segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Foi assim

- Finalmente eu fui conhecê-la!

- É mesmo? Não acredito! E aí?

- Ela é linda, linda! E tão, tão... tão interessante!

- E o que aconteceu, me conta!

- Então, conversamos pouco, eu estava tímido, sabe, sei lá, leve, por um lado, e tímido por outro; duas coisas que deixam a gente quieto.

- Ué, então não conversaram muito?

- Na verdade não, porque ela tinha que trabalhar. Mas rascunhamos algumas perguntas sobre as nossas vidas, nos olhamos...

- E depois?

- Depois os anos se passaram, cada um vivendo sua vida no seu canto. Depois um morreu. Depois morreu o outro.

domingo, 29 de setembro de 2019

Impulsos

As pessoas oscilam entre impulsos irresistíveis e maremotos de inseguranças das mais terríveis. A Priscila mandou um e-mail pro cara, chamou ele pra sair, ele respondeu, disse que sim, e ela nunca mais escreveu pra ele. E ela fica triste que ele não escreve um e-mail pra ela. E nada no mundo vai convencer a Pri a escrever. E eu fico pensando, aqui, se o tal cara também não está lá, só esperando uma resposta dela, e pensando "droga, acho que ela desencanou". Essa coisa de "talvez" é uma areia movediça que traga as pessoas pra suas masmorras internas, tranca o cadeado e joga a chave longe.

sábado, 28 de setembro de 2019

Amanhã

Amanhã eu vou ligar pra você
E vamos conversar coisas leves
Vamos rir saudades de histórias simples
Que em nossas distrações brotam um mundo
Um mundo verde e sereno e morno
Um mundo que a gente gosta de viver
E vamos ser de verdade
Essas coisas que a gente fica sonhando
E vamos ser agora
Essas coisas que se deixam por descaso no futuro
Sempre no futuro
Pensando bem,
É agonia
É agonia, que eu não aguento
Que eu não aguento você ter passado a vida no meu futuro
Sempre no futuro
Sai do meu futuro e me vem de presente
E me xingue por perder tempo com trocadilhos tão estúpidos
De uma estupidez que é do tamanho da minha agonia
Do meu nó no estômago
Do meu nó nas tripas, nos dedos, nos braços, do meu nó nos sonhos, nas pernas, no nariz...
Amanhã vou ligar pra você,
E não vou falar nada disso
Vou falar de coisas simples
Das pequenezas do cotidiano
Porque em nenhuma outra conversa
Farei tanto de tão pouco

sexta-feira, 27 de setembro de 2019

Crônica de uma leitura

Leio as letras dela
Palavras bem escolhidas
Sintaxe lapidada
Vírgulas lixadas e bem aparadas
Tudo medido, adequado, próprio
Tão natural
Leio as palavras dela
E como meus olhos que sabem das palavras
Sem que se dêem conta de só ver letras
Sinto que posso tocar seu rosto
Ainda que realmente não o toque
E que tenho pra mim seus olhos
Ainda que realmente não o tenha
Minha alma, embora minha não seja.

quinta-feira, 26 de setembro de 2019

Adoniran

As palavras têm rosto
Claro que têm
Um rosto diferente do meu
E que eu não sei se é mais bonito
E que não sei se é mais feio
E ainda assim, de certa forma
É um rosto que também é meu
E quando me olham nos olhos
Esses outros olhos
Por vezes gostam
Por vezes não
E se me gostam nos meus olhos
Meus olhos mesmo
Se me gostam ou não
É coisa que, com aquela,
Não guarda relação

Angra

Ficamos os dois ali, à beira da vida, deixando tudo passar. Abraçados, quentes. Te sorri três futuros e você me olhou: um presente.

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

sCRAP

As pessoas deletam scraps no Orkut. Mas essas mesmas pessoas são incapazes de compreender scraps encontrados nos perfis de outras pessoas, e aí causam confusões que motivam essas outras pessoas a deletarem seus scraps.

Ao julgar os outros, mentimos a nós mesmos sobre quem somos.

