E depois nós até namoramos por um período breve. Meu melhor amigo se declarou meu nunca-mais-amigo. Brigamos.

Com muitos amigos em comum, contudo, seria difícil uma briga explícita, declarada. Então apenas não nos falávamos. Ele me ignorava. Quando eu falava com ele era como se ninguém tivesse falado nada. Mas aí viajamos em vários amigos. O ex-melhor-amigo e outros ainda bons amigos. E no meio dessa viagem brigamos pra valer. Gritamos um com outro. Recapitulamos as histórias, cada um em sua versão, para que todos pudessem saber dos detalhes e tomar partido. Faltava só aquelas placas de juízes para darem suas notas. Nove e meio. Nove e meio. Nove. Dez. Dois. Teria sido divertido. Mas não foi. Só briga. Brigamos e brigamos e brigamos e não saímos da porrada porque somos velhos mas não somos DESSA geração. Depois de esgotarmos nosso ódio em todos os gritos sobrou só o que havia antes, por baixo: a amizade de sempre.

domingo, 1 de outubro de 2017

Cidade linda

Paredes limpas
Escolas fechadas
Ruas seguras
Mendigos mortos de frio
Prefeito limpando o lixo
Do centro
Lixo de centro
Jogando na periferia
A lógica familiar
O conforto da casa grande
Cidade linda

Amigo desconhecido

A capa não diz muita coisa. Denuncia alguns efeitos do tempo por estar amassada em um pouco suja em alguns cantos. Abrindo o caderno as páginas mostram uma caligrafia que lembra a minha muito a minha, mas é diferente. Eu escrevia assim? Começo a ler.

Sonhos. Hesitações. Sou eu mesmo? Eu era assim?

A experiência de ler um velho diário é estranha. Sou eu ali nas páginas. Mas ao mesmo tempo é como se fosse outra pessoa. Eu leio algumas coisas e acho essa outra pessoa um tanto quanto ridícula. Por vezes infantil. Mas isso é até bom. Ruim é quando leio algo que realmente admiro, que acho até um tanto quanto genial. Será que eu consigo ser assim de novo? Será que esses momentos de inspiração se foram, diluídos pelo tempo?

A verdade é que estas questões não levam a nada. Porque aquele que escreveu estes velhos diários já se foi completamente. Assim como este que escreve agora desaparecerá em breve. Estranho pensar em lutar contra isso.

sábado, 30 de setembro de 2017

Psicologia urbana

Deveríamos aprender com os chineses a superar nossa ansiedade. Eles, que conhecem a marcha inexorável dos milênios, não se afligem com um atraso de dez ou vinte anos. Assim, quando se dispuseram a copiar quinquilharias das indústrias ocidentais não se desesperaram falando "a caneta dos EUA é melhor... esse radinho está uma porcaria... que lanterna tosca!". Seguiram em frente.
Nós não. Nós não sabemos copiar. Temos essa ansiedade de quem, desconhecendo história, acha que a existência se decidirá na próxima semana.
"Essas ciclovias são um absurdo! Boas mesmo são as da Holanda!"
Mas estamos de volta aos trilhos. Superamos nossas crises pela via fácil: de volta à zona de conforto.
Finalmente voltamos a cuidar das aparências dos ricos enquanto podemos, em silêncio, voltar a pisar e a ignorar pobres e famintos. É o Brasil com que estamos acostumados.

Cruzando o Atlântico

Assisti ontem a peça "Cruzando o Atlântico", com texto de Carolina Arksanan. O cartaz mostrava uma senhora ao lado de uma moça e de um rapaz jovens. Com este título pensamos em viagens, na época das navegações ou algo assim. De início é o que a história faz parecer.

Bete é uma senhora de cinquenta e quatro anos e cria sozinha seus dois filhos, Alessandra e Rodrigo. Rodrigo, mais velho, repetiu alguns anos na escola. Mas finalmente tomou jeito. Quanto à irmã, a única coisa que fazia repetir na escola eram os elogios dos professores. Ao entrarem na faculdade, ela estudando egenharia civil e ele estudando jornalismo, conseguem ambos bolsas de estudo para faculdades na Europa. Deixam o Brasil no mesmo voo. E então a mãe se despede e fica aqui, sozinha.

Claro que há o Skype para um oi, mas com todas as novidades da Europa quando é que os filhos tem tempo de estar online? E depois tem o fuso horário, tudo é difícil. Mais e mais Bete se vê em companhia de si mesma. Descobre a vida sem os filhos. E é este novo mundo de solidão, de vazio existencial infinito ao seu redor, recém descoberto, que ela terá que cruzar. É este seu Atlântico.

É uma peça, em resumo, sobre os desafios de redirecionar o ponto focal da vida, e de redirecioná-lo para si mesmo. Passeios, amigas, livros e filmes, diversas coisas às quais ela não tinha tempo e agora tem tempo de sobra mas, nas primeiras vezes em que retoma estas experiências, não sente o prazer que esperava. Onde estão os filhos? Pouco a pouco vai redescobrindo o direito de se sentir feliz por si só e, no processo, abre-se a descobrir pessoas interessantes novamente. Vale a pena assistir.

sexta-feira, 29 de setembro de 2017

Os esforçados

Eu o ouvi falar por meia hora contra essa horda de vagabundos que estão mamando nas tetas do governo. Essa gente que se vende a votos, curral eleitoreiro de petista... Bolsa família, bolsa isso, bolsa aquilo! Bolsa engenheiro não tem, né? Bolsa piloto, pra pagar o curso do filho, não tem, né? O negócio é ajudar pobre. Acabar com o dinheiro da nação comprando votos de miseráveis.
A outra meia hora foi gasta em elogios à filha. Que está estudando no Canadá. Muito esforçada a menina. Conseguiu tudo com méritos próprios. Inclusive a bolsa de estudos. Do governo.

Eu a criei

O Giba, ou Senhor Gilberto, para quem ainda não foi apresentado ao seu jeito amigável e informal, é um italiano lá da escola. Sempre que está em sala de aula sua voz ecoa pelos corredores em um discurso firme, pontuado por risadas leves e contagiantes. Pouco tempo depois que fui trabalhar lá já estávamos amigos. Almoçávamos juntos e, nessas ocasiões, ele me contava de sua vinda ao Brasil, da criação de sua família, de seu primeiro divórcio e outras coisas assim. Ele tinha, sob meu ponto de vista, um grande defeito: era extremamente conservador e havia, portanto, entrado nessa onda recente de falar mal de absolutamente tudo ligado ao governo atual. Mas eu não sou do tipo que faz ou desfaz uma amizade com base em diferenças no discurso político.

Aí ele começou a me contar da filha. Não sua filha, mas a filha de sua mulher.

-Sabe, quando comecei a sair com a Elisângela a menina ainda era pequena. Eu queria que o pai fosse vê-la. Mas sempre tinha alguma coisa. Estava viajando a trabalho. Estava fora com os amigos. Estava cuidando de algum projeto, em alguma reunião. A Elisângela jurava que era tudo desculpa e aí ficava aquela situação né, aquele clima de conversa engasgada. Eu comecei a levá-la para vê-lo mas ela não queria, no fundo ela não queria. E ele também não. Quer dizer, eu acho que ele queria ser um bom pai. Mas não conseguia, não sei porque mas não conseguia. E então eu a criei. Ela me chama de pai. Eu virei o pai dela.

quinta-feira, 28 de setembro de 2017

Sempre vou escrever

Sei que essa é minha terapia, minha reza, minha paz. Não sei se algum dia, contudo, serei um escritor. Desses que lapidam as frases. Desses que alimentam imaginações alheias. Eu escrevo meu espírito e depois já é um texto morto. Talvez porque a escrita tenha a ver com a existência de cada um. De que vale meus instantes depois de terem sido vividos? As planilhas preenchidas. Os abraços às visitas. As risadas com os estranhos. Aconteceu e já foi. Não há porque se repetir. Como este texto cuja vida dura o tempo de digitar cada tecla. E o resto é um fóssil morto. Coisa para arqueólogos de interesses estranhos.

