sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Das proporções

Às vezes é amor demais.

Às vezes é amor de menos.

Essas medidas são estranhas, bem estranhas.

Eu a amei por anos e anos a fio. Amei com o desespero de declarar todos os dias. Depois amei com a coragem suicida do segredo absoluto e eterno. E amei e amei, e os anos nos separararam, e amei e amei. Amei com o desespero de viver uma vida que me levasse embora desse pensamentos que, lá num canto, sozinhos, respiravam vivinhos vivinhos.

E voltamos a nos falar.

E ela me descobriu.

E ela me disse:

- É muito bom estar com você! Enquanto você estiver aí do meu lado, prometo também estar sempre perto!

Será que algum dia vou conseguir explicar pra alguém a revolta que senti? "enquanto você estiver aí do meu lado"... Enquanto o que se sente for do tamanho promíscuo das condicionais, vá à merda! Te amo de longe, sem te esquecer ainda que você me esqueça, e você não tem nada com isso. Me deixe te amar aqui, em paz...

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Materialista

Religion thus makes easy and felicitous what in any case is necessary.

Já faz muito tempo que William James, autor do clássico "The Varieties of Religious Experience" escreveu a frase acima. Não sou profundo conhecedor de suas reflexões. No caos da minha vagabundagem, aliás, não sou profundo conhecedor de nada. O que não me priva do prazer de alguns pensamentos!

Parece que as reflexões de James vão pouco a pouco acentuando o contraste entre a experiência "religiosa" e o restante das atividades humanas, até revelarem facetas do sentimento de transcendência que, embora possam ser atribuídos única e exclusivamente a fenômenos fisiológicos, são ainda assim importantíssimos para o desempenho da máquina-ser-humano como um todo.

Entender as razões que levam à rápida disseminação da fé é entender mais e mais as emoções humanas, nossas carências, nossos dispositivos inatos e sua relação com o ambiente (seja esse ambiente natural ou social). É entender os limites do nosso auto-controle. É entender o quão limitada é a razão no mando de seu próprio substrato.

O poder da coerência do discurso é assombrosamente maior que o poder da razão... Preferimos descrições coerentes de algo prazeroso ainda que falso a evidências fortes de algo constrangedor ou sem apêlo emocional.

E por fim, não que tenha algo muito diretamente a ver com o post, mas pra distrair... ele... Calvin!

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

Esse sumiço todo

Às vezes eu morro.
Mas nunca é pra sempre.

terça-feira, 21 de outubro de 2008

Teorema

As pessoas em geral gostam mais da foto do que da paisagem.

terça-feira, 16 de setembro de 2008

Oroscopo del giorno

Di natura sei osservatore e analitico

sábado, 30 de agosto de 2008

Inquiry

Criei minha mente com cuidado, com muito sofrimento. Não era fácil, quando ela era pequena, encontrar tudo o que era necessário. Não fui um pai perfeito, mas fiz o melhor que pude, com sacrifício.

Mas minha mente cresceu, ganhou vida, e eu deveria me preparar para o momento em que ela partiria sozinha em direção do mundo. Assim é criar... Preparar-se para libertar.

Agora ganhou essa vida própria. Anda por aí vendo, olhando, fazendo perguntas... Todas as perguntas. As perguntas que não devem ser feitas. As perguntas erradas. Aí no meio saem as certas também. Mas são muitas perguntas. Muitas perguntas. As perguntas certas e as erradas, as erradas e as certas.

Mas ela é jovem ainda, acabou de sair no mundo. Não entende que há coisas que são. São e ponto. São e daí nada mais importa. São e estão feitas.

Vai aprender um dia, mas não agora, não mais de minhas mãos, de minha voz. Não escuta mais, agora, deslumbrada com esse mundo das perguntas todas por serem feitas. Há perguntas que não se visitam. E isso é mais que etiqueta, é prudência. Às vezes, não perguntar é até sabedoria.

Ahh, é o Tempo aí fazendo mais dos seus mistérios sempre prontos.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

Pensamento positivo

Há dias que acordo com essa sensação ruim. Vão correndo as horas, vai o Sol passeando pelo céu, e a coisa vai piorando.

Estou doente. Tenho pensamentos e não consigo escrevê-los. Tenho as conversas e não consigo escrevê-las. Tenho os sentimentos e -los. Estranho.

Não sei dizer se as palavras andam passando tão rápidas, tão novas e tão inéditas em minha mente que ainda não achei a velocidade de capturá-las, ou se elas simplesmente deixaram de passar. A primeira possibilidade me engrandece num instante a maior que eu mesmo. Logo, a segunda tem um quê de mais provável, sem deixar de lado o otimismo, é claro.

Alicerce

Acordei com uma certa sensação eufórica. Não entendi bem o que era. Revirei-me na cama, olhei para o teto, para o quarto iluminado pelo sol. Levantei-me, curioso... olhei janela afora e entendi: estava tudo resolvido. Finalmente, eu tinha uma vida sem mais problemas. Vi a cerca branca em volta da casa, devidamente pintada. Cachorros correndo no quintal e minha filha brincando com eles, ainda de pijama. Cena das mais tenras.

No trabalho, não havia mais preocupações. Meu chefe me tratava bem desde então. Nenhum problema com prazos, inimizades. No mundo, a poluição não acontecia mais. A pobreza ilustrava os livros e ocupava as escolas: tão abstrata quanto a matemática.

O mundo foi assim por dois dias. E então alastrou-se a peste. A depressão e a desmotivação disseminaram-se como um vírus mortal. Não se sabe ao certo a extensão dos prejuízos e das inatividades pois nem os estatísticos e os jornalistas, num primeiro momento, julgaram de algum valor contabilizar o que ocorria.

Acordei com uma certa sensação eufórica. Havia sido um sonho? Um sonho apenas? Aquele acordar era estranhamente melancólico e doce: saí do único mundo onde os sonhos máximos haviam uma única vez ao menos se realizado, mas senti-me como nunca necessário ao meu mundo, parte dele como se é parte do que se é um só. Meus filhos estavam brigando na sala porque o temperamento explosivo e inquieto do mais novo atrapalha profundamente todas as brincadeiras de minha mais velha. E minha esposa resmungava maldições a mim por estar em pleno sábado dormindo até tão tarde. Me fingi dormindo por mais três minutos digerindo aquelas esbravejações e então levantei, revigorado como nunca.

Colapso

O som era alto, o ambiente um tanto quanto tomado pela fumaça. A conversa ia caminhando por meandros estranhos, trazendo à tona tudo o que já era sabido de todos (quase todos), mas ainda assim produzindo um enorme constrangimento. De ambos os lados.

Ao constrangimento, reagiam: riam. Ridicularizavam o que eram constrangedor. Ignoravam o que mais lhes era próprio.

Beijaram-se, olharam-se nos olhos. Abraçaram-se. Sentiram uns aos outros.

Não houve amor. Houve apenas desse sentimento que chateia a saudade e que corrói a imaginação.

E estavam felizes: havia um pretexto para, naqueles instantes, não se pensar em felicidade.

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Surface

Há um não-eu que me persegue em todos os instantes, uma sombra da qual não me livro às custas de nada, nada nada nada. Essa aparência que produz o que quero sendo o que não quero.

Lógica corrompida que realiza feitos incríveis por caminhos inaceitáveis. Lugares inaceitáveis. Vou processar o destino por este humor impróprio.

Há este dançar inaceitável das coisas se colocando em lugares estranhos. E eu acho que nem quero mais escrever sobre isso. Dane-se, vivo escrevendo sobre essa desistência.

Quando o sonho nos procura achamos que não é hora de dormir.

Não sabemos sonhar acordados.

Não, nunca sabemos sonhar acordados.

Quando o sonha nos procura achamos que não é hora de dormir.

Não sabemos que é realidade.

Andava à noite carregando duas malas grandes, bem vestido. A rua estava deserta e escura. Um carro aproximou-se lentamente e fui abrindo a janela.

Ofereceram uma carona.

O mundo é bom.

Não sabemos que é realidade.

Era frio, a cidade estava destruída e a noite já ia longe. Duas pessoas. Um único cobertor. Desconhecidos.

Dividindo o resto de nada.

Não sabemos que é realidade, não sabemos que a realidade nos ronda, não sabemos que a realidade existe na gente agora escondida. Não enxergamos o que acontece, não vemos a essência do que é a cada instante esse algo que é o tempo todo e que só ele é esse algo capaz de ser o tempo todo.

Sonhar acordado...

Meticuloso

Tirei da escrivaninha toda a bagunça que estava lá. Deixei só uma folha sulfite, colocada meio inclinada, a luminária acesa no canto da direita, junto à parede, e minha caneta de estimação. Sentei-me sobre a cadeira mais confortável, e deixei os pensamentos virarem tinta até secarem.

Olhei o formato daquilo e eram bem pensamentos meus mesmo. Toscos quando olhando meio de longe. Tortos, mal agrupados. De perto, nunca se repetiam. Minha caligrafia não permite isso. Uso folha sulfite porque meus pensamentos ofenderiam as linhas tradicionais: não caem jamais onde deveriam.

Mas a quem olhar mais de perto, há uma linha líquida correndo rápido desde há muitos anos ganhando volume e fazendo esse esforço descomunal, sem perder energia, para levar tudo consigo correnteza adiante.