[SIM, isso foi escrito há milênios... pensei em adaptar para a termilogogia atual, facebookiana, mas que se evidencie aqui a coerência dos meus cabelos já esbranquiçarem].

Papéis

Às vezes escrevo pra ser mais eu mesmo. Pra deixar nas palavrinhas, fixadas nas suas formas, minhas deformações interiores. Pra eu ver na minha frente, num texto visível, existente, as coisas que sou.

Às vezes escrevo porque não quero ser eu. Não quero ser quem sou. Escrevo para ser outra coisa. Para ser coisas que imagino. Para ver o que consigo imaginar. Para ver se invento um outro passado e penso em outras coisas. Pra ouvir outras vozes. Pra me ver em outros lugares.

Fuga?

Sonhos?

Anseios?

Ou só o prazer inexplicável da imaginação?

terça-feira, 24 de setembro de 2019

Hoje

E se ela não gostou de mim, teve qualquer impressão ruim? E se ela não ligar mais? E se, aos olhos dela, eu for uma pessoa descartável demais? E se eu descobrir que meu mundo imaginário é assim tão maior que eu, que só de longe agrado? E se eu fiz perguntas demais, fui invasivo demais? E se fui tímido demais, fiquei longe demais, ri pouco, não cheguei perto o suficiente para mostrar uma desinibição mais invejável? E se essa agonia não acabar nunca mais?

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Primeira lei da termodinâmica

É uma troca justa: quando a vida acontece, a arte espera. E vice-versa.

domingo, 22 de setembro de 2019

Urgente

Depois de tantos anos fazendo tantas coisas, descobri: ainda não nasci. Qualquer dia desses, precisarei dar conta dessa pendência. Não muito não. Um sonho, um jeito, e um desespero inconsequente de ser eu mesmo.

sábado, 21 de setembro de 2019

Estúdio

Ele chegou cedo. Ficou sentado num canto, do lado da mesa de som, de frente para o palco. Pessoas foram chegando. Em casais, em grupos. Ele olhando. Batucando na perna, na bota, e olhando. E a banda seguia tocando músicas e mais músicas. As pessoas ouviam, dançavam, olhavam, se beijavam, se conversavam, se misturavam. E ele ali, olhando. Ansioso, o tempo não passava nunca. Desesperado, o tempo passava rápido demais.

sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Frio

Se um dia eu comprar uma puta, vai ser no inverno. No frio as putas, mais vestidas, são muito mais mulheres.

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Da diretoria

A competência atribuída é sempre função da posição institucional. Não significa que você está condenado a ser para sempre subjugado, caso tenha grandes competências ainda carentes de oportunidade de manifestação. Significa que você deve, também, cultivar a capacidade de ascensão institucional. A grande injustiça é que essa última capacidade, sozinha, dá conta de elevar uma pessoa até os mais altos postos, não importando o quanto lhe falte das outras habilidades.

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Ouvi ontem no ônibus

- Maaalandro... liga só, que ontem tive uma idéia hiper. Tava pensando sobre nossa aula de literatura, daí li umas matérias de física bizarra na Superinteressante. Aí pensei: o amor é o sexto estado da matéria, e tem massa zero!

- Massa zero, o amor?

- É!

- Você nunca viu minha namorada, não é?

- !

terça-feira, 17 de setembro de 2019

Paradoxo

Por que é que dizer a um louco que ele é louco só aumenta sua loucura, se a informação é a mais pura tradução da verdade?

Deve ser isso: se tem uma coisa que perturba a pacífica instalação da sanidade, é a verdade!

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Lá em SW-56732LLBTY

Os Tzworgs manobravam rapidamente pelo céu. Canhões a laser combatiam, inutilmente. Disparavam no vazio. Tão inútil que era mais um protesto que um contra-ataque. Tão inútil que era patético.