Fui despedido

Tenho algum dinheiro no banco. Vou pedir seguro desemprego. Tem uns bicos que andei fazendo por aí e, portanto, algum dinheiro ainda por receber.

Mas estou sem emprego. O que vai ser daqui para a frente? Vou trocar de carreira e realizar meus sonhos?

Vou tomar vergonha na cara e concentrar minhas energias em inúmeros projetos, projetos cuja estagnação eu sempre atribuí ao tempo que meu antigo emprego consumia de mim? Não sei o que vai ser.

O que eu vou fazer amanhã? O que eu vou fazer hoje, no fim do dia?

Espero por mudanças. Mas essa frase é, em si, um erro. Mudanças não devem ser esperadas. Mudanças devem ser criadas.

Que eu crie mudanças. Que eu crie os espaços novos em que pretendo viver. Sei que uma das amarras, ao menos uma grande delas, se foi.

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

A crise

A crise está chegando. Os jornais anunciam. A bolsa oscila. Ricos, desesperados em cortar gastos para se proteger, demitem seus funcionários. Faxineiras ou recepcionistas. Gente que estava ali "a mais". E para estes, finalmente, a crise chega.

A casa

Era uma casa muito engraçada
Não tinha afeto, não tinha nada
Ninguém podia cantar nela não
Porque na casa não havia paixão

Ninguém podia
Rir de repente
Pois nessa casa
Não se é contente

Mas era feita com muito esmero
Bonita aos olhos
Essência zero

terça-feira, 26 de setembro de 2017

Versões

"Acho que às vezes precisamos aceitar que já somos ótimas versões de nós mesmos."
Obrigado.
Mudou meu dia.
Mudou meus dias.

Presentes que fazem sentido anos depois

Obrigado caro amigo. Na época eu era uma criança e aquele presente era uma mera curiosidade. Algo que eu não era capaz de entender por completo. Um livro sobre um assunto assim tão complicado, quem presenteia uma criança com uma coisa dessas?

Hoje, quase vinte anos depois, aqui em minha escrivaninha, estou com o livro aberto para auxiliar meus estudos. Hoje é minha carreira, é com isso que trabalho. Obrigado.

segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Enquanto…

Enquanto acharmos que a beleza das roupas vale mais que a pureza das almas,
Enquanto valorizarmos mais a limpeza dos muros que a harmonia entre as pessoas
Enquanto confiarmos mais no chumbo que no amor
Enquanto nossos silêncios forem mais polidos do que nossos sorrisos
Enquanto aparência for mais aplaudida do que conteúdo
As almas seguirão invisíveis
Isoladas
Maltratadas por si próprias,
Abandonadas ao abandono que às outras condenam
A humanidade em sua pior versão,
Mas engomadinha e bem apresentável.

Dois empregos

Fui fazer exame de sangue outro dia. Exigência da empresa. Depois de furarem meu braço para encher dois tubinhos ganhei uma fichinha que dava direito ao "café da manhã". Devido ao jejum eu estava faminto. Fui ansioso e, para minha surpresa, a crise financeira chegara à lanchonete da clínica. No ano passado haviam sanduíches, pães de queijo e café com leite. Uma atendente recebia minha ficha e perguntava qual das opções eu queria para comer e beber. Dessa vez não havia nem sequer uma atendente. Eu apenas depositava a ficha em uma caixinha e me servia de um café um tanto quanto mal feito e de bolachinhas secas, disponíveis nessas micro embalagens contendo apenas três bolachas cada.
Uma senhora veio se servir também e comentou em voz alta o que eu estava pensando.
-Piorou muito aqui hein!
Concordei com ela. Começamos a conversar. Ela era evangélica. Comecei a falar da crise. Realmente, a coisa estava complicada. Ela era diarista e algumas amigas haviam perdido o emprego.
-Por isso mantenho dois empregos e não largo de jeito nenhum.
Perguntei o que mais ela fazia.
-Também sou camareira em um motel.
Personagens reais são, com frequência, muito mais interessantes que os da ficção.

domingo, 24 de setembro de 2017

Bendito seja

Uma das minhas maiores dificuldades, enquanto ateu, é a de conviver com a profunda falta de coração, de empatia e de amor daqueles que se dizem crentes. Aquele famoso sábio deveria ter previsto o vasto alcance de nossa voluntária ignorância e ter dito mais claramente: "Amai ao próximo E AO DISTANTE como a si mesmo.". Somos muito rápidos em inventar distâncias onde não deveriam existir.

Perdões

Eu já havia me acostumado a vê-la careca. Mas ali, no leito do hospital, sua imagem havia deteriorado ainda muito mais. Estava magra como não parecia ser possível. E a cor da sua pele havia mudado também. Não sei se é algo da minha cabeça, ou algo devido a alguma outra coisa ali do hospital, mas eu posso jurar que seu cheiro mudou também. Ela iria morrer logo mais. Sabíamos, desde que o câncer havia sido diagnosticado, que esse dia chegaria. Mas é diferente imaginar meses ou mesmo anos pela frente e, como agora acontecia, saber que este momento estava a poucas horas de distância, no máximo.

Lembrei de todas as vezes que a fiz sofrer. Minha tia havia me criado, a mim e aos meus irmãos. Cuidou da gente enquanto minha mãe ia trabalhar. E era necessário que ela trabalhasse primeiro porque a renda do meu pai não era grande o suficiente para manter toda a família com qualidade e depois porque os meus pais se divorciaram.

A visão da morte iminente apagou de minha mente um pensamento que causou revolta por anos e anos: para mim, em uma análise lógica mais fria, foi ela própria, minha tia ali a algumas horas de morrer, que havia sido uma peça chave no divórcio dos meus pais. Primeiro porque sempre fez minha mãe mudar de opinião quanto a planos que havia feito com o meu pai. Meus pais combinavam de fazer uma viagem, depois minha mãe conversava com minha tia e mudava de ideia. Em segundo lugar, e essa é a parte mais grave, enquanto meu pai fazia horas-extras em seu trabalho na empresa automobilística minha tia incutia na mente de minha mãe uma única explicação: ele não estaria fazendo horas-extras coisas nenhuma, estaria é tendo um caso extra-conjugal com alguma vagabunda. Minha mãe não suportou a pressão, entrou em diversas discussões com o meu pai e o divórcio finalmente veio.

Depois, com essa mesma mentalidade super conservadora, minha tia tentou atrapalhar meus namoros, os namoros do meu irmão e da minha irmã também. Em um dado momento eu briguei tanto com ela que disse que ela não precisava mais ir lá em casa cuidar da gente como sempre fazia. E ela nunca mais foi.

Hoje acredito que essa ruptura foi parte do processo de adoecimento dela. De modo que eu me sinto, sim, culpado. Mas não sei se chego a sentir um remorso por isso. Por que haveria eu de absorver todos os males de suportar suas interferências em nossas vidas? Eu queria ser grato a ela, grato por tudo o que ela fez de bom por nós. Costurava roupas, preparava comida em casa. Permitiu que minha mãe trabalhasse fora. Mas ela já havia provado não ter limites para o quanto poderia interferir em nossas vidas. Eu deveria dar-lhe direito ilimitado de interferência como prova inequívoca de minha gratidão? Não me parece uma opção aceitável, até hoje.

E foi nesse contexto em que fiquei ali parado, ao lado do leito, vendo os tubos que entravam e saiam de sua boca, nariz. Repousei minha mão sobre ela. Pensei em todas essas histórias. Senti-me culpado por fazê-la se afastar do lar que ajudou a criar. Aproxime-me do seu ouvido e sussurrei desculpas pela tristeza que causei. Olhei novamente para ela, que me olhou serenamente enquanto balbuciava qualquer coisa como "tudo bem". Senti-me, confesso, um perfeito idiota.

sábado, 23 de setembro de 2017

O riso

Ela faz o sinal da cruz toda vez que passa em frente a uma igreja. Tem dessas proximidades gestuais com o divino.
E ontem conversávamos nós três. Eu, ela e um amigo carioca. O amigo havia sido roubado. Aqui em São Paulo mesmo. Furtaram o celular dele em algum momento de distração.
- Ah rapá, mas se fosse lá no Rio... Lá não ficava assim não. Tenho um amigo que é do BOPE... era ir atrás do moleque, colocar as mãos na calçada e enfiar um chumbo em cada uma! Queria ver ele roubar de novo.
E ela riu, sonhando com um mundo em que as balas fizessem a devida justiça.
O que Deus responderia para ela após cada sinal da cruz, se existisse?