Seguro a caneta sempre na posição certa, para que a pena, ao se apoiar sobre o papel, abra um pouco o sulco que tem na ponta de modo a deixar correr a tinta.

Até que faz sentido.

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Nítido

Não não... Não é aceitável. Demanda muita coragem, muita força de vontade daqui em diante este fato que teria tudo para ser inocente. Ou, quando muito, incriminar a mim e a ninguém mais. Porém eis que meu pequeno deslize quebra de forma brusca tudo o que é expectativa alheia, e escuto daqui e dali esses lapsos de sinceridade. Sinceridade vergonhosa.

Mas o que esperar? Idealismo é só um quadro bonito que serve para ser colocado na porta da realidade. Ali dentro é outra coisa.

As aparências enganam: sim, as aparências importam.

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Onisciente

Subiu as escadas, devagar para não atrapalhar a preguiça inspirada pelo sol. Chegou ao velho escritório. Todos os livros ali, dos livros do primário às teses que ele próprio escrevera nos tempos de pós-graduação. Suspirou por um instante de todo aquele volume de informações, sem saber distinguir-se vencedor ou perdedor diante do desafio a que anos atrás se propôs.

Encontrou um velho livro de geografia. Uma feira do livro ainda no primário, quando as equações da matemática ainda não haviam aparecido e quando a geografia não passava de uma palavra mágica dessas sobre as quais se pode imaginar qualquer coisa que interesse. Foi pouco a pouco lembrando dos detalhes do desafio.

Tirou o livro em suas mãos, começou a folhear. Nigéria, Zimbabue, Estados Unidos, Japão, Panamá. Taxas de natalidade. Taxas de mortalidade. Guerras. Economia em tempos de paz. Hoje ele era capaz de entender tudo aquilo. E mais que capaz: entendia, dominava e ensinava.

Perdeu as contas dos minutos que corriam indiferentes enquanto imaginava todas essas diferenças que se distribuem pelo mundo, e da clareza com que agora essas coisas se desenrolavam ao seu entendimento. Os intrincados mecanismos que vão mudando a sociedade. Sentiu-se por alguns instantes conhecedor profundo das pessoas próximas, das pessoas distantes, das pessoas desconhecidas mesmo.

Foi tomado de assalto pelos gritos vindos da cozinha. Fechou o livro. Ouviu os passos duros vindos pelo corredor. Quase no mesmo instante sua mulher estava lá, dedo em riste:

- Olha! Eu desisto... Não sei o que fazer com esse garoto. Terminou com a namorada de novo, ama ela e está todo acabado. O filho é seu, sabe porque ele fez isso? Porque eu não sei!

- Não! Também não sei!

Ficou ali olhando sua esposa alguns instantes, voltou a olhar o livro e, antes de ir falar com o filho, disse baixinho:

- Mas vou querer revanche!

Ética

O pai ainda está segurando a bicicleta, discretamente, mas deixa o filho comemorar a conquista da primeira volta bem sucedida, ganhando confiança para as próximas.

Os bandidos sabiam que um trapaceara contra o outro. Ambos haviam saido ilesos. Ambos sabiam que o outro sabia, e sabiam que iriam ignorar o assunto e jamais falar nisso. Viveram amigos até o fim da vida.

E outros tantos exemplos.

Tantos, tantos exemplos.

Até que me apaixonei.

O pior cego é aquele que sabe que não pode ver.

segunda-feira, 18 de agosto de 2008

Medo

Um corredor longo, estreito, úmido, escuro. Longo, muito longo. Muito sufoco e apreensão em todas as direções. Corrida. Agitação. Ansiedade pisando a passos rápidos em poças de água, o barulho ecoando até desaparecer. Ratos.

Ilusão, a saída é ilusão. O corredor não tem fim. A pretensão de se estar desfilando num grande evento de moda. Essa é a saída. Mentira. Mentira que há saída. Mentira há que saída. Saída há que mentira. Há mentira que saída.

Ninguém entende o porque de descer a um lugar assim. Ninguém sabe qual o motor dessa curiosidade suicida.

Um atrativo caminho com uma placa onde se lê: não ultrapasse. E por onde todos vão. Muitos voltam correndo. Outros são expelidos pelos perigos imediatos. Os mais zelosos por suas curiosidades desvendam falhas na frieza do mundo e se aproximam ainda mais.

Socorro. Um pedido de socorro. Ecoando tempo atrás tempo ao passado até os dias em que era puro caminhar, em que era lícito explorar o direito de observar pra dentro.

Socorro. Um suspiro de cansaço. Saudades de poder olhar olhares sem queimar em culpa.

Silêncio. Trinta segundos. Trinta dias. Três anos. Faz tempo.

Ainda não se chegou à metade do corredor sem fim.

sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Invisível

Guerra no Iraque. Desligo a TV.

Crianças pedindo esmolas no farol. Fecho o vidro.

Goteira na pia da cozinha. Fico na sala.

Acende a luz de tanque na reserva. Desparafuso a luz do painel.

Dor de um coração partido. Penso em outras coisas. Outras, outras coisas.

Meu coração, o de outra pessoa, não importa. Penso em outras coisas.

Assim, pensando nisso sem pensar nisso é que os assuntos prosseguem.

Fiz o mesmo com a Guerra do Iraque e funcionou.

Vou desligar a TV.

Fiz o mesmo com a tristeza do 11 de setembro e funcionou.

Desliguei a TV.

Recebi um telegrama: era de mim, dizia sentir saudades.

quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Perigo

Há muitas histórias na literatura que versam sobre os sonhos tão grandiosos, tão abrangentes, tão gulosos que conquistam com todo o mérito o mais liso nada. Histórias que dóem mais serem vividas do que lidas. Veio um amigo meu ontem contando seus causos. Contando das vezes em que o telefone não tocou. Contando de quantas vezes pensou e não falou e se arrependendo das vezes em que falou e não tinha pensado muito antes.

Concluímos que o problema não eram as histórias em si, mas a crise com nunca sentir ter sido quem queria ser naquela hora.

Voltei para casa pensando na vida. Pensando nas histórias que meu amigo contou. Usando os problemas alheios para aprender um pouco de todos, um pouco dos meus.

Sentei em frente à estante. Tirei alguns empoeirados para ler as velhas histórias, e acho que elas perderam esse ponto: não é ausência de toda a prosperidade desejada, da mulher perfeita, da vida gloriosa... é a ausência de um eu coerente com tudo isso, na hora certa. A ausência de um eu coerente com o que está aí. Essa sensação causa estranheza...

Não sei que nome ela tem. Não quero pensar em um nome para esta sensação pois, caso ainda não o tenha, eu perderia o paraíso por inventar mais esse martírio à humanindade.

segunda-feira, 11 de agosto de 2008

Bêbado

O Sol já ia baixo no horizonte, mas o calor ainda era forte, o ar abafado. Com o paletó enrolado no braço, ia subindo ladeira acima, sujando seu sapato de terra. Deixava para trás o lado rico da cidade, voltando do trabalho.

Reparou num menino brincando em frente ao barraco. Um carrinho imaginário montado com restos de madeira. Cinco anos. Nove talvez. Não parecia muito bem nutrido.

Naquele fim de dia, desistiu de ir direto para casa e resolveu passar no bar. Precisava esvaziar a cabeça das injustiças do dia-a-dia. Precisava esquecer o quanto seus esforços eram pisoteados. Precisava imaginar uma existência diferente daquilo tudo.

Chegou no bar. Desanimou-se uma gota mais. Largados de si jogados pelos cantos, uns alegres, ignorando esses fatos todos, jogavam baralho, bilhar ou dominó. Outros simplesmente se esqueciam.

Mas um dos esquecidos olhou diretamente pra ele e falou, em tom severo:

-Ah, sabe... eu encontrei, o pior é que eu encontrei... faz tempo já, está comigo...

-O que foi que você encontrou?

-Hum! A cura pro mundo meu jovem, a cura pro mundo...

-Pois divida isso conosco então! -, resolveu insistir, buscando conseguir boas risadas às custas do álcool alheio.

-Dividir? Hum... Não dá! E nem de nada adiantaria...

-Por quê?

-Porque ninguém acreditaria em mim... E conto ainda meu jovem, veja: se houvesse no mundo alguém que acreditasse que achei a cura do mundo, o mundo não precisaria mais de cura! Percebe?

O bêbado estava certo. O jovem trabalhador percebeu que também não acreditaria na cura para o mundo. Levantou-se. Foi para casa e virou dois copos de pinga pura antes de se jogar na cama.

Carta

Venho por meio desta comunicar opiniões e impressões recentes acerca do funcionamento das coisas. Na esperança de que esta manifestação seja de interesse àquele responsável pelo arquitetar do mundo, espero ilustrar rapidamente, porém em suficientes detalhes, os revézes que tenho percebido, crente de que assim medidas cabíveis possam ser tomadas na direção de melhorar a máquina do mundo.

Em primeiro lugar, destaco que o excessivo sarcasmo do universo, profundamente manifesto na natureza dos acontecimentos, não é traço de humor assim tão condizente com uma etiqueta de supremacia universal. Posso concordar que o sarcasmo tem lugar nobre dentre as formas de humor possíveis e mesmo imagináveis, porém espera-se algo ainda mais daqueles que ocupam postos assim tão importantes que podem ditar a ordem das coisas. Espera-se uma sobriedade desmedida, sem que esta seja por demais exigente.