Mas os Mutiks poderiam deixar que eles tomassem a superfície. Era o subsolo o reino secreto. No subsolo vivia mais de noventa por cento dos mutikianos. Lá estavam as industrias de reprodução genética, as escolas, os centros de treinamento de guerra, as indústrias de construções, de máquinas, de naves. Foi graças ao subsolo que os mutikianos dominaram metade da galáxia.

E disso os Tzorgs, desgravadores rústicos que eram, não tinham idéia. Com eles era destruir, ocupar, se apoderar e só. Vitória na certa, sem muita conversa. Sem lenga-lenga. Assim acreditavam estar tomando mais um planeta, e prestes a possuir a maior pérola deste cantinho do universo.

Os Mutiks deixaram que toda a superfície fosse destruída. Esperaram que o último Tzorg pousasse sobre a maré de corpos e destroços, comemorando. E os engoliram para sempre.

domingo, 15 de setembro de 2019

Mãe

Ela cuida da cozinha, mas deixa que a cozinha a agrida. Ela suspira, ela bufa. Movimentos rápidos, gestos descoordenados de uma felicidade forçada que não engana ninguém. Panelas, pedaços de frango, o gás, fósforos. E ela bufa, olhar pesado, reclama duas frases soltas ao ar, entremeadas de um "não quero reclamar, não estou reclamando", que jamais conseguirão mentir o que querem. Ela se pôs embaixo da própria vida e deixou-se esmagar. E de repente ela canta, uma música alegre, mimetiza alguma espécie de passo dançante enquanto transita a bandeja da pia à mesa. Tiras de carne queimadas pela mesma desatenção e descapricho que ela tem consigo mesma. E ela cantarola algum "tchu-ru-ru" em ritmo de juventudo beatle-maníaca. É assim no hospício: a ausência completa de coerência ou continuidade entre humores e atos. Ela está louca. Não consegue ser quem quer. Não quer ser quem é.

sábado, 14 de setembro de 2019

Escovando os dentes de manhã

Eu queria ser o Alberto Caeiro. Mas que coisa é essa de querer ser alguém? Eu sou quem sou, e apenas isso. E serei mais quanto menos pensar em ser. Querer ser qualquer coisa é uma espécie de doença do pensamento, que se distrai de perceber que, o mundo completo que é, já nos tem sendo o que se é.

sexta-feira, 13 de setembro de 2019

Pergunta

O Clube Militar no Rio de Janeiro comemorou o golpe militar.

E daí?

Há os que comemoram a ascensão de Hitler.

Há os que comemoram o ataque ao World Trade Center.

Há os que comemoram uma grande final de futebol.

Há os que comemoram a saúde.

Há os que comemoram a indenização.

Há os que comemoram o pôr-do-sol.

Há os que comemoram sem pensar.

Há os que comemoram os sofrimentos.

Há os que comemoram os sorrisos.

Cada um no seu canto.

Não acredito em juízo final. E nem vou acreditar, ao menos enquanto não me disserem quando raios foi o dia do juízo inicial...

quinta-feira, 12 de setembro de 2019

Escada

Eu ia escrever de amor agora. Eu ia escrever de solidão. Ou de alegria, quem sabe? é tão bom escrever sobre alegria, e escrever com alegria. Altivo, animado, inteligente e ainda por cima-bem humorado: o certificado indubitável que grita com o silêncio nobre das letras: "sou uma boa pessoa".

Dane-se. Acho que só gosto de ficar batendo nas teclas. Do barulho que faz. Que mal há? Precisa ter um tema?

Temas há tantos, tantos tantos tantos!

Mas quando a gente escolhe um tema e escreve e escreve sobre ele, escrevendo bem ou escrevendo mal virão muitos a ponderar, avaliar, comparar.

Que é o jeito errado de viver boa parte das coisas da vida.

Comparem os cálculos estruturais da viga da ponte gigante, que desses aí, os errados são assassinos, que a natureza não perdoará.

Mas quanto aos lirismos da alma vomitados em letras quaisquer, não, não há comparação possível, pois sua realidade se define em si.