Egocêntrico tímido

Eu declaro explicitamente mas ninguém acredita em mim. Sou tímido. Sou egocêntrico. Sou um egocêntrico tímido.
É fácil e bom ter a atenção para mim. Atenção com alguma admiração talvez. Ou com risadas. Risadas são positivas e passam como tal mesmo em contextos não necessariamente positivos. Podem estar rindo de mim com um certo desprezo mas eu posso ter feito uma idiotice proposital para divertir. Palhaço? Não vou teorizar sobre palhaços, não é foco aqui.
A questão é que há uma fronteira. É fácil eu colocar uma fantasia e fazer algo ridículo para despertar o riso dos outros. Mas ler um poema que escrevi em meu diário ontem ou há dez anos, isso me faz suar frio. Prefiro desistir. É por isso que meus diários estão todos guardados. É por isso que uso pseudônimos, heterônimos e outros covardenômios.

sexta-feira, 22 de setembro de 2017

Não deixe a segunda em segundo plano

É o primeiro dia da semana. E todo mundo diz que odeia segunda-feira. Trata-se, vou revelar aqui, de um grande complô. Quem começou a amaldiçoar a segunda-feira tramava um cruel plano para destruir a auto-estima da humanidade. Devemos amar nossas atividades, nosso tempo, nossa rotina. Eu não digo que deve-se amar um trabalho horrível mas o ódio corriqueiro à segunda-feira acaba servindo para esconder uma verdade muito óbvia: quando seu trabalho só lhe traz desânimo está na hora de trocar de trabalho! O problema, neste caso, não é com a segunda-feira, mas com você. Ache logo alguma atividade que lhe faça amar a segunda-feira.

quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Notas de um explorador em campo

Fui para a África desbravar desconhecimentos e surpreendices. Descobri que sob miragens das mais belas se escondia um grande e árido deserto.

E, continuando a onda de revoluções científicas, descobri que os ventos cruzam o Atlântico não só de leste para oeste mas também na direção oposta, distribuindo chuvas ao longo dessa que se chama, nome apropriado, Zona de Convergência Inter Tropical (ou ITCZ, em inglês).

A melhor parte é quando esses bons ventos se condensam e a aridez dá lugar a esse doce cheiro de chuva, que nos enchem de sorrisos. Como se a natureza abraçasse a gente tão apertado, tão de perto, que é difícil acreditar que tudo partiu de tão longe.

Quero

Quero ver uma foto sua
Mas quero mais

Quero flagrar seu doce caminhar
Mas quero mais

Quero receber do vento teu cheiro
Mas quero mais

Quero teu olhar fundo no meu
Mas quero mais

Quero proteger sua mão nas minhas
Mas quero mais

Quero embrulhar seu abraço no meu
Mas quero mais

Quero incendiar seu beijo
Mas quero mais

Quero rasgar suas roupas, seus pudores
Mas quero mais

Quero deslizar nos seus suores
Mas quero mais

Quero embaralhar nossos corpos
Mas quero mais

Quero nossas palavras misturadas em uníssonos sentimentos

Dona Yolanda

Meus avós moravam em São Paulo mas meu vô havia comprado um terreno no litoral para realizar o sonho de aposentadoria de viver à beira do mar. Quando eu era um bebê a casa estava sendo construída e lá onde minhas primeiras lembranças alcançam a casa já existia. A rua, hoje asfaltada, ainda era de terra. E a casa da memória não quase nenhuma semelhança com a de hoje. Uma coisa, contudo, permanece: o sofrimento da vizinha Yolanda, que só se acentuou com o tempo.

Eu não entendia a dimensão do drama quando ainda era uma criança, mas lembro claramente de ver a Yolanda com sua filha deficiente. Hoje sei da história. Quando os filhos cresceram e foram morar em outras cidades, Dona Yolanda resolveu adotar uma criança. O pequeno bebê tinha uma deficiência de nascença porém essa informação não foi passada para ela. Quando se deu conta, tempos depois, não aceitariam a criança de volta no orfanato. Mas Yolanda estava decidida: era sua filha.

A menina cresceu. Nunca aprendeu a falar além dos balbucios de algumas palavras. Sua locomoção era precária: não dominava o próprio corpo.

À medida a menina crescia, Yolanda envelhecia. Os filhos raramente vinham visita-la. Tinham um misto estranho de ciúme e raiva, ou talvez desprezo, por essa irmã defeituosa.

Certa vez, quando não era época de férias e portanto o bairro estava praticamente deserto, um lunático invadiu a casa, trancou a Dona Yolanda no banheiro, estuprou a menina, roubou coisas da casa e fugiu. Nunca foi pego. Eu só soube disso tempos depois porque ainda era novo para minha família dividir histórias assim comigo.

A história ainda não chegou ao fim e está, enquanto escrevo, passando por mais um momento dramático. Meus avós não são mais vivos. Agora são meus tios que cuidam da nossa casa. Foram para lá passar um final de semana e foram abordados por um outro senhor do bairro. Ele comentou que há dois dias a Dona Yolanda não aparecia varrendo seu quintal. Chamavam e ninguém atendia. Ligaram para a polícia para perguntar sobre arrombar a casa e, sob recomendação da delegacia, chamaram os bombeiros. Eles logo vieram e arrombaram a casa. Dona Yolanda estava no chão. Teve algum ataque. Estava lá não se sabe há quanto tempo. Talvez dois dias inteiros já. Suja, havia urinado e defecado sem sair do lugar. Balbuciava coisas. A menina, agora uma adulta, estava ali como que compartilhando do ataque. Faminta. Assustada. Entendendo muito menos do que o pouco que havia entendido da vida até ali.

É algo criminoso. Sua família a abandonou ali. São responsáveis por elas mas, nesse momento, devem estar preocupados apenas com a escritura da casa e torcendo para que essas duas, grandes estorvo, morram logo. Nem só de histórias de verão é feito o litoral...

Fé em perspectiva

Um pedaço de rocha redondo, molhado, flutuando no vazio, banhado pela estrela vizinha. Pequenos bichinhos reunidos em suas tocas sobre esse grão de poeira dedicando pensamentos a personagens imaginários.

quarta-feira, 20 de setembro de 2017

Vamos por partes

Uma parte de mim
Lê Ferreira Gullar
A outra lê qualquer merda

Uma parte de mim
Só quer olhar
A outra
Só quer foder

Uma parte de mim
É caprichosa
Outra
Faz de qualquer jeito

Uma parte de mim
É literatura
Outra
Só palavrão e cuspe

Uma parte de mim
Tem paciência
A outra
Nem interessa

Uma parte de mim
Escreve a caneta
A outra parte
Faz vídeos

Uma parte de mim
Sente saudades
A outra
Manda à merda

Uma parte de mim
Olha pra fora
Outra parte
É só mistério

Uma parte de mim
Tem medo
A outra
Se joga

Uma parte de mim
Te espera
A outra
Já foi.