Destaco também a imperfeição com que corações são colocados à escuridão completa para encontrar sua contrapartida. Não se procura amor, tal como as coisas são dispostas. Procura-se fé no amor. Aposta de que ele aparecerá assim do nada, de lugares em que pouco se espera. Porém ensina-se a desejar e a procurar o amor, caminho estranho que certamente jamais levará a ele. Ora, meus caros dirigentes do universo... Decidam-se por uma coisa ou outra, a fim de evitar confusões. Sem mais, agradeço a atenção.

domingo, 10 de agosto de 2008

Determinado

E se você preferisse não acordar? E se sonhar fosse tão bom que não valesse a pena arriscar o dia seguinte?

E se todos os seres nascidos quisessem voltar até antes de nascer?

E se ficar na cama fosse tão mais acolhedor que qualquer coisa que não houvesse porque levantar?

É medo ou é preguiça?

É incompetência ou é inconstância?

Eu não sei, eu não sei...

Eu sentei numa pedra alta, sobre a montanha. Olhei longe no horizonte. Como havia feito há mais de uma década.

Onde estariam todos agora?

No longe todos eram um homogêneo cimento e concreto na cidade.

E se sonhar fosse em si tão bom que não valesse a pena acodar?

Peguei meu celular. O número estava ainda gravado na agenda. Vinte e oito anos e eu nunca telefonei. Nunca. Era só agora apagar o número, e cortar essa possibilidade de sonhar diretamente na raíz.

Não consegui apagar o número. Joguei o telefone longe, tão longe quanto pude, colina abaixo. Quem sabe eu não o encontre e consiga telefonar? É só um sonho meio impossível... me deixem sonhar...

terça-feira, 1 de julho de 2008

Different Station

I just.. I just... I just... I... just... don't... get it.... Just don't get it... Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it.

Sometimes our values become greater than ourselves. Then we loose control of our feelings. They go in the wrong direction and it seems as if they are running fast and heavy on curved lines leading you to very unnexpected destinations.

Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it.

I'm gonna wait until tomorrow, for it will be a different day. I'm crossing strange borders. I'm gonna wait until tomorrow. I remember the blueness of the sky I left behind. I remember home. I'm gonna wait until tomorrow.

Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it. Just don't get it.

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Indelével

Quando ele ia escrever uma carta de amor tirava todas as coisas de cima da escrivaninha. A bagunça e a poeira. Arranjava uma folha sulfite dentre as que estavam no meio do pacote, perfeitamente lisa e plana. Ajeitava sobre a madeira limpa. Usava só a caneta tinteiro, num capricho que lhe era peculiar.

E odiava sua caligrafia sofrida que parecia engasgar a cada vogal. Fazia esse esforço descomunal para endireitá-la, enquadrá-la aos moldes bem definidos de suas boas intenções. E lá iam ós engolindo os ésses. Os érres se derretendo em êmes disformes. E as linhas ondulavam incertas sobre onde encontrar o outro lado da folha. Desesperadas.

Comum que acontecesse de amassar a folha, arremessá-la ao lixo e reiniciar o ritual todo.

E no silêncio de seu perfeccionismo ele sofria essa agonia secreta de não poder apagar assim os garranchos passados de seu coração.

Detalhista

Um ou outro aspecto me escapa. Um cigarro entre os dedos. O manobrista se agitando para afugentar o frio, entre um carro e outro. Mas nem todos os detalhes eu percebo... Não percebo se há ou não limpador traseiro no vidro do carro caríssimo. Não percebo se há ou não aliança na mão da loirona que se vai.

Não percebo se há ou não sentimento nos beijos que aconteceram. Não percebo se há ou não lembranças do que eu costumo sonhar. Não percebo se souberam ou não das coisas que pensei. Não percebo se machuquei demais ou não corações que sofrem também pela sinceridade e transparência...

Sei que a noite passa, que o tempo não pára. Sei que me digo idiota por aí escondendo como inconsciência das possibilidades a profunda ciência das minhas dúvidas.

sábado, 28 de junho de 2008

Passo além

Lembrei de uma cena do famoso filme Indiana Jones - O Santo Graal. No momento em que ele está quase chegando ao graal, passando pelos últimos obstáculos. "Aquele que acredita passará", era algo assim a frase. E ele, diante de um precipício enorme, dá um passo no vazio. E quando está para cair à escuridão seu pé encontra uma ponte. De pedra, rígida, firme e sólida. Que estava ali, invisível o tempo todo sim, mas estava ali.

Quantos de nós dão esse tipo de passo no dia-a-dia? Que filosofia mais barata essa minha, com filmes assim de grandes bilheterias... Boas filosofias são as dos filmes que ninguém assiste, porque levam a insights que ninguém teve ainda.

Mas ainda assim... quantos de nós dão esses passos?

Percebo agora que devo eu, eu mesmo, dar desses passos por aí. Não adianta ficar parado olhando ao redor, esperando os outros começarem a andar assim sobre o nada cheios de coragem para ir ao encontro deles pensando: "finalmente, que gente legal que eu achei!". Ficar parado frente ao nada criticando o resto do mundo não ajuda.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Distinção

Conquistar uma mulher não é o mesmo que amá-la, que fique bem claro. E pode-se trocar as palavras de lugar conservando-se a verdade da sentença. Amar uma mulher não é o mesmo que conquistá-la. De fato, parece muitas vezes que estas coisas se interferem destrutivamente. Encontrar uma harmonia adequada entre amar e conquistar é arte. Vai além do que os instintos ensinam. Vai além do que a mente sabe. Vai além do que se pode ser pelo que se é.

E ainda assim é o exemplo máximo de simplicidade. Por ser de tal transcendência, não é algo planejado, sabido, dominado. É algo que, uma vez existindo, existe e pronto. Assim, dado. Assim, certo. Assim, distinto de tudo o mais.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Deprimido

Agora vejo que insistir em contornar os problemas do jeito fácil leva a dores maiores. Não gosto de envolver outras pessoas. Talvez antes fosse diferente, talvez eu pudesse não ter me tornado o que sou. Mas o fato é que não gosto nem um pouco de chegar perto dessas histórias. Que elas fiquem todas guardadas dentro de mim. Arrependimento. Há um certo arrependimento agora por ter dado margem a impulsos, na hora errada. Porque assim superficialmente as coisas fluem? Porque a amizade atrapalha outros tipos de proximidade? É um infortúito do acaso? Uma inépcia em conduzir as coisas ao meu redor? Ou um princípio fundamental de tudo, desses que são sempre verdade?

Estou triste. Profundamente triste agora. Oscilando entre acreditar em mim ou não, às vezes perco o equilíbrio, caio e me machuco. Derrubo outras pessoas. Não é uma sensação boa. Mas é a que estou sentindo.

O que vemos no mundo é o que sonhamos para o mundo. Enquanto nossos sonhos não mudam, a realidade mostra-se como um contraste estranho, como um "não foi dessa vez", como uma falha das coisas, ao invés da simples coisa em si. Sonhar é visitar com um pouco de ousadia os domínios da loucura. Uma viagem em que a volta é sempre triste.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Noite

Não entendo porque faço isso. Sempre fazendo coisas erradas contra mim para evitar fazer coisas erradas para os outros. Será essa atitude assim comum? Mais importante ainda: será ela assim inevitável? É culpa de minha estranha matriz de interesses, ou de entruncamento no rumo das coisas que faço?

Olhava de perto aquele olhar distanciando-se, acolhido pelo calor das cobertas, rendendo-se ao cansaço incomum. Deixava meus carinhos caminharem por aquela pele desonhecida na exata medida que torna fácil desligar-se do mundo sem impedir que se desligue de si próprio. E ela adormeceu. Sentia sua respiração de perto. E nunca vou entender a verdade por trás de tudo o que estava acontecendo.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Segredos

Amores, amores que nunca se contam. Amores que não se permitem contar aos outros. Amores que se furtam a contar pra mim o que são. O que são em mim. O que são de mim. Muitos amores. Um coração cheio, uma alma cheia.

Não se cabe um mundo grande dentro num mundo grande fora. É muito espaço. Ou vai a vida, ou vai o sentir a vida.

Muitos amores. Lembranças de olhares. Cheiros. O indescritível prazer da companhia. Da conversa. A dor saudável da saudade. A euforia revigorante da expectativa. Muitos, muitos amores.

Sendo-se um pouco de tudo vai-se a quase tudo deixando-se de ser um só. Deixando-se de ser, para todos os efeitos.

Muitos sentidos. Muitas histórias. Muitas memórias. Um só eu. Ninguém. Nem uma letra. Nem uma letra é mentira. Nem uma letra é verdade.

É um certo consumo de mim mesmo este constante nascer do nada. É uma sensação estranha de sempre ser esse limiar de existir. É uma água na boca de um sabor que eu desconheço. É uma lembrança de um lugar onde nunca estive, cheio de cores que nunca vi. Amores. Amores que nunca se contam. Amores que não se permitem contar aos outros.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Quase onze

Eu não era mais quem sou, e sou nada do que nunca seria, sou o oposto das minhas negações do mundo, sou o discurso desmentido desmentindo. Sou uma mentira, uma mentira enoorme. Sou um mergulho em verdades verdades só minhas de ninguém mais.