Na escada suja da Estação da Luz, empoeirada, mal acabada, uns mendigos no chão, cantando felizes uns funks quaisquer, jogados na calçada, cobertores rasgados que afugentariam o frio mais por dissuasão psicológica do que por qualquer isolamento físico. Riam, riam e se riam.

No divã de estofamento aveludado a loira pastificada, siliconada e botoxada (leia "botochada" mesmo, pra ficar mais debochado), ia lá falando das mazelas da vida.

A bolsa do doutorado não saía. Ônibus lotados todos os dias. Ninguém respeitando a privacidade espacial seu corpo feminino: homens se apertando contra sua pequena estatura com a desculpa inegável da coletividade sobrecarregada daquela indecência administrativa. Baixinha, miúda, ia indo. O filho em casa, pequeno. Os pais dela ajudando ainda. E o pai do menino sumiu. Não deu certo, paciência. E ria, e ria com a criança, e contava histórias. E passava o dia no laboratório, escrevendo, lendo, tubos de ensaio, microscópio, egocentrismo da orientadora, exigências idiotas da FAPESP, burocracias fossilizadas da universidade. E conversava rindo, que o Hubble não daria conta de medir a beleza dos seus sorrisos.

Tem todos os temas ao mesmo tempo, mesmo quando a gente não escreve nada demais, nada específico. Tem todos os temas dentro da gente. O leitor que só vê palavras, desculpem ser politicamente incorreto: é um fraco, um idiota, um limitado. É alguém a quem nada mais resta fazer a não ser comparar com outros, a não ser esconder-se atrás de uma pretensa cultura para negar a fraqueza de sua introspecção.

O bom leitor encontra-se com o autor através do tempo. Transcende, entende. Entende que tantas e tantas diferentes expressões nascem das mesmas perturbações da alma.

E você não se engana, não: já mais de dois temas se vão discutindo aqui, sem conexão aparente.

Que a confusão da alma também é um tema em si, não é?

quarta-feira, 11 de setembro de 2019

Janela

Talvez eu seja promovido.
Talvez eu arrume um emprego melhor.
Talvez eu me torne um aluno melhor.
Talvez eu mude de casa.
Talvez eu seja despejado.
Talvez eu seja cantor.
Talvez eu conheça o amor da minha vida.
Talvez eu ganhe na loteria.
Talvez eu vire presidente do mundo.
Talvez eu tenha super-poderes.
Talvez a Lua exploda
Talvez a gente é de mentira
Talvez Deus exista
Talvez eu seja famoso
Talvez eu seja pobre
Talvez eu morra
Talvez eu seja poeta
Talvez eu já tenha morrido
Talvez eu mergulhe
Talvez eu seja um imperador
Talvez eu seja um rei
Talvez seja doente
Talvez eu seja imortal
E nesta tal vez,
Que seja qual for,
Que falta você me faz!

terça-feira, 10 de setembro de 2019

M

Você, com seus costumeiros sorrisos esbanjados e olhares admirados e admiráveis, contando feliz...

Contando que ele é um cara tão inteligente, viajado, conhece o mundo inteiro...

E eu, introspectivo, pensando: "é, eu só te amo..."

Você contando que ele é engraçado, um humor refinadíssimo, foi super divertido jantar com ele outro dia...

E eu, olhando pro alto meio de canto, pensando "é, eu só te amo".

Você contando que ele pagou a conta, que só sua parte passou fácil dos oitenta reais, mas nem sabe precisar quanto, ele não deixou que você visse...

E eu meditando sobre a leveza etérea da minha algibeira: "é, eu só te amo".

Você contando como era repulsiva às primeiras investidas dele. Ele namorava, que coisa horrível! Mas declarava todo amor a você, terminou o namoro. Insistiu, te contrariou, brigou. E você começou a considerar ceder, toda encantada.

Eu, mergulhado na estranheza desumana de tanto respeito que lhe tenho, considero: "é, eu só te amo".

Eu te amo, é só. Vá, viva e seja feliz. Vá!

segunda-feira, 9 de setembro de 2019

Leitor

- Viu lá o que ela fez?

- Vi!