Notícias ruins

Não quero ser a pessoa a dar as notícias ruins. Avisar que o trabalho não ficou bom. Contar que fulano não resistiu à cirurgia. Dizer que a roupa escolhida está horrível. Comentar que o tempero definitivamente não deu certo. Mas notícias ruins precisam ser dadas. Quem é que vai me avisar que esse texto não tem razão de ser? Quem é que vai dizer à humanidade que estamos fazendo tudo errado?

terça-feira, 19 de setembro de 2017

Ignorar tudo o mais

Essa é minha dificuldade espiritual.
E daí que faz tempo que não falo com meus amigos?
E daí que a política está degringolando a galopadas?
E daí que existe trabalho escravo?
E daí que milhões de espécies estão sendo extintas?
E daí que há tanta gente interessante por conhecer?
E daí que há tanta coisa bonita por fotografar?
E daí que há tanta música bonita por ouvir?
E daí que há tanta coisa incrível na matemática?
E daí que há tantos e tantos belos romances por serem lidos?
Tenho que aprender a ignorar
Tenho que aprender a prestar atenção no corredor que estou varrendo
Tenho que aprender a prestar atenção na próxima frase a ser escrita
E nada mais
Tenho que aprender a admirar meu quarto
Que também pertence ao mundo, embora soem coisas mutuamente excludentes
Tenho que aprender a desfrutar de um olhar por vez
E daí que tive essa visão do tamanho do mundo?
Se meu mundo se desenrola um pedaço por vez
Que eu aprenda, no fundo do meu íntimo, a ignorar tudo o mais

Sugerindo livros

Já lhe pediram a sugestão de um livro? É uma tarefa dificílima. Existem tantos milhares de livros. Qual será o gosto da pessoa, realmente? Ainda mais para mim. Eu sei que meu gosto é peculiar. Por vezes posso preferir ler um livro com uma análise histórica de uma região remota do Acre a um romance distrativo. Em outros momentos posso ler de cabo a rabo um "romance de supermercado" de trama previsível e personagens planos ao invés de mergulhar nas profundezas reveladoras da literatura. É uma coisa de momento. Isso! Momento! Por isso é tão difícil. Porque a gente pode até conhecer a personalidade de alguém. Mas como saber em que momento a pessoa está?

segunda-feira, 18 de setembro de 2017

Skinner

Quando pequena fazia desenhos e levava para a vó ver.
- Mas que porcaria é essa? Eu não sou feia assim não!
E, com os anos, aprendeu que só o ódio e o desprezo são aceitos em rascunhos. Deixou de expressar amor.

Falta de solidão

Estou sozinho. Fisicamente. Uma casa praticamente vazia que aluguei há pouco tempo. Uma mesinha na sala. Cadeiras de plástico que comprei pelo menor preço. E não muito mais que isso. Mas ao mesmo tempo não estou sozinho. Celular. Internet. Pessoas chamando. Whatsapp. Facebook. Emails (ainda usam emails, uma das tecnologias mais duradouras dessa era informática, veja só). Assim, estou vivendo essa estranha situação de sentir falta de solidão. Estou sozinho mas não consigo ficar sozinho.

NOTA: escrevi isso há sei lá quantos meses. Agora estou em uma viagem no meio do nada e é a internet que está me salvando. O mundo de certa forma é o mesmo, mas na medida em que mudo, muda também a função das coisas ao redor. Infernos se convertem em paraísos, remédios em venenos. Ainda que seja o mesmo mundo. Sou eu mudando.

domingo, 17 de setembro de 2017

Dos critérios

Fazer o que os outros fazem, como os outros fazem, não é se expressar. Fazer o que os outros fazem é, tão somente, imitar. Vale para fazer muros. Vale para as palavras. Vale para a música. Vale para a existência.

Cézar

Cézar é um amigo desses com um bom emprego e com um bom salário. Tudo isso devido ao fato de ser um bom profissional e saber gerenciar sua carreira aproveitando oportunidades. Mesmo quando, a princípio, não está interessado. Lembro quando o chamaram para uma entrevista na empresa da qual ele mesmo havia se demitido alguns anos atrás. E ele não queria voltar lá de jeito nenhum.
-E aí Cézar, como foi?
-Olha, lembra que eu não queria voltar lá né?
-Pois é, mas mesmo assim foi fazer a entrevista...
-Fui, mas continuava não querendo, e a vaga era bem parecida com o que eu fazia antes, então tentei dar um jeito de não aceitar.
-Como assim?
-Ah, pedi mais que o dobro do que eu ganhava antes!
-Afe! E aí?
-E aí... que toparam! Agora vou ter que aceitar, não tem jeito!
Mas ele é uma pessoa humilde. Usa seu dinheiro principalmente para viagens com os amigos e seus interesses esportivos. Seu apartamento serve apenas de dormitório para ficar próximo ao trabalho. Tanto é que outro dia ele veio com essa declaração:
-Cara, eu não gasto com nada! Só compro o que eu preciso. Tanto é que eu não tinha móveis na sala do apartamento, porque eu não uso.
-Mas da última vez que eu fui lá tinham móveis sim! Sofá e mesinha.
-Pois é, mas foi minha empregada quem me deu, de dó.

sábado, 16 de setembro de 2017

Imploro

Abra seu coração. Não guarde bons sentimentos dentro de você. Fale. Escreva. Comunique-se. Tome a iniciativa de dizer "estou com saudades". "Gosto de você". "Ontem foi um dia muito bom." Não seja o bloco de gelo a esfriar a humanidade que nasce entre vocês.

Dia

Olhos se abrindo. Água da pia, pasta escova toalha. Shampoo toalha. Calça meia sapato camisa gravata pente espelho. Água fogão café pão frutas. Rua sol ônibus espera. Pessoas olhares. Trabalho papéis computador tempo. Café. Almoço. Conversas. Papéis. Reunião. Tédio. Lâmpadas. Canetas. Twitter. Blogs. Emails reuniões conversas computador. Rua. Pessoas cansaço olhares. Olhares. Cansados. ônibus. Lotado. Tempo passado. Passado. Rotina. Morfina.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

Fale comigo

Quero saber que sente minha falta. Quero saber que pensa em mim. Quero saber das vezes em que apareço em seus pensamentos. Quero saber o tamanho de sua saudade. Te dou meu espírito. Mas preciso de um lugar pra ficar. Abra seu coração. Fale comigo.

Lendo os próprios textos

-Me conta uma história?
-Contar o que? Que história?
Ele queria contar alguma coisa. Mas não era bom com sua memória. E ficava nervoso tentando pensar em algo. E então começou a ler os livros que tinha na estante.
-Que coisa chata, o que é isso?
-Um livro de economia que tava aqui...
-Não, isso não, conta uma história!
Ele arriscou um passo mais ousado. Abriu as velhas gavetas e retirou dali seus cadernos já empoeirados e amarelados. Resolveu ler as próprias histórias. Mas não teve coragem de dizer que eram suas próprias histórias.
-Nossa, que bonito isso! O que é?
-Um livro de histórias infantis.
-Eu não conhecia.
-Coisas da minha mãe...
-Conta mais?
Página por página foi se reconstruindo a partir de seus escombros.

quinta-feira, 14 de setembro de 2017

Submerso

Algo silenciou em mim nos últimos tempos. Nos últimos meses. Quase não tenho escrito. Não sei o que escrever. Não sei o que cantar. Não sei o que deve sair de mim. Impotência da alma. Existência inconsequente. Universo indiferente.

Vou fazer café. Beber um pouco de tinta e depois ver se saio cuspindo palavras por aí.

Foco no indivíduo

Terminei ontem a leitura do "Esculpindo personalidades". Título um tanto quanto estranho para um economista mas alinhado com os demais trabalho de Claudio Stanheddas. O autor faz uma ponte entre a psicologia e as teorias econômicas e não é exagero dizer que sua escrita é também uma ponte entre a literatura e o academicismo.