Dançam em círculos como dois amantes enlouquecidos, num beco abandonado, sob a luz da última lâmpada. Dão-se as mãos e giram, giram e giram... Ele, Impulsivo, ela Cautela. E dançam passos estranhos. Passos imprevistos. Um pensa, o outro fala, um cala e assim vão hesitando entre um ser e outro de si, entre uma possibilidade e outra...

Enterrei algumas espontaneidades debaixo de terra alta, dura e pesada. Outras escapam como água por entre os dedos, fogem ao mundo e lá vivem pra sempre.

Nesses dias de tanto em tão pouco tempo, deito no trilho do trem e fico pensando nas descontinuidades da vida. Deitado no trilho do trem olho as estrelas, e escuto festas ao longe. O trem vem, o trem passa. E no meio de todo aquele barulho e daquela vibração que por instantes parece ocupar todo o universo de forma homogênea, entendo que o suceder de descontinuidades é a própria impressão digital da única continuidade que existe. Essa sucessão criações vindas de si, autopoiéticas em suas entranhas.

Falo às vezes sem pensar. Penso às vezes sem falar. Por vezes palavras doces. Noutras lanças pontudas. E sou sempre eu. Sou assim, muitos, muitos como todos são. Como você é muitos.

Deitado no trilho do trem, olho as estrelas. O universo me olha. Sabe de tudo o que fiz. Sabe de tudo o que sou.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Sala São Paulo


A estação de trem, Julio Prestes. Onde as pessoas passam apressadas de manhã. Aposentados mostram suas carteirinhas provando o que o rosto não faz duvidar; passam finalmente pela portinha ao lado.

A Sala São Paulo. Concertos de música da maior qualidade. Eventos. Pessoas bem vestidas, felizes por experimentarem a aparência de serem elas próprias. Silêncio. Celulares desligados.

Plataforma lotada. Todos os olhares ao longe, o trem vindo. A questão existencial metafísica profunda que perturba milhares de almas justapostas: onde é que as portas irão parar? Alguns têm lá suas regras astrológicas próprias... Outros partem para espécies diversas de adivinhações seguindo abstrações platônicas. A boa e velha preguiça científica vence por fim e o empiricismo diz a todos, sem sombras das dúvidas: cá há porta, lá não há. Amontoam-se.

Aplausos. Todos de pé. Músicos vindos de todos os cantos do mundo olham pessoas vindas de muitos cantos da cidade. Por vezes de muitos cantos do estado. Ou do Estado, raramente. A música há séculos refina e evolui nesse borbulhar de novas gerações de virtuosas pessoas capazes de dedicarem-se com afinco à exacerbação de seus pontenciais mais escondidos.

"Os bancos de cor cinza são reservados a gestantes, idosos e pessoas com deficiência física. Respeite esse direito."

"A obra que vamos apresentar a seguir é de Igor Stravinsky..."

Um vidro. Um vidro que a arquitetura da ópera escolheu ao bem do estilo e que tanto mais faz ali. Um vidro, fino, transparente. Uma película. Uma fronteira. Olham-se por ele mundos diferentes que coexistem assim, sempre assim: justapostos, olhando-se, mas tocando-se o mínimo. Um protegido da sujeira suada do outro, o outro protegido da futilidade superficial do um. O terno elegante olha o trem chegando e lhe é um espetáculo bonito, um quadro quase distante da "realidade" da cidade. O estudante cansado, já quase meia noite, olha para os vinhos nas taças de coquetel das celebrações especiais. Chegará ali um dia?

O nome é perfeito. Sala São Paulo. É Sala, é um espaço único, amplo porém acolhedor, aglutinador. E é São Paulo, na ruptura, no contraste, no convívio incompreensivelmente harmonioso de contradições tão profundas.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Ketrina

Ele estava lá na estação de trem, esperando sua amiga aparecer.

Uma pequena criança, não mais que cinco anos, brincava de contar passos no chão, entre os quadros de exposição artística espalhados pelo saguão.

- Um, dois, três, quarenta, vinte e dois, mil e um, cinquenta!

Ele falou com ela.

- Não, ó! Tenta assim, com um pé bem juntinho do outro, pra gente ver quantos passos dá até ali.

Contaram passos pelo saguão inteiro. A mãe ali ao canto, esperando alguém e olhando tudo, suspeita. Com um olhar, ele explicou que só estava brincando.

Contaram passos de vários jeitos. Um pé depois do outro. Passos gigantes. Passos pulados. Passos com pés tortos.

Mapearam toda a estação. A amiga dele chegou, iria ambora.

A menina lhe deu um abraço de tchau e um beijo. Sorriu e foi embora, e continuou brincando.

Crianças são assim...

domingo, 1 de junho de 2008

Viagem

Antes que pudesse se esconder em seus medos ouviu gritos vindos de longe.

-Não! Não busque as terras distantes! Não busque as ilhas legendárias! Do contrário jamais as encontrará!

Balela. Blasfêmia. Burrice. Como é que se chegaria a um local precioso, um local tido pelos viajantes antigos como uma extensão do Paraíso descendo à própria Terra? Era impossível ficar parado num mesmo lugar aguardando que ele chegasse.

E foi atrás do lugar encantado. E morreu a caminho, tanto mais longe de seu destino quantos foram os passos pela busca.

E assim foi com muitos outros que o seguiram, um após o outro. Definhando ao longe.

Um, apenas um, séculos mais tarde, sentiu não ser merecedor de uma obra divina tão esplêndida, e contentou-se por deliciar-se com os relatos antigos, com o que sabia das histórias. Nesse saciar sem fim fez-se uma constante presença em seu olhar a tranquilidade relatada como única da terra prometida. E este olhar contagiou um por um todos ao seu redor. E o paraíso havia então vindo ao único que nunca furtou-se a conquistá-lo.

Triste


Isso que faço não é correto. Ah, como é ruim achar que não é correto. As músicas vão sendo ouvidas sendo ignoradas sendo sepultadas. É um breve instante de raiva das músicas. Sim, ando com uma considerável muita raiva ultimamente.

Sem você meu amor eu não sou ninguém...

Nem sei como retratar a desvontade de escrever. Nem sei me olhar de longe agora. Ou até sei, mas não há vontade. Há um certo receido de ser flagrado por mim mesmo como eu sei estar agora. Seria vergonhoso. Seria inquietante a sensação de incapacidade de reverter a realidade. O mundo não é meu. Não... o mundo não é meu.

terça-feira, 27 de maio de 2008

Fim de tarde

Restos de uma ilha próxima trazidos pela água. Minha própria sombra, calor do sol nas costas. Barulho do vento gritando lá dentro do ouvido, entrando em meu crânio e levando pensamentos tardes afora. A cidade à esquerda, até que passos e mais passos adiante vai ficando para trás. Alguns quilômetros de praia como as praias todas foram feitas. Água, areia e verde.

Vez ou outra um avião cruza os céus como um calendário caindo no mosteiro. Vai embora e tudo se esquece novamente. Grito. Grito forte, muito forte. Não escuto nada. Estou gritando por dentro, mas não percebo. Não escuto, mas a voz já estava em todos os lugares.

Piso passo a passo nas coisas que não têm sentido, nos fantasmas que me perseguem. Castelos de cartas, castelo de areia, castelos de sonhos, castas de monstros incompatíveis com o instantâneo eterno.

Sempre amei, e a areia sabe. Nunca fiquei sem namorar. Nunca deixei que a areia ficasse sozinha. Por vezes perdi olhares de perto. Aprendi a cativá-los com o tempo. Mas corações... Corações caminham todos comigo na praia. Porque a praia não tem tempo. Porque a praia tem todos os tempos.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Teorema

Antes de olhar claramente para as coisas o interior se fazia amplo, mais amplo do que realmente é. Nesse anseio enorme de compreender o abranger interno das coisas, clama-se pelo conhecimento que transcende a mente e deixa-se tomar pela ilusão de uma verdade individual falseada como única e absolutamente única representante da realidade. Ah, como deixam-se levar todos! Principalmente os cultos, os filosofados. Os filosofados de berço então... pobres. Como nos axiomas básicos, como na mecânica elementar, levará séculos e séculos para a tinta das páginas alcançar a sabedoria desverbalizada dos instintos. E quando um dia as letras enclausurarem estas lógicas, virá o controle dos instantes seguintes e com isso implodirá o romantismo. Mais uma vez, deus perderá uma batalha derrotado pelo exército que se pôs em marcha em sua defesa. Curiosa esta oleosidade da fé. Sua verdade se possui quando não se quer transferir responsabilidade aos teoremas. Fé implica responsabilidade. Vale a recíproca.

Não deixemos contudo que as letras corram por um caminho diferente do pretendido. É fundamental, afinal, para o surgimento de uma nova ciência, que se faça a observação de uma impossibilidade intrínseca. É impossível desfrutar por completo das possibilidades da vida interior e da exterior, simultaneamente, com efeitos quaisquer que não incluam a dor da incompatibilidade.

sábado, 17 de maio de 2008

Fundamentos

Mas qual é o tamanho do universo em que permanece válido o conceito de verdade? Até qual resolução conseguimos entender existir algo parecido com justiça? Quando valores sociais implodem em segredos à resolução de um único indivíduo, continuam existindo? Não há atitude verdadeiramente áustera que não tenha sido vendida segundo as regras de marketing preconizadas pelas leis não escritas e não ditas por ninguém jamais. É loucura. Numa religião de um, ainda que esse um seja ele próprio um papa ou o próprio messias, não há mais deus. E é o peso dessa ausência convivendo com a fé das mais profundas que prova a verdade concreta de todas as outras divindades. Em termos de valores morais, não há verdade em si, no acreditar, no defender... A verdade é o fluxo de compartilhar. Compartilhar decorre de ser incontido em um só.