- E aí?

- Cara, sério... Sou incapaz de acompanhar. Incapaz.

- Caramba, é tudo isso?

- É sim!

- Qualidade mesmo?

- Qualidade? Você tem que ver como ela escreve sobre as coisas, não dá pra acompanhar, não tem como!

- Tá, mas o que quer dizer com isso? Que ela te fez desistir de escrever? Que vai tentar superá-la?

- Que estou tão feliz que ela exista!

Quarto

Pessoas que somem. Que não têm tempo. Que não tomam iniciativa. Que não aparecem. Que não se manifestam.

Cansei.

domingo, 8 de setembro de 2019

Juízos

Espero nunca escrever textos bons. Também espero nunca escrever textos ruins. Espero, mas não me perco em esperanças, que não prestam a nada.

O que é escrito é o que foi escrito, e é esse seu mérito. Não pela palavra, não pela sintaxe. Mas por ter sido escrita. Por ter sido sentida e pensada.

E que importa o que farão com ela depois? E que importa que eu a tenha escrito? Importar, nada importa, que é onde as coisas se igualam, e não podem ser mais belas ou mais rústicas que nada.

Quem aprecia os méritos relativos antes de apreciar as coisas deixa de apreciar as coisas. Por que as coisas não têm em si subjacentes nenhum mérito relativo. As coisas têm nelas as coisas que são.

sábado, 7 de setembro de 2019

Lídia

Era bela a donzela
Mas tanto sorria
Que mal comia
Era leve e magrela

Era doce o toque
Tremia a espinha
E o ânimo que vinha
Chegava ao Oiapoque

Um beijo lhe dei
Malandro, sorrateiro
Não foi cheque nem dinheiro
Um sonho lhe roubei

Modéstia egocêntrica

Me orbito
Me gravito
Se distrair
Me óbito
Nem vi
Me sinto
Me sirvo
Se distrair
Me sento
E olho
E nem vi

sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Termo

Trinta átomos numa caixinha. Eles andando à vontade por aí, existem várias combinações possíveis. Existem muito mais cenários possíveis em que os átomos estão mais ou menos igualmente distribuídos pela caixinha, do que todos concentrados num cantinho. Daí que o estado dos átomos todos num cantinho é uma espécie de estado de alta energia. Difícil de se conseguir, dispendioso, e capaz de realizar trabalho. E, mais que isso: impossível de se encontrar na natureza.

As expressões de humor são como um fluxo de átomos de constituição humana. E eis que há muito mais cenários possíveis em que os átomos agrupam-se de qualquer modo pela caixa toda, do mal humor ao bom humor, passando indiferentes pela média. Difícil encontrar todos ali no cantinho do bom humor.

O bom humor não é natural. É uma espécie de geladeira a consumir energia e a contrariar as imposições da natureza, conservando o Humano saudável e aumentando seu prazo de validade.

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

Putas do Paissandú

Outro dia eu estava voltando do serviço, passando lá pelo Largo do Paissandú por volta das seis e pouco da tarde.

- Psssiu!

- Pisssssiiiiiiiiu!

As putas todas clamando por clientes. Sem grande egocentrismo, acho que elas me chamam com mais insistência, por eu ser assim algo novinho. Antes eu, novo e limpo, que um velho tosco e etranho querendo torrar a aposentadoria falando "boneca" ao ouvido delas enquanto deixa cair a dentadura.

Pela enésima vez pensei: vou escrever sobre essas putas!

Eu já conheço a maioria de vista, somos quase íntimos. Nos olhamos nos olhos quase todas as tardes, antes de vir o brochante pissiiiu.

Um causo de um cliente inusitado.

Um drama existencial a retratar a condição em que elas vivem.

Um grande amor impossível. Um ousado amor que, em meio aos promíscuos ossos do ofício ainda assim se fizesse possível.

Uma história de putas a quebrar expectativas: o foco de repente é o poddle que uma delas, Talita talvez, mantém no quarto de trabalho. É o xodó dela e ela expulsa qualquer cliente que se irritar com o animal.