Já se tornou lugar comum nos meios intelectuais dizer que o trabalho de Stanheddas tem o foco de sua análise no trabalhador. De fato o economista não está preocupado com as variações do PIB ou a produtividade que uma determinada organização confere à empresa. Sua preocupação principal é relacionar as estruturas de trabalho à totalidade de experiência de vida possibilitada ao trabalhador. Porém, uma vez que esta experiência de vida abrange muito além daqueles aspectos ligados à atividade profissional, julgo mais apropriado dizer que Stanheddas tem seu foco não no trabalhador mas sim no indivíduo. Afinal, um trabalho estritamente preocupado com o ser humano enquanto recurso de produção jamais dedicaria um capítulo inteiro à relação entre "Organização da empresa e o amor", nem muito menos se aventuraria a fazer ainda o caminho inverso ao investigar o "Tempo com os filhos e potencial de inovação".
Na introdução o leitor já encontra o alerta de que tem em mãos um material de escopo diferenciado. Tais aberturas são comuns nas obras deste acadêmico. Vale a pena aqui dar a voz ao próprio autor:

"A economia é um sistema complexo, e isso o digo no sentido moderno do termo. Não possui hierarquia rígida, todas as partes se influenciam mutuamente e o alcance de interações frequentemente têm alcances imprevisíveis, podendo grandes mudanças ser absorvidas por uma forte resiliência ou inputs aparentemente pequenos levarem a alterações exponencialmente crescentes. Embora análises tradicionais da economia sejam centralizada em seus meios e resultados, o moderno entendimento teórico da complexidade sugere que houve negligência histórica na análise do agente em si - suas propriedades e a relação destas para com o sistema em que está inserido. O agente principal da economia é a pessoa, o indivíduo. Abordagens específicas propuseram tratar a empresa como entidade fundamental e análises mercantilistas muitas vezes consideravam todo um país como um bloco básico de análise, tal qual o faz a chamada abordagem macroedonômica de hoje. Tais abordagens são do tipo top-down não sendo, portanto, pertencentes ao modelo de análise sugerido pela teoria da complexidade. Estas são as razões, digamos assim, teóricas, para o destaque que se dará nesta obra à pessoa individual. Mas há também, claro, uma outra razão.

A história da economia moderna segue linhas institucionais. Trata, por vezes, do ponto de vista da empresa, buscando maximizar lucros e eficiências. Noutras vezes, em estudos mais classicamente ligados a setores da sociologia e humanidades menos endinheiradas, aborda o lado dos sindicatos, organizações de trabalhadores ou simplesmente do interesse dos trabalhadores em geral ainda que não pertencentes a um bloco institucionalmente organizado. De algum modo ligado a este segundo grupo estão os estudos que tratam dos pobres em geral, pois podemos pensá-los como trabalhadores latentes desconectados do sistema (ainda que esta latência possa, e frequentemente tenha, a duração de toda a vida das pessoas em questão). Estas abordagens são inerentemente parciais. E, por serem parciais, instigam algum tipo de conflito não importando o quanto tenham, em suas origens, se proposto a combater algum outro. É por isso que neste trabalho ouso tratar do indivíduo enquanto tal, enxergando sua colocação na posição de empregador ou empregado como atributos secundários e reconhecendo, explicitamente, que a característica original - indivíduo, é completamente comum a ambos os agentes. Tal estrutura analítica é sugerida pela teoria da complexidade quer em seus preceitos quer pelas linguagens de programação tradicionalmente empregadas para estudos computacionais específicos: as linguagens orientadas a objeto pressupõe uma classe de variáveis às quais serão dados diversos atributos. Nada mais lógico, portanto, em uma abordagem bottom-up, do que começar por uma variável "indivíduo" ou "pessoa" e atribuir-lhe então atributos iniciais que podem muito bem começar por "empregador" ou "empregado". Fica explícita, portanto, a possibilidade de trânsito de uma mesma pessoa entre as duas categorias. Ou até o pertencimento às duas funções em contextos específicos.

Finalmente, e não há porque não o dizê-lo explicitamente, a abordagem desenvolvida nesta obra deve-se também a uma questão de escolha subjetiva que podem, sem receio quanto à rejeição acadêmica ao termo, ser dita como primordialmente utópica. Quero entender a relação entre as estruturas econômicas e a experiência existencial de cada pessoa porque enquanto estas duas entidades forçarem demasiadas tensões entre si, teremos um cenário em que a economia fere a vida daqueles que a sustentam e que estes se rebelam, de diversas maneiras possíveis, contra a estrutura que deveriam sustentar. E finalmente, em última análise, enquanto a economia não oferecer a possibilidade real, viável, de vidas desejáveis para a totalidade daqueles que a compõe, pouco importará o sucesso de qualquer outro indicador. Sucesso econômico às custas de tragédias de vidas deve ser clara e explicitamente visto como algo indesejável e falho."

Não vou comentar mais sobre o desenvolvimento do livro. Com uma introdução desta, quem ainda ousaria dizer que não se interessou?

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Sofrimento

A origem do sofrimento está em mim. Vazios que espero serem preenchidos pelos outros. Imaginações infundadas.

Entendemos nossas pequenas desilusões como decorrentes de uma deliberada traição alheia. Uma iniciativa deliberada do outro para nos machucar. O que é um engano. Somos desiludidos por conta de nossos próprios erros. Esperanças infundadas depositadas no mundo exterior, em pessoas ou em circunstâncias externas. Enganos nossos.

Basta identificar esses erros e aprender a errar menos para diluir o sofrimento. Que fácil, que fácil...

Pão e chocolate

Passei no mercado. Fazer compras quando se mora sozinho é um desafio. Até porque eu não entendo muito de cozinhar e não tenho grandes pretensões gastronômicas. Então fica muito fácil comprar tranqueiras demais ou errar nas quantidades e deixar coisas estragarem. Ultimamente, essa crise e tal, o dinheiro anda mais curto. Então comprei macarrão, molho, pães, requeijão, queijo e coisas assim. E ao passar pelo caixa não resisti: chocolates! É mais barato comprar chocolates no mercado do que nos restaurantes e padarias. Se bem que, enchendo minha casa de chocolates, eu os devoro quase que em uma mordida só, não duram tantos dias quanto deveriam.

De sacolas na mão e pensando nessas coisas, saí em direção à minha casa e já fui distraindo meus pensamentos com uma barra de Diamante Negro. Estava começando a me xingar mentalmente por não resistir à gula e já ir cedendo aos doces. Assim eu vou continuar engordando! Ainda mais agora que ando super sedentário. Foi no meio desses pensamentos que vi um mendigo, na calçada, que ia me observando bem atentamente enquanto eu comia meus chocolates. De repente senti a luxúria em que eu estava me afogando: comendo sem precisar, comendo o que até me fazia mal, enquanto ali ao lado alguém morria de fome. Olhei-o nos olhos e perguntei:
-Ô amigo, cê tá com fome?
-Porra se tô, vixe!
Não hesitou em ser tão enfático quanto podia. Dei a ele um chocolate e um pão seco ao que ele foi logo agradecendo e me cobrindo de votos de bênção. Segui para casa pensando na profundidade de nossas gulas que nunca olham ao redor.
Na manhã seguinte liguei a TV. Dentre as tantas tragédias de sempre, com o câmbio e com os deputados, uma notícia algo atípica:havia ocorrido um atropelamento no fim da madrugada ali próximo à minha casa. Um carro cheio de jovens bêbados atropelara um mendigo que dormia na calçada. Naquela manhã não consegui comer nada e ainda hoje, ao me lembrar da história, sinto um embrulho incômodo no estômago.

terça-feira, 12 de setembro de 2017

Insuportável

"Parati foi tomada por pobres que acabaram com a cidade", disse o idiota preconceituoso

"Os nordestinos acabaram com São Paulo. Por que não voltam logo pra terra deles?", disse a egoísta arrogante.

Tenho tido nós no estômago diante da intolerância alheia. A intolerância à intolerância me invade.

Encontro com a natureza

Pés na areia macia. A água trazendo espuma de longe. Vento e ecos nos ouvidos.
O topo de um morro, pés nas pedras. Lugar alto com vista a horizontes infinitos em todas as direções. O sol lá longe discretamente se escondendo, discretamente provando ser dono de toda luz que leva consigo.
Lugares de retiro.
Uma rede do lado da floresta, canto dos pássaros.
Ou o papel. Vezes sem conta me retiro ao papel. Porque o papel é um lugar alto com vista infinita. O papel é um espelho profundo com meditações fortes. O papel também é a prova de que tudo depende do nosso grandioso sol, até mesmo esses momentos de reflexão isolada e sincera.
Talvez seja um pouco egoísta ou egocêntrico, e confesso estar descobrindo os detalhes de meu egocentrismo. Mas que assim seja: enquanto meus pés não encontram a natureza lá fora, que minha mente, pisando no papel, reencontre a natureza aqui dentro.

segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Como você começou a tocar sax?