Imagem obtida desde excelente site.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Onda


Pés na areia áspera. Úmida. Meus pés. Pelo princípio da incerteza, eu talvez não estivesse ali. Ou talvez estivesse mais rápido. Ou talvez estivesse pensando em outra coisa. Mas o Heinsenberg não entende nada da minha vida, então é melhor que não se meta a palpitar. Olhei pro horizonte: fato. Ao olhar para trás, a névoa noturna já havia engolido qualquer resquício de luz da cidade mais próxima. Adiante, apenas os contornos mal definidos dos morros que iniciam a grande reserva florestal dali adiante. Deitei na areia. Frio nas costas. Areia no cabelo. Barulho das ondas, vento, céu estrela e nuvens. Ouvi uma sombra se aproximando na areia. Outra pessoa andava ali. Passou. Nos olhamos sem que os rostos se vissem. Sem que os olhos se achassem. E ainda assim nos sabíamos invadindo mundos alheios de uma forma muito mais violenta e íntima do que jamais havíamos experimentado. Continuou andando e foi embora.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Triunfo

Gêmeos, mas separados logo ao nascer. Refugiados no pior momento da guerra, a realeza temia pela vida de seus descendentes e confiou cada uma das crianças a uma família distinta. Um foi criado longe na floresta, o outro sempre próximo aos altos círculos.

O curso da guerra foi revertido, o tempo passou. Embora sem o menor contato por anos e anos, ambos tomaram gosto pelas artes da espadaria. O irmão nobre, obviamente, dominava muitas outras artes de combate, como a literatura, a filosofia, as linguas diversas e a geografia. Nestas destacava-se como imbatível, porém na espada jamais havia conseguido vitória contra os maiores nomes do reinado.

O irmão plebeu soube cedo de seu parentesco secreto. E quando sua fama tornou-se incontida por vencer com classe as mais hábeis lâminas da Europa, foi procurado pelo irmão nobre para um duelo. Todas as noites olha para o corte em seu braço e sente a dor fria em sua orelha - um golpe de misericórdia. Dói na pele a lembrança do secreto desistir. Porém dói mais o peso de esconder o que, exceto por um delicado capricho da História, e só por isso, seria sabido por todos.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Tênue

Segredos são para serem contatos. O que levo comigo não é um segredo. É algo cuja leve idéia de menção me causa náuseas. Levo arrependimentos pela incompetência em guiar minhas verdades prudentemente às margens dos idealismos cultivados pela solidão da humanidade. Nenhuma letra do que se escreveu sobre sentimentos é verdade. Não neste mundo. Sentimentos dos mais verdadeiros devem ser tão intensos quanto suaves, e se consomem numa sede calma, serena porém constante, que não admite o tempo longo de sentar para escrever. Eu não devia ter lido o que li. Não devia ter ouvido o que ouvi. Porque seria inevitável ver quem vi, e agora a inspiração é poluída por essa coisa que se quer tão transcendente que vai por conta própria, degrau a degrau, minando sua realidade mundana.

domingo, 4 de maio de 2008

Sangria

Não vi o processo. Fechei o olho. Abri e o mundo já era outro. Virei um rabugento. Ainda sou contido, não explodo, não percebem. Mas hoje meu quarto é meu outro mundo, um espaço meu. Não existe mais o simples ato físico de entrar no meu quarto. Existe o ritual religioso de me desligar da Terra. E quando invadem meu santuário, odeio. Ainda vou resmungar, eu sei. Tempos atrás eu gostava de mostrar meus livros. Era a exposição vaidosa de posses materiais conseguidas a moedas sofridas. E eram diferentes. Meus livros já foram meus moicanos, minhas tatuagens, minhas botas diferentes, minha jaqueta reacionária e meu cabelo comprido. Hoje não. Hoje eles guardam pedaços de mim. Começam a olhar meus livros e fazer perguntas. Me sinto desnudo. Incomodado. Quero mandá-los embora. Quero mandá-los tirar a mão dali e deixá-los todos em paz. Neurótico? Rabugento, rabugento talvez, só rabugento...

Olha! Você se interessa por genética? Por que é que tem um livro de dinâmica aqui? O que é esse livro sobre a louruca?

Calem a boca! Não lhes diz respeito! Acham que entenderiam? Acham que entenderiam se eu explicasse como cada livro que ocupa os pedaços da minha mente compõe a história de meus anseios, meus sonhos amputados ou ainda por aflorar, como cada um deles guarda em segredo uma história de perturbações e de desespero para que eu me encomunhasse com o resto do mundo... Acham que entenderiam que eles são minha chave secreta para momentos de solidão que me recompõe de dentro pra fora e me permitem tocar novamente o mundo? Fossem capazes deste tipo de entendimento, jamais agiriam como agem! Jamais entrariam aqui como fuinhas adrenaladas remexendo as coisas para fora de lugar e cuspindo interrogações sem sentido e bestamente invasivas. Entrariam no meu mundo com um respeito solene que não precisaria de modo algum ser chato ou sem graça. Bastaria não ser vulgar. E olhariam. Contemplariam. Sentiriam. É por isso que existem tantos estúpidos no mundo hoje. As pessoas não param pra sentir. Sentir explica muita coisa. As pessoas não se dão o tempo necessário para sentir. E quando sentem algo, quando o sentimento lhes rouba a atenção, não confiam no que sentem. Ignoram. Pulam por cima. Idiotas... Vão embora. E deixem meus livros em paz. Deixem meu mundo em paz.

domingo, 27 de abril de 2008

De papel passado

Um amigo meu diz que ama a namorada. Diz a ela e aos outros. E trai a pobre sistematicamente semana sim, semana não. Estão juntos há anos e é um namoro de dar inveja a todos.

Que importa o se sente guardado lá dentro, afinal? Pra que serve qualquer declaração se qualquer um pode falar o que quiser? E que adianta sentir o que quer que seja se sentir é sempre algo invisível?

É invisível mas pesa... Inferno, como pesa!............

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terça-feira, 22 de abril de 2008

Parto

Na natureza a vida rompe-se em dor, em risco, em uma aposta quase impossível. E tem sido assim por bilhões de anos. E tem sido um sucesso. Será assim com nossas vidas também? Que as coisas autônomas, de certa forma maiores que a gente, ao nascerem trazem consigo uma grande revolução invariavelmente associada a alguma dor incontrolável, que não mata, não fere, mas corta o peito e bagunça o fôlego?

Fiquei horas na cama. Música alta para tentar não ouvir meus pensamentos. Tempos depois, era incapaz de dizer a mim mesmo se chegara a dormir ou não. O tempo simplesmente passou.

Tomara que logo aprenda a engatinhar. E a andar sozinho. E que seja forte e saudável.

Esclarecimento

Cumpre esclarecer aos nossos prezados leitores que o post Pobreza não consiste em um momento de alcoolismo descabido ou intoxicação ilícita por parte deste autor. Trata-se apenas da idéia de que o estado do nosso mundo em que a pobreza predomina é um estado de baixa energia, e que diminuir a pobreza é um processo de reversão de tendências naturais de nossa sociedade, tal como uma geladeira constitui uma reversão artificial da tendência do calor "fluir" para o corpo mais frio.

domingo, 20 de abril de 2008

Pobreza

A exibição formal da Primeira Lei ocorreu sem maiores transtornos. Com ela, afinal, os alunos já se encontravam devidamente familiarizados através de outras disciplinas nas quais seu uso é lugar comum. A conservação de energia é uma ferramenta básica do cientista da natureza, embora quando efetivamente estudando termodinâmica pela primeira vez ele perceba o quão pequena é sua capacidade de visualizá-la, de conceituá-la e de fundamentá-la. Ainda assim, o trauma, embora intenso, é rapidamente superado.

Chega então o momento de apresentar a Segunda Lei, e com esta uma breve lista de decorrências tão simples na dedução quanto complexas nas conseqüências. Entropia. Uma nova propriedade. Assim como temperatura, pressão, volume. Um valor associado a um determinado estado. Porém entropia surgindo do nada! Não se conservando portando! Como assim? Rendimentos inerentemente limitados? Imperfeições aparentes que estão já no limite do possível. A perfeição absoluta como qualquer coisa menor que cem por cento.

Tudo isso uma medida da desordem, uma régua da irreversibilidade. E ficam todos então um tanto quanto sem entender porque a natureza é assim, embora sem sombra de dúvidas seja geral o espanto e a admiração pelo fato de que ela efetivamente assim o é.