Sim, sim, e talvez com algum apelo artístico mais elevado, tecendo algum paralelo entre a condição do cachorro e a da puta. Talvez com uma arte mais transgressiva, levando todos a conclusão final de que o único animal é o cliente e mais ninguém.

E por que não a linha comicista? Sei lá, as paredes do quarto são indiscretas, as putas compartilham os sons das colegas de trabalho, ouvem-se conversas, clientes descobrem tramas de outros clientes, segredos se revelam, a verdade se prostitui.

E eu nunca escrevo sobre as putas. Cruzo o Paissandú de um lado a outro. Vejo as saias curtíssimas dos dias frios e quase inexistentes dos dias quentes. Os olhares simpáticos e a expressão estranha, que o rosto nunca mente por completo. Os seios egocêntricos em seus despudores. Pisssiu! Pssssiu!

E vou me divertindo pensando em quantas e quantas histórias são possíveis. E qual o grau de ficção e verdade de cada uma. E, melhor: sai de graça!

quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Saudade

Um pouco de Sagatiba.

Eddie Daniels no clarinete, preenchendo o ambiente.

Morangos.

Leminski ecoando em meio a pensamentos imcompletos.

Uvas.

As fotos da festa, mentindo em sorrisos tantas agonias secretas.

Folhas de manjericão.

Caneta tinteiro e papel.

Uma gota de groselha.

Uma pitada de má caligrafia, pra descontrair.

Uma almofada no chão da sala.

Só falta você.


terça-feira, 3 de setembro de 2019

Prático

Pensar dói.
Amar dói.
Ser dói.
As contas doem, ô se doem!
Dormir não dói,
boa noite!

Olé

No começo eu achava graça. Criar um personagem fictício, um pseudônimo, pra poder escrever sem medo de ser feliz. Qualquer coisa que viesse à cabeça. Sem ter que ser bonitinho, correto, audaz, contundente ou engraçado. Na internet coloca-se qualquer coisa, e ninguém me pagaria por isso. Então tava valendo tudo, tudo!

Mas comecei a perder o controle. De início, ficou estranha a fronteira entre pseudônimo e heterônimo, o que deu um certo trabalho. Daí o heterônimo ganhou vida, começou a ficar meio independente e a fazer coisas por si mesmo.

Até aí tudo bem, acontece, vá lá...

Mas de indiferença passou a desobediência explícita, a competitividades.

O heterônimo que criei passou a ser mais sociável que eu. Pega mais mulher que eu. Escreve melhor que eu. Come melhor, é mais sadio e mais sarado, até sorri mais bonito.

Tô ficando velho.

Já ele, tem a idade que quiser!

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Desesperado

Morena linda, busto altivo,
quadril preciso, sorriso perfeito.

Mas onde está ela?

Olhos verdes, loira fatal.
Vestido fino, quase transparente.

Mas onde está ela?

Carinhosa, toque aveludado.
Mordida provocante.

Mas onde está ELA?

Tantas outras.
Tantas nenhumas...

domingo, 1 de setembro de 2019

Postura

Minha irmã é carente. Eu também sou carente pacas. Minha mãe é carente, sofre a solidão como uma criança curte o vídeo-game: se você tentar impedir, ela morde e esperneia. Tem uma diferença comigo. Eu corro atrás de gente. Fulano, cicrana, beltrano, ziltrana não falaram comigo, não ligaram, não responderam meus e-mails, não retornaram meus sms... Fodam-se! (não todos juntos, enfim, como bem quiserem, mas fodam-se, como bem entenderem). Procuro outras pessoas. Conhecidos-esquecidos ou estranhos-novidade. Tem tanta gente no mundo. Toda amizade, até amor, é tudo efêmero, não precisamos menosprezar a superficialidade de uma novíssima amizade de poucas horas. Tem tanta gente no mundo. Corro atrás de gente nova, diferente, de quem aparecer. Converso, falo, escuto. Proseamos. Sozinho fica mesmo quem quiser, só.