"Então cara... eu tocava é clarinete. Nunca tinha pego outro instrumento. Estudava de manhã. À tarde. Enchia o saco da família toda. O cachorrinho não aguentava mais, sabe? Fiz o Klosè todo, meu professor me enchia o saco. Mas eu levava a sério. Só que aí comecei a andar pela cidade. E eu via essas boates... Pô cara, ali o pessoal curtia. Tinha música, mulher, gente pra caramba, sabe? Eu queria participar daquilo, só não sabia como. Eu não tinha dinheiro pra ir sempre nesses lugares. Mas um dia eu fui lá, um amigo meu foi me apresentar uns caras da banda que tocava lá. E aí eu fui falar com eles, e eles estavam putos com um tal de Pedro. O cara tinha sumido, sei lá o que deu. Aí me perguntaram se eu conhecia alguém que tocava sax, pra substituir o Pedro. E eu perguntei se servia eu! Me chamaram pra um ensaio na outra semana então, pra ver como eu tocava. Saí de lá correndo, fui falar com meu professor e implorei por um sax emprestado. Passei a semana inteira me achando com as escalas, uns arpejos, pra pegar a digitação... a embocadura era bem mais fácil que o clarinete. Sax é instrumento de bêbado, difícil de errar. Mas as escalas tinha que praticar... Aí na outra semana tava lá. Só fui contar isso pra eles uns dois anos depois. E acharam que era brincadeira minha, que eu estava mentindo."

Dói mais quando é com a gente

Tenho visto alguns filmes e documentários recentemente e não posso deixar de notar como o 11 de setembro é visto como uma das grandes tragédias do século. É claro que foi uma tragédia horrenda. Nada justifica buscar qualquer aspecto de positivo e justo no que ocorreu neste fatídico dia porque tal não existe. Mas sua posição como "tragédia máxima" no imaginário popular é nada mais que um grande equívoco.
Ignoramos as mortes de refugiados, de famintos, de doentes. Ignoramos as mortes no trânsito, as mortes nos crimes, mas mortes em tantas e tantas formas que aprendemos a aceitar como normais ou a simplesmente não ver.
Aprendemos a não ter opinião própria. Copiar a opinião dos outros é muito mais prático e também mais cômodo socialmente. Não erramos quando concordamos com o jornalista da TV porque sabemos que nossos amigos assistiram ao mesmo jornal. Não importa muito o que diz a realidade porque a Realidade é esse lugar mitológico onde ninguém vai.

domingo, 10 de setembro de 2017

Movimento

- Pai... Uma vez eu li uma história. Era sobre o Churchill. Diz a história que ele estava há horas no estúdio da casa dele, ou sei lá eu onde, em pé diante de uma tela em branco. Uma amiga dele chegou e perguntou o que ele estava fazendo. Ele explicou que queria pintar uma flôr e ela questionou o fato de a tela ainda estar em branco. Ele disse que estava indeciso sobre como começar a pintura. Então ela tomou o pincel da mão dele e fez um traço qualquer na tela. E disse "pronto, começou! Agora é só continuar". Entende? Movimento. Movimento.

Horas mais tarde...

- Oi filho. Fui procurar trabalho voluntário. Passei a tarde dobrando fraldas geriátricas descartáveis. Foi bom. Me movimentei e valeu. E encontrei uma conhecida de quarenta anos atrás. Ela quem me ensinou a dobrar as fraldas. Por hoje consegui vencer a timidez e a sociofobia. E não fiquei aqui em casa com essas coisas ruins na cabeça que têm me acometido às vezes. Agora à noite fui fazer ginástica para idosos. Foi muito bom. Obrigado filho. Você foi muito importante pra mim hoje. Obrigado mesmo.

Aerolitos

As pedras vão cair do céu. É questão de quando. É uma certeza. Pode não acontecer ao longo de nossa vida mas certamente vai acontecer algo relevante em algum momento no futuro. Um grande rochedo caindo do céu. Temos, é claro, eventos menores registrados. O meteoro que caiu sobre a Rússia há alguns anos. O evento de Tunguska no início do século XX. Mas essas são meras curiosidades, notas de rodapé, diante da perspectiva de um pedregulho realmente capaz de arruinar a humanidade. E aí minha grande curiosidade é se vamos ser capazes de nos coordenarmos e empreender os esforços necessários à sobrevivência da nossa espécie ou se imediatismos financeiros e barreiras culturais vão prevalecer e viabilizar o fim da espécie. Em dias como hoje a perspectiva não é das melhores.

sábado, 9 de setembro de 2017

Meu primeiro livro

Ele me entregou um livro. Era um roteiro de uma peça de teatro. Ele havia escrito a peça. Ele havia dirigido a peça. E ele tinha ali um livro impresso. Editado. E, ainda assim, pediu para que eu fosse discreto.
"Não comenta aqui com o pessoal não. Sabe como é, não é? As pessoas não vêm bem essa coisa de arte. Eu nem trago meu livro pra cá. Quanto mais dar às pessoas. Mas esse eu trouxe pra você porque vi que você tem um gosto diferente. Normalmente as pessoas não vêm com bons olhos. Ficam perguntando quando vou aparecer na Globo. Como se essa fosse a definição do sucesso. As pessoas só conhecem isso. Mas tem muita vida no teatro. Tem sempre muita coisa legal acontecendo. É um universo bacana."
E como você conseguiu publicar seu primeiro livro?
"Eu tinha feito a peça. Aí uma vez eu falei com um cara que ouvi, numa conversa, que mexia com livros. Falei da peça e ele confirmou o nome, ficou curioso. Ele disse que já tinha assistido. Acredita nisso, cara? Ele já tinha visto a minha peça! Aí eu perguntei se ele sabia um jeito de conseguir o contato da editora. E ele falou que 'é claro que sei. A editora é do meu pai!'. E então ele pegou o texto e publicaram!"

Minha mãe chegou ao WhatsApp

Morar sozinho foi um desafio e uma conquista. Eu lavo as minhas roupas. Eu controlo o estoque de alimentação na geladeira. Eu decido quando é hora de varrer o quarto ou não. Mas mais do que isso tudo: eu gerencio meu tempo. Nada de ficar dando satisfações sobre horários a chegar ou sair.
-Mas já está saindo? Onde vai? E vestido assim?
Essa liberdade, contudo, parece estar ao menos parcialmente ameaçada.
Pelo WhatsApp.
Eu deveria ter dito para a minha mãe que, na internet, as mensagens demoram um dia para chegar. E que nem sempre chegam já que precisam percorrer milhares de quilômetros em servidores, subir até os satélites e descer de volta bem no meu celular. É claro que o processo é tão complicado que deve falhar em boa parte das vezes.
Não, não consegui inventar a história a tempo. E agora vou parar este texto por aqui porque minha mãe está preocupada: já tem uns dez minutos que ela perguntou como foi meu dia e eu ainda não respondi.
19:38: Oi filho, como foi seu dia?
19:39: Aqui foi tudo bem. Tinham umas frutas boas no mercado e vou fazer uma salada de fruta para sobremesa depois da janta, nham nham!
19:42: Ai, vi o protesto que teve na Paulista no Jornal, não vá passar por lá hein? Fica longe dessas confusões....
19:45: Filho? Cadê você que não responde? Tá tudo bem?
19:46: Filho! Não fala mais comigo? Ai meu Deus... tá tudo bem?
Não, não tá.

sexta-feira, 8 de setembro de 2017

Porta da esperança

Eu só queria esvaziar os oceanos para todos descermos de nossas ilhas e nos juntarmos em um grande festão!