E no contexto das leis que se mostram irrevogáveis na caminhada pelo caos, vemos que a medida correta de orientação de trabalho é capaz de um aparente absurdo do impossível e fazer a temperatura ir do frio para o quente. Uma geladeira. Com a inserção orientada de uma quantidade devida de trabalho, tem-se uma geladeira.

sexta-feira, 18 de abril de 2008

Hora de dormir

Nossa mãe! Preciso arrumar meu quarto qualquer hora. Só queria dormir mas foi impossível não ser tomado de terror por tamanha bagunça. É tanto talvez jogado, tanto e se do avesso em cima do cesto. Pior é a máquina de lavar, quebrada. Isso ainda fica assim por um bom tempo, que eu sei. Vou dormir assim mesmo. Apagar a luz e deixar isso tudo sumir. Abraçar meu travesseiro. Xingá-lo até esquecer que é um travesseiro. Olhar pra ele, no escuro, tendo a certeza de que no meio da bruma impenetrável aquele olhar me procura também. Que diferença faz, se cinco centímetros ou vinte quilômetros? Aquele olhar me procura também, é o que importa. Um certo desconforto nos meus pés. Eram só uns princípios jogados na cama. Chuto um por um para o chão. Amanhã faço um pacote bem grande e jogo tudo fora, que é dia do lixeiro.

Rotina

Recebi uma ligação. Aguardei um tempo. O professor terminou de falar, saí da sala.

E era assim, assim quando ele pensava estar super ocupado. Assim que surgia em seu íntimo essa sensação de compromisso, de importância, de inusitado. Um telefonema urgente com algo imprevisto acontecendo que demandava sua atenção. E assim também no dia seguinte.

-O que você pensa em fazer quando concluir o curso?

Não sei, realmente não sei. Olha, poucas vezes parei para pensar sobre isso, sabia?

E não pensava mesmo. Os dias distantes constituiam abstração intensa demais, não valia a pena. A vida parecia jamais poder perder esse sabor de ser fundamentalmente a nitidez dos próximos cinco minutos. E agia assim com muitas coisas, muitas. Dos mais variados campos. Das mais distintas naturezas. Parecia de fato que tinha por único plano feito fugir de toda espécie de planejamento. Afinal, estes poderiam ter o grave efeito colateral de levar a alguma realização. E se algum grande desejo se realizasse? E se algum grande sonho se mostrasse conquistado? O que seria do sonhar em si? Ele lembrava vividamente das vezes em que abrira os presentes de natal. Não os abre mais. E a vida parece ir indo cada vez mais ao longe assim. Cada vez mais sem fim.

-Poucos no seu lugar teriam deixado essa oportunidade passar, se é que alguém o faria. Você tem alguma idéia do que estou tentando lhe dizer?

Que as pessoas agem como lhes foi ensinado ser convenientemente correto. E eu só estou tentando me fazer conveniente. Um dia aprendo.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Sem nome

Noite, todos reunidos. Subimos a escadaria para ver se encontrávamos o senhor que vendia brigadeiros no prédio adjacente. Um vira-lata, jogado no caminho, levantou-se para nos seguir. E seguiu. Nada dos brigadeiros. E o cachorro lá. As meninas queriam passar no banheiro antes que fôssemos embora. E o cachorro lá. Agachei-me para conversar com ele. Aproximou-se. Pedi a pata; a pata. Todos gostaram dele. Era um cachorro de rua, mas estava sendo cuidado pelas pessoas dos arredores, pois não estava tão judiado assim. Aprovando nossa atenção, adotou-nos como companhia pelos minutos seguintes. Enquanto conversávamos e nos discontraíamos, ele participava latindo às gesticulações mais pronunciadas. Vez ou outra latíamos de volta.

Era tarde, e voltamos aos nossos carros. E ele nos seguindo. Ao abrirmos os carros, ele entendeu o que iríamos embora. E, antes que nós, foi embora.

Imagem obtida deste site.

quarta-feira, 16 de abril de 2008

Monólogo

- Mas o que se passa afinal, porque é que você anda assim tão ausente?

- Tenho que esconder meus sentimentos. Ou pelo menos julguei que deveria, ou por excesso de prudência, ou para alimentar minha ilusão de caráter.

- Sentimentos por quem?

- Por você minha cara! Por quem mais seria?

- E me conta assim, depois de tamanho esforço?

- Mas é só em meus pensamentos. Decorrerá só um incômodo menor que consiguirei superar sem grandes dificuldades.

- Mas não deveria ter me contado. Não mesmo... Sabe que não há como ficarmos juntos, sabe que...

- Que? Vai dizer que os sentimentos jamais serão conhecidos?

- E seriam algum dia? Por que? Você não acredita no que vê... É mais concreto o que faz sentido ao que você quer do que as histórias que teus olhos lhe contam todos os dias. Eu apareço diante de você vivendo uma outra vida. Estamos intransponivelmente distantes em quase todos os sentidos e você distorce as pequenas proximidades para me aproximar de você em outras formas. Porque não vive o dia de hoje fora da sua mente?

- Vou ficar aqui mais um pouco. Aqui em algum lugar em que eu possa estar mais perto de você sem interferir na sua realidade.

- Mas não se demore. Não é justo me possuir mais perto de você assim se afastando de mim.

terça-feira, 15 de abril de 2008

Mito da caverna

Imagine pessoas que só viram sombras. A vida toda. E que você sempre viu a luz, a vida toda, desde que nasceu. Isso é ser cego ao contrário. Quando você vai desconfiar que vê? Quando?

E quando vai contar aos outros que vê? Quando vai desistir de contar a eles que há luz?

Vão te isolar, te repreender, te desacreditar. E você continuará insistindo. Continuará?

Vai convencer-se de estar louco. E cultivará sua loucura pois ela não lhe deixa. Cultivará em segredo. Jogará sua testa contra as paredes e baterá seu joelho nas quinas. Fará como todos. E guardará para si as imagens que não existem.

Até que um dia você se apaixona de novo.

Imagem obtida daqui.

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Selo de Força Total

Caríssimos!

Recebi já há alguns dias um presente do blog JLouThings: um selo de Força Total.

Creio que os bons costumes da blogosfera pedem que eu repasse o presente a outros blogs de minha preferência. Ficarei hoje com alguns dos que já estão "linkados" aí ao lado. São eles:

  • Alma Bêbada - Um outro point internético cheio de defenestrações aleatórias.


  • Bianca Feijó - Periodicamente uma nova fatia de percepção criativa do mundo.


  • Entre Pernas - O único problema desse blog é não ser atualizado sempre. Porque a idéia é ótima os posts bem interessantes


  • Horas de Clarice - Este blog não é atualizado desde fevereiro. Entrem lá e deixem algum incentivo. Por quê? Bom... leiam qualquer coisa, vejam como esta menina escreve... E confesse que ficou querendo mais!


  • Minha Terapeuta está de Férias - Reflexões de uma estudante de psicologia. Precisa falar mais?
  • Futuro

    Acabou o mundo. O holocausto. Ontem. Foi terrível. As imagens iam chegando pela televisão de cada canto do mundo e, uma a uma, sumindo. Aqui, do último acampamento antes do pico da montanha, vejo que não sou mais o homem mais alto do mundo. Sou só o único, e não sobrou ninguém para comparar.

    Sentado, olhando ao longe para o céu de estranha coloração, detendo-se sob os ventos de fortes rajadas, pensou. Justiça. Injustiça? Havia um crime acontecido? Mais que explodir o mundo pelos ares, aquelas bombas implodiram tudo o que é humano ao coração de um só homem. Que finalmente entendeu o quanto tudo é volátil. Com tamanho conhecimento então, desejou nascer de novo, mas a natureza permanecia rígida e intransponível. Pensou em se matar. Mas a morte perdera por completo o sentido. Tanto faz.

    Sentir sozinho é não sentir, é um sonho morto, é uma mentira, é um impossível.

    Pegou um pouco de neve em suas mãos. Fria. Os dedos ganhando coloração arroxeada. Um pouco de água derretendo com o calor da mão e em seguida congelando ainda enquanto começava a escorrer, ao encontrar o vento. Dor. Sede. Um animal, estava reduzido a um animal. Estava sendo tratado pela natureza como um animal. Estava ali só miseravelmente sendo o que se é. Inconformou-se. Chorou e não foi ouvido. Pensou em não ter mais nenhum pensamento com palavras, afinal não haveria ninguém para ouví-las jamais. Destruiu sua presença pensando com isso puxar o tapete da Solidão. Mais três dias, e morreu.

    Menina

    - Mamãe, borboleta mamãe, borboleta. Borboleta mamãe...

    E nada que a mãe pudesse entender dessa insistência incontida de tamanha concentração numa palavra só. Algum filme, um desenho. Ou mesmo uma borboleta pela casa. Nada. Nada encontrava que pudesse explicar a fixação da filha.

    Pelo fim de tarde, na pracinha da cidade, uma das cenas mais lindas. Uma revoada de pelo menos dez borboletas, das mais coloridas. Nunca havia visto tantas juntas. E novamente a menina disse, com inquietante trivialidade diante daquela cena insólita:

    - Borboleta mamãe... Borboleta.

    Algo na concatenação daqueles fatos fazia toda sua simplicidade transcender de modo inexorável todas as barreiras da natureza e lançar-se ao domínio do fantástico.

    A mãe deu de ombros, por fim.

    quinta-feira, 10 de abril de 2008

    Saudade

    Quantos metros tem a saudade? Precisava saber, queria colocar tudo em escrituras. Papel passado, coisa correta.

    Chamei agrimensores. Trouxe gente estudada. Vasculharam o campo, foram olhar atrás das montanhas, depois dos vales. Nada. Não encontraram nada.

    Roubado! Fui roubado! Onde está minha saudade?

    Chamei a polícia. A divisão anti-seqüestro. Helicópteros. Satélites. Cães farejadores.

    Minhas posses e as alheias debaixo do mais detalhado dos escrutínios.