Comparações

-Cara, sabe o que meu namorado falou pra mim? Falou "ei, eu não quero ser comparado com seu ex!". É uma situação complicada, porque aí se eu for completamente sincera vai parecer que o estou deliberadamente ofendendo. Mas a resposta é... é claro que eu comparo! Querendo ou não. Comparamos as pessoas o tempo todo. Esse discurso de "não comparar" é uma amenidade mentirosa da linguagem. É claro que eu vou reparar se ele for mais engraçado que meu ex, se for menos trabalhador que meu pai, se for mais bonito que minha paixãozinha do colégio. Não importa. O importante é que não se trata de um "super-trunfo" dos relacionamentos. Mesmo que ele perca em alguns quesitos nessas comparações eu sei que, hoje, escolho ficar com ele. Ele precisa de maturidade para entender isso. Para entender que, independentemente do resultado das comparações, estar ou não com ele é uma questão de escolha minha. E que se ele se desesperar demais com isso, em não querer parecer inferior a quem quer que seja, ironicamente só vai conseguir é perder pontos.
-Concordo amiga, concordo.

quinta-feira, 7 de setembro de 2017

Grilhões alfabéticos

Tem dias que não se imaginam coisas. Sento para escrever e penso na hora que eu acordei, no que comi, no que vi no supermercado, nos preços. Penso, enfim, em tudo aquilo que não deve pensar quem quer escrever. Onde está o personagem imaginário com uma vida fantástica, vivendo um conflito interessantíssimo, interagindo com pessoas curiosas, suspeitas, inusitadas? Nem ele veio visitar minha imaginação hoje. Tudo o que eu tenho a narrar hoje é extremamente concreto. As três amigas da mesa da frente, a moça da mesa do lado tomando copos e copos de cerveja à espera de alguém que não chega nunca. Meu celular vibrando sobre a mesa enquanto a bateira acaba e as novidades se acumulam. Novidades de WhatsApp... amigos se zoando, memes sobre política, fotos de pornografia barata e piadas idiotas. Aquela mensagem que eu espero mesmo, aquela saudade profunda, essa segue como meus textos, como minha própria mensagem que hesito em escrever: profundo silêncio.

Silêncio

A palavra "silêncio" lembra diversas coisas. Um cartaz no corredor de um hospital. Um ambiente de meditação. Mas também pode lembrar algo mais autoritário. Mais impositivo. Um professor aos berros com seus alunos. "Silêncio!!", grita estridentemente o professor sem se dar conta dessa profunda contradição. O silêncio é um pedido de atenção. Parem de se distrair aí entre vocês e prestem atenção em mim. É isso o que o professor quer.
Mas agora que dou aula há alguns meses e começo a observar minhas falhas, vejo que a palavra "silêncio" ainda guarda mais segredos. Ela funciona também na outra direção. Uma das minhas grandes falhas nestas primeiras aulas foi a de falar demais. Há um momento em que os alunos devem pensar. Cada aluno deve se concentrar em seu exercício e explorar, sozinho, o alcance das próprias convicções.
É preciso silêncio por parte do professor. Silêncio para que, desta vez, cada aluno possa ouvir a si próprio.

Triste

Ontem ouvi um discurso de ódio. Nojo de nordestinos. E, lá nos EUA, não é por falar não... mas onde tem preto e latino é tudo pior...
Como eu me sinto ouvindo essas aberrações?
Fico profundamente triste com o alcance da ignorância neste país. Tínhamos que colocar mais e mais aulas de filosofia, sociologia e antropologia nas escolas.
E, cada vez mais, entendo o benefício de nos misturarmos mais e mais entre nós. Seres humanos, ao invés de ficarmos de nariz enfiado no ninho, sem enxergar mais de cinco metros para além dos muros.
Tentei argumentar uma coisa ou outra. Mas, confesso, voltei para casa fisicamente ferido. Dormi como se houvesse apanhado. Até me surpreendi. Não imaginava que me afetaria tanto. Mas a ofensa saiu do campo abstrato, teórico. Entendo que inventores de quintal não consigam compreender a segunda lei da termodinâmica e acreditem piamente em mentirinhas maldosas do YouTube. Suporto até a ignorância política que entregou nosso país a terroristas que estão implodindo o futuro dessa nação a uma velocidade impressionante. Faz parte do processo político, entendo. Um preço da nossa ignorância. Mas quando essa estupidez atinge a esfera humana em si, o puro e simples desprezo pelo outro, uma superioridade deturpada de realismo fatalista, então sinto-me habitando o planeta errado.

quarta-feira, 6 de setembro de 2017

Prova

É o dia decisivo. Será que eu já estudei tudo o que precisava? Acho que o professor não vai querer me ferrar. Ele precisa que os alunos passem. Se não a casa cai pra ele, né? Eu quero aprender essa matéria, mas não dá tempo de estudar. E tem cálculos no meio. Daí falta tempo para estudar. O curso é bom, mas é muito puxado. Num dia tenho que ir fazer compras. No outro tenho que ir buscar o carro na oficina. Depois teve o dia que o meu filhinho caiu e quebrou os dentes da frente. Ainda bem que são dentes de leite, mas o moleque estava chorando feito um condenado. Aí você acha que eu vou chegar em casa e pegar a apostila? Que tipo de pai eu sou?

É o dia decisivo. Eu sei que ele teve muitas dificuldades. Não é fácil estudar depois de adulto. São muitas outras responsabilidades. O maior desafio é o tempo. Sempre o tempo. Mas algo ele deve ter aprendido. Teve os exercícios que a gente fez em sala de aula. Ele vai lembrar, sei que vai. Eu corrigi várias vezes com ele. Expliquei diversas vezes. Depois das minhas explicações eu fazia ele repetir as frases decisivas, em voz alta, para fixar da melhor forma possível.

E de repente estão lá. Na mesma sala. Frente a frente. Ambos ansiosos, cada um ao seu modo. É praticamente uma roleta russa.

terça-feira, 5 de setembro de 2017

Para o futuro

Vejo o jovem de hoje e vejo o que as escolas estão fazendo. As escolas são instituições de atrofismo mental. Essa gente não fala. Não se expressa. Não é desafiada a ter uma opinião e então defendê-la. É preciso mudar o funcionamento das instituições de ensino. É preciso pensar na formação de pessoas com uma postura ativa sobre o mundo ao redor.

Jornal da manhã

Bom dia, a crise está piorando.

Bom dia, o dólar subiu novamente.

Bom dia, policiais matam bandidos e pessoas que passavam na calçada.

Bom dia, água está acabando na metrópole, mas cientistas encontraram um pouco... em Marte.

Bom dia, o poder de compra dos trabalhadores diminuiu.

Bom dia, o salário dos ministros aumentou.

Bom dia, casos de AIDS voltam a aumentar.

Bom dia, mais uma vítima de preconceito racial denuncia abusos.

Bom dia, casal gay queria adotar uma criança mas religiosos protestam contra.

Bom dia, congestionamento já ultrapassa 600 quilômetros nessa manhã.

Bom dia, paulistanos protestam contra o uso da bicicleta.

Bom dia, motociclista morre ao ser atingido por veículo em alta velocidade.

Bom dia, motoristas protestam contra excesso de radares nas avenidas.

Bom dia.

segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Eu não te amo

Lembro quando a olhei nos olhos e disse "eu não te amo". Ela havia acabado de se declarar a mim. Eu já tinha dúvidas sobre nosso relacionamento. Já sentia que não tínhamos futuro juntos. Estávamos em momentos diferentes da vida. Estávamos com sonhos diferentes na cabeça. Mas doeu. Doeu muito. Em mim. Foi um sentimento horrível. Como se de repente eu houvesse deixado de ser um ser humano. Como se eu houvesse abandonado qualquer esperança de ter uma boa imagem comigo mesmo. E, ainda assim, acho que fiz o que devia ter sido feito.

Porque olha só a situação agora. Terminei um outro namoro. Mas ela não me esquece. E eu não queria que ela ficasse sofrendo. Situação clássica, não é? Mas o que é que eu vou fazer?

Deveria ir até lá apenas para dizer a ela "eu não te amo"?

Ao menos da primeira vez, foi no meio de uma conversa. Não exigiu ir até lá só para violentar as emoções alheias.

Odeio esses problemas.

Sonho

Uma viagem de trem pelas serras gaúchas. Ou um voo para a Europa. Ou algo mais simples mas fora de nossa rotina tradicional: alguns dias de folga em alguma chácara no interior de São Paulo. Não importam os detalhes, o que importa mesmo é este sonho de fazer uma viagem com a família toda.

Será que funcionaria? Há muitas coisas que podem dar errado.

Minha mãe vai discutir com minha tia. Meu tio vai beber mais do que deveria e vai ficar impaciente. Meus sobrinhos arranjarão alguma ocupação isolada, no mundo deles, e não vão participar dos nossos momentos juntos tal como imagino.

Mas, tudo considerado, não é sempre assim por aqui também quando estamos juntos? E, por algum estranho milagre do fenômeno "família", não é ainda assim... bom?

domingo, 3 de setembro de 2017

Idiotas funcionais

Existe o analfabeto funcional. Já falaram muito dele, coitado. Mas existe essa outra categoria a que vamos chamar de idiota funcional. Aqui é claro que a palavra funcional é empregada em um sentido diverso. Em "analfabeto funcional" o termo funciona para especificar que nos referimos àqueles que são analfabetos em efeito, na prática. Já em "idiota funcional" me refiro pura e simplesmente ao idiota "que funciona", incansavelmente ostentando suas idiotices por aí.

O idiota funcional muitas vezes tem uma família abastada. Mora bem. Aqueles apartamentos que tem entrada social, entrada de serviço e entrada para os serviçais dos que usam a entrada de serviço. O idiota funcional teve uma infância movimentada. Correu de kart. Viajou pela Europa. Esquiou em neve de verdade. O idiota funcional tem um grande guarda roupa.

O idiota funcional tem perfumes. Nada contra homens se perfumarem também. A questão aqui é a fartura, o exagero. Só o que um idiota funcional típico tem de perfumes no banheiro daria para pagar todas as minhas contas no ano.

Mas não importa o quão rico o idiota funcional seja. Ele é, antes de tudo, isso: um idiota. Não é capaz de entender um simples parágrafo. Não por alguma questão de autismo ou outro viés biológico. É só falta de prática mesmo. Falta de interesse. Não é capaz de expressar o que está pensando. E aqui eu não sei dizer se é o caso de falta de prática na expressão ou diretamente no ato de pensar. Temo pela segunda opção.

Sou egocêntrico?

-Eu acho que eu sou egocêntrico.
-Mas por quê?
-Muita reflexão em torno de mim mesmo. Acho que falta olhar para fora.
-Mas olhar para si é importante. Primeiro, você precisa saber se priorizar. Por mais bondosos que sejamos não podemos cuidar primeiro dos outros e depois de nós mesmos. Não o tempo todo.
-Ok, mas e em um nível existencial? Nas minhas reflexões, nos meus pensamentos... Estou preocupado com a minha vida. Com as minhas curiosidades. Com a minha visão de mundo. E os outros? Às vezes eu fico tão existencialmente distante dos outros que, de repente, fico chocado ao verificar o grau de ignorância ou certas diferenças que existem com as outras pessoas. Coisas que eu acho serem comuns na verdade não o são. Mas eu demoro para perceber porque estou por demais centrado em mim mesmo.
-Mas qual o maior problema disso?
-É o isolamento mesmo. Não no sentido de tristeza mas sim no sentido de distanciamento da verdade. Acho que tenho visões por demais otimistas com relação ao mundo e às pessoas pura e simplesmente porque sou pouco exposto a elas. Não sei se meu otimismo sobreviveria a um contato mais próximo.
-É, talvez você seja egocêntrico...
-Pois é... Eu tenho um senso de superioridade e uma tendência a subestimar minhas diferenças com relação às outras pessoas, não é?
-Não é só isso...
-O que mais, então?
-Não consegue nem mesmo conversar com os outros sobre isso. No máximo no máximo, fica aí trancado em um quarto, sozinho, escrevendo um diálogo consigo mesmo.

sábado, 2 de setembro de 2017

Mortes

Dei aula para ele. Não era meu aluno. Mas era a última aula do curso e substituí o professor previsto. Era muito gente boa. Um cara simpático. Sorridente. Falante. Curioso. Educado. Não se colocava na posição de "cliente mandão". Foi uma boa aula. Saí de lá contente. Contente por colaborar com o futuro das pessoas. Das pessoas boas.

Três dias depois, a notícia: estava morto. Acidente. Li na internet. Não podia acreditar. Acessei o sistema da escola e confirmei o nome. Sobrenome. Era ele.

-.-

Vou vender minha moto. Quase morri. Mas quase... Não quero tentar a sorte de novo. Ela foi do acidente direto para a autorizada. Depois de meses de enrolação, finalmente a notícia: está pronta. Como ali era oficina e concessionária, resolvi ver se eles mesmos comprariam a moto. Compram sim! Mas ofereceram um valor muito baixo... Até compensaria perder um pouco de dinheiro pela praticidade... a moto está em outra cidade. Ao invés de buscá-la, eu poderia já fechar negócio com a moto lá mesmo. Mas... e se a diferença fosse muito grande? Perder um pouco de dinheiro, tudo bem. Muito, não! Resolvi ligar para a oficina aqui ao lado de casa, onde eu sempre levava a moto. Lá vez ou outra eles divulgam uma moto a venda e certamente estão por dentro dos preços. Telefonei.
- Alô? Por gentileza, o Salvatore?
- Faz tempo que você não vem aqui, não é?
- Sim... por que?
- O Salvatore faleceu... tem três meses.
Eu sempre conversava com ele. Tenho a impressão de que ele tinha alguma amizade por mim também. Afinal minha humilde moto de motoboy ficava deslocada ali naquela oficina cheia de gigantes Harley Davidson e BMW's.

-.-

Há alguns anos fui para o Rio de Janeiro. Passei o ano novo lá. Um amigo meu iria viajar com a namorada e me chamou para ir junto. Ficamos no apartamento do tio dele. Conheci a família toda. Gente muito acolhedora, simpática. O filho mais velho, pouco tempo depois, foi estudar na França. Orgulho da família. Hoje, no Facebook, comecei a ler uma mensagem emocionada deste filho. Falava do pai. Imaginei por um instante que fosse alguma mensagem de aniversário, ou de saudade, ou celebrando alguma conquista.. Mas logo entendi. O pai havia falecido. Câncer no estômago. O levou em cerca de um mês depois de descoberta a doença.

Bebês que já tiram selfie

A natureza é sábia. Em cada época e em cada ambiente as criaturas se adaptam às circunstâncias. Quando não havia terra não haviam patas. Quando não havia luz, não haviam olhos. Quando só saltar longe dá esperança de sobrevivência eis que surgem asas. Não há, portanto, porque estranharmos essa profusão de tendências no mundo digital. Bebês que já nascem tirando selfie. Há milhões de anos a atmosfera se poluiu de oxigênio excessivamente e todas as bactérias que prosperavam em uma atmosfera pobre deste gás tiveram que dar espaço à aquelas que o processavam. Hoje aqueles que não se adaptam à cultura de clicks e likes estão fadados a se fossilizar na história.

sexta-feira, 1 de setembro de 2017

Amiga terapeuta

É claro que um terapeuta é um profissional, que dedicou centenas, milhares de horas de estudos para conhecer os segredos da psique humana e os diversos casos que pode encontrar. Mas, ainda assim, tenho uma teoria. As terapias se instalaram na sociedade moderna, em boa parte, devido à fragmentação nas relações familiares e nas amizades.

Eu mesmo deixei de precisar de terapia quando voltei a recorrer às minhas amizades. Bar. Conversas. Falar da vida. Ouvir opiniões sinceras. Críticas. Sugestões honestas.

Com uma estrutura de vida que permita amizades terapêuticas, as terapias de consultório tornam-se dispensáveis.