    E nada. Nada.

    Arqueólogos. Astrônomos. Piratas. O Discovery Channel. O Gugu, Silvio Santos e o Fantástico. E nada. Nada. Físicos nucleares. Aceleradores de partículas. Uma por uma das dez dimensões. E nada.

    Que não se encontre em lugar nenhum dessa matéria estranha é fato mensurável. Que seus efeitos me acompanhem em todos os lugares... quem explica?

    Imagem obtida deste site.

    quarta-feira, 9 de abril de 2008

    Cachorro estóico

    Nenhuma posse é verdadeiramente nossa. As coisas, antes de nos pertencer, pertencem ao mundo, e da forma que nos foram dadas podem nos ser tiradas. E outros bla bla blás à moda dos velhos estóicos. E aí? O que fazer com a palavra pertencer então? Às favas com ela? Tão somente a sabedoria e a nobreza nos pertence? (o que talvez consolasse os romanos, mas hoje certamente nos torna as coisas ainda piores!)

    Como, creio, o assunto não está sob os auspícios de nenhuma legislatura dos conselhos e papéis, sinto-me livre a manobrá-lo conforme as conveniências. Vou é brincar de redefinir posse às minhas vontades atuais.

    Possuir verdadeiramente é ser destinatário de uma manifestação externa em sua ocorrência expontânea, ou seja, independente de qualquer esforço artificial para restrição das liberdades do que é possuído. A posse assim definida não parte do proprietário para o objeto, mas do objeto para o proprietário. Nada se possue. O objeto de posse, em sua deliberação livre, eventualmente se deixa possuir.

    Não gostou? Faça a sua definição, fique à vontade. Eu fico com esta aí de cima porque engloba conceitos bem... bacanas! Ao mesmo tempo que fica excluída a possibilidade de posse de bens materiais, dadas as limitações deliberativas desses, e assim preservamos os ideais de frugalidade dos estóicos e outros desocupados, consigo uma vantagem adicional: a de garantir que, ao menos ontem, possuí um cachorro.

    Isso mesmo: um dog, um au-au, um vira-lata. Não trocamos restos de bolacha, pão ou qualquer outra coisa. Não lhe salvei a pata, a sede, o frio ou o terreno. Apenas o conheci. Nos vimos. E o vira-lata seguiu-me avenida afora. Parei no ponto de ônibus. Sentou-se ao meu lado, sem frescura. Não ficava olhando, ou incomodando minha perna com a pata. Sentou-se ali. Olhou a rua. As outras pessoas. O ônibus demorou, levantei. Levantou-se. Foi ao caixa eletrônico comigo, esperando-me do lado de fora. Deitou-se debaixo da mesa da lanchonete, à calçada. Parei à banca de jornal. Entrei em um sebo. Saí. Sozinho, pensei. E lá ele aparece de novo, passa à minha frente, correndo, e vai liderando o caminho.

    Rendendo-me às normalidades do mundo, entrei na estação do metrô e perdi neste dia a única posse que tive.

    Serão as pessoas capazes de se possuir assim também com tamanha pureza e cristalidade, por cima de tantos planos, carências, sonhos, egoísmos, invejas, sonhos e estratégias?

    Imagem de Maurilio Orozco

    segunda-feira, 7 de abril de 2008

    Homem comum

    Sonho com tudo, quero o mundo. Quero ainda mais. Quero o mundo me querendo. Quero mais que um sorriso, mais que um olhar. Quero um sorriso me sorrindo, um olhar me procurando. Não quero abraços, quero o desejo do abraço. Não quero o dinheiro, quero o sentimento de que vali a pena. Mas quero ainda mais, ainda muito mais.

    Quero meu travesseiro. Cheio de sonhos. Cheio de amanhãs para sempre. Quero mais que todas as conquistas do mundo. Quero desejar o impossível e cada vez mais o impossível. Vida eterna. Tensão. Desespero. Sede. Quero sentir minhas entranhas sedentas por se mover ao próximo segundo numa necessidade de sobrevivência imediata. Quero a morte rondando por perto. Quero a morte em si. Quero o desprendimento de tudo isso. Quero esquecer a vida. Olhar pra ela de longe. Olhar pra mim de longe, olhar para os outros. Quero não me achar na multidão.

    Quero ser ninguém, em definitivo. E conquistar o mundo.

    Eu aposto meus sonhos na nobreza do mundo. Deixo de lado que a ética é a maior desnatureza do homem. E nesse contrasenso garanto dos meus vazios minhas maiores glórias.

    Clique para ir à origem da imagem

    domingo, 6 de abril de 2008

    Curiosidade folgada

    Não, não. Nada de poesias apaixonadas agora. Tá tarde e amanhã é segunda-feira. Comportemo-nos. Venho aqui por outra razão. Um pedido, uma súplica, um clamor à multidão, como queiram...

    NÃO DESPERDICEM AS PESSOAS!

    As pessoas ao nosso redor, com quem cruzamos todos os dias; ou as do outro lado da cidade. Cada uma, um espetáculo à parte. Um baú de repente encontrado no sótão. Um presente de natal ainda não desembrulhado.

    A moça quieta no trem que, quebrada barreira do isolamento por conta de um incômodo celular, contou ser intérprete para surdos e mudos em uma faculdade.

    Todos os dias temos algum tipo de contato com pessoas diferentes, nem que seja um mero acaso de proximidade física. Nem que seja estar acessando o mesmo site ou olhando para a Lua ao mesmo tempo. Sempre que possível, fale com as pessoas.

    O velho senhor de chapéu, roupas simples, sandalha velha, olhar distante e sorriso puro, que com muita luta contruiu ele mesmo quinze casas e os filhos que ajudaram em algumas delas. Que de tanto trabalhar em obras, conversava com a terra. Anteviu o desmoronamento de um barranco quando todos os engenheiros professavam o contrário, e salvou duas vidas.

    Eu tenho minha histórias estranhas. Guardadas comigo. No metrô, de mochila, tênis, jeans e camiseta pólo, sou um estudante e nada mais, ninguém diria outra coisa. E baguncei em viagens, cantei desafinado. Vi acidentes ao vivo e corri com uma gestante hospital adentro. Muito além do grafite, papel e integrais. Quem desconfiaria?

    A senhora que carregava um Voltaire no metrô. Aluna de filosofia, pensei. Certeza. E estava redondamente enganado: uma parapsicóloga investigando segredos da existência e desesperada por descobrir onde se esconde a seita que realiza os rituais que, todas as noites, ela vive em sonhos vívidos. Uma louca, doida: uma conversa e tanto!

    Ou o analista bancário que me encheu de dica sobre ações muito além do que jamais conseguirei lembrar. A velha miúda com fotos de família na bolsa e histórias do marido desleixado que ela amava insistir para pentear o cabelo e para quem fazia roupas e mais roupas com as próprias mãos. O menino que me perguntou tudo sobre o livro que eu lia, para o embaraço dos pais, e em quem cada resposta despertava dez novas curiosidades vivas e inquietas.

    O tio de uma amiga minha, pessoa que por um ano cumprimentei quase toda semana para só então descobrir que ele havia viajado o Brasil em sua infância com um grupo de teatro, chegara a montar um kibutz e a contrabandear livros de comunismo debaixo da ditadura.

    O torneiro mecânico, fala simples e modos rústicos, com melhores idéias para emprego das máquinas ociosas que qualquer empresário ou gerente que já olhara aquele galpão. "Um curso técnico, sabe? Os menino faz aí uma profissão. Montá o que? Sei lá, coisas pra cadera de roda, ou qualqué coisa que possa doá depois pra hospital, quem precisa! E a máquina daí num fica parada, num enferruja assim, que dá até dó!"

    E tem tão mais por aí. Têm sim fatos bizarros, fatos marcantes, feitos e efeitos notáveis. E mais ainda: há tanta profundidade também. As pessoas têm vidas dessas que se espalham pros lados em afazeres, histórias e compromissos. Mas essas mesmas vidas afundam pra dentro em sonhos, prazeres, medos, desejos, raivas e risos. Estes temperos todos que fazem do cotidiano mais banal um épico mais épico que derrubadas de impérios, conquistas das montanhas e estrelas ou qualquer coisa que afete o preço do dólar.

    Um mar sem fim. Nas pessoas que nos aparecem por acaso. Não ignore os acasos! Pergunte, converse, olhe, escute, insista, sorria sempre nos olhos, lábios e modos, e tenha uma certeza: há sempre mais para além do que vemos nos outros, não importa o quão fundo fuxiquemos. Sempre, sempre mais!

    sábado, 5 de abril de 2008

    Taurino

    Fui a uma astróloga. Tinha que ir... Tem tanta gente indo! Ela disse que eu, por ser taurino, ter esse ascendente (ou acendente, pois que diferença faz um ésse a mais ou a menos frente à compassada coreografia dos astros?), sou muito preocupado com as opiniões que os outros têm de mim. Fiquei puto! Se ela espalha isso por aí, vão dizer que não passo de um inseguro sem opinião!

    Ela também disse que tenho um senso de humor refinado, ao que perguntei se ela conhecia a piada do "não nem eu". Gosto de quebrar expectativas.

    Teimoso? Teimoso eu não sou de jeito nenhum!

    Muito menos tímido ou perfeccionista!

    Fosse eu perfeccionista, não publicaria uma porcaria dessas no meu blog, ou talvez apenas pediria aos obedientes leitores que parassem de ler por aqui.

    Parem de ler, por favor!

    Estou pedindo, por que desobedece?

    Olha, vou ter que tomar medidas drásticas, pare de ler agora!

    Foi você quem pediu! Nesses termos, serei forçado a parar de escrever! Olé!

    Atrator estranho

    Sem literatura, os fatos: saímos hoje para comemoração de aniversário, todos os amigos. Os que se conhecem há pouco tempo e os de longa data.

    Nunca só os fatos: e eles dois também, claro! Há tanto tempo se conhecem... namoradinhos dos namoros de infância. Moram perto. Estudaram juntos. Os pais são amigos. São a maior incompetência na tarefa de serem definitivamente nada mais que amigos, embora oficialmente nunca migrem além desse status claustrofóbico. Se encontram. Se brigam. Se beijam. Se querem. Se desconfiam. Se evitam. Se sonham. O fracassado noivado dela não desperta tantas emoções quanto essa história. As amantes de camas incontáveis dele não nocauteiam assim tão forte até mesmo o lado mais bruto e inabalável de sua saudade. Nesses tempos tão modernos, a única coisa que os dois temem nessa paixão contida: é que é amor de verdade. Quem lhes tira a razão?

    quinta-feira, 3 de abril de 2008

    Atemporal

    O trânsito parou. Maravilha. Sim! Maravilha mesmo. Não vou deixar o inconveniente de um simples congestionamento transformar-se numa real ameaça à tranquilidade que carrego de volta comigo. Além do mais, é noite. Noite fria de céu claro. A janela convida a observar a paisagem. Os outros no ônibus dormem. Muitos quilômetros de qualquer lugar.

    Abro a janela. O frio lá de fora toca meu rosto de leve, a brisa me força a cerrar os olhos que estavam acostumados com o calor do ônibus. Uma sensação curiosa de algo concreto, de um instante presente do qual não poderei jamais fugir, para todo o sempre.

    A luz do luar calma toca as árvores. Os motoristas descem de seus ônibus e caminhões para tentar observar melhor lá longe o que causa todo o atraso. Mas a paisagem em volta é só tranquilidade. Serena. Um cenário que está ali.

    Fecho a janela. Vejo meu reflexo contra a cena do luar lá fora. Sinto que um dia o reflexo estará diferente.

    Sou seduzido novamente pela imagem daquele luar, das estrelas que me deixaram ensinar à minha amiga onde é o norte e onde é o sul. E esqueço de meu reflexo. E esqueço mesmo qual era meu reflexo, se jovem, se velho. Todos os meus reflexos estão ali. Há algo de concreto na vida que é frio como a noite, penetrante como o luar, e que dura pra sempre.

    quarta-feira, 2 de abril de 2008

    Avesso

    Lembro do dia em que a vi pela primeira vez, aquele encontro marcado esperando o destino acalmar. Fui para causar a melhor das impressões. Calcei meus melhores sorrisos, vesti uma camisa de bons tratos e, para proteger de qualquer eventual frio naquela sacada de céu estrelado, joguei por sobre tudo um casaco do mais puro bom humor.

    Casamos. À igreja fui com um terno de timidez alugada, que hoje em dia não se usa ter essas coisas de posse própria.

    Naqueles tempos difíceis de pintar paredes e inventar quintais trabalhava o dia inteiro. Só a via aos finais de semana. Vivíamos juntos, mas íamos nos apresentando ainda. Eu costumava colocar uma bermuda de irreverência, meu boné de frases feitas e meu chinelo velho de risadas fáceis, que quanto mais velho mais confortável fica.

    Hoje somos íntimos. Antes de deitarmos, sento à beira da cama. Meia luz. Tiro meus sorrisos fáceis, botão a botão; jogo-os sobre ela com desdém desafiador. Está frio. Ainda assim, me desfaço de minhas melancolias escondidas, puxando-as das pernas com os pés. Dos pés, tiro minha solidão secreta e minhas lembranças pseudo-esquecidas, que em dias normais me aquecem por debaixo de belos sapatos de auto-estima exaltada e extrovertida. Sempre muito bem lustrados.

    Deito-me ao lado dela e nos cobrimos de segredos pesados e macios. Quentinho bom. Tiro por fim, devagar, meus receios desmedidos, pudores mentirosos... Aí então ali, junto a ela, despido de tudo o que sou, a amo. Aí então ali faço do amá-la tudo o que sou.

    terça-feira, 1 de abril de 2008

    Chuva

    Num mundo perfeito não seria assim. Num mundo perfeito pra mim. Num mundo perfeito não haveriam muitos desejos. Num mundo perfeito só seria eu e eu continuaria sozinho.

    Mas tais implicações de lado... Se a amizade não fosse uma barreira tão intransponível e se eu fingisse querer algo menos profundo, as coisas poderiam ter se iniciado antes. É uma questão de energia de ativação. Os químicos entendem disso. Enzimas. O mundo ideal é interessante, tudo bem, mas as coisas vís precisam entrar em cena para diminuir as energias de ativação das coisas da vida.

    Fico remoendo o dia em que quase dividi com as pessoas um pouco destes sentimentos. Pois como hoje é vista a amizade que existe é reflexo de sucesso, enquanto se soubessem de todas histórias trancadas nas entranhas ririam do fracasso tão logo se recobrassem da asma causada pela pena.

    E minha família? Onde estou indo para mais mais perto dela se aqui só há paredes com desconhecidos?

    Esses pensamentos são próprios do correr do tempo.

    segunda-feira, 31 de março de 2008

    Imagens

    O Sol já o fazia suar, queimava sua pele, mas ainda não havia conseguido derreter o sono que pesava sobre seu corpo prendendo-o à cama. Por vezes o incômodo provocado pela luz era enorme. Abria o olho. Remexia-se. Olhava, cabeça caída ao lado da cama, os livros jogados pelo chão. O despertador derrubado da mesa. Já cerca de quatro horas haviam corrido após a primeira vez que o aparelho tocou pela manhã.

    Bebida era algo que não faltava. Todos se divertiam, riam sem dispor de muita concentração para pensar se havia mesmo alguma razão para tal.

    Três da tarde. O Sol já não incomodava mais seus olhos. Já não havia razão para lutar contra o sono.

    Comemorações. Sorrisos. Abraços. Os amigos se reencontram. Xingam-se numa expressão quase selvagem do mais profundo apreço, vestido de manto nenhum de educação ou compostura. Os mais íntimos procuram-se para dividir as comemorações.

    Troveja lá fora. Com a chegada da noite vai ficando insuportável continuar dormindo. Cansa. Ele levanta. Vai até a cozinha. Debruça-se na janela olhando a paisagem lá longe. Horas passam, várias horas.

    Fiquei

    Eles se foram todos, estes seres cuja ausência me deixa um pouco mais longe de mim. E só os deixei ir para ver se assim encontro minha ausência aqui em algum lugar esperando. Esperando para me ver de novo. Ver de olhar nos olhos. Gostar assim não é bom. Não, não é bom. Gostar assim dilui. Gostar assim evapora. Gostar assim é estranho. Gostar é bom alguma vez? Temo ter ido muito contra meus sentimentos quando resolvi lhes dar ouvidos. Não são para ser assim as pessoas. Não. Tem coisa que os outros parecem encontrar quando desistem de buscar. Não entendo a simplicidade. Não me acolhe essa idéia de ter as coisas assim. Algumas honras em que aprendi a acreditar... Causam admiração nos olhares mas aí os passos são todos para trás, e vão ficando todos para longe. Quando será o contrário?

    Fraqueza insuportável pela fraqueza que eu não suporto de insistir em suportar esse contínuo desistir de teimar em não se conter. A noite não me engole mas esse vazio dos outros que se foram vem vindo. Embreaguês de pensar na bebida. Repugnância de pensar nos desejos todos de infância que se consumarão mutilados e esquecidos naquele momento em que será celebrada a mais doida e incontida anomalia coletiva. Ou não. Ou estou errado. Ou sou um sozinho. Ou sou um desconectado. Só sei rir sozinho de minhas realidades ininteligíveis. Ou quero ir muito além de onde se deve, e ninguém quer se mostrar tanto assim. Assim como eu, ninguém jamais abraçará com todas as forças seus mais íntimos segredos quando estiverem bem diante deles.

    Eles se foram todos. Lá no meio foi um sorriso. Um olhar. Uma voz. Um anseio que eu gostaria de compartilhar. Uma alegria que eu gostaria de dividir. Uma vivacidade que eu gostaria de abraçar. Mas não me contento com pouco, e não tenho muitas boas maneiras para lidar comigo mesmo. Resta apenas esta mutilação das sinceridades de meu coração.

    quinta-feira, 27 de março de 2008

    A difícil vida de um pseudônimo

    Acordei outro dia, dia como qualquer outro. Moleza do sono resmungando contra um relógio ainda insistente. Tentei lembrar como era o sonho que ia se indo por entre meus dedos, embora pra nunca mais. Vozes, uma paisagem... Qual era o enredo? Como era mesmo aquele cheiro? Pensei nos meus compromissos do dia. Pensei no café da manhã. Mas deixei um pedaço de meus devaneios se ocupar de coisas mais distantes. Perguntas que não dão dinheiro, cenas que não custam nada... Fui pra longe, comecei a ouvir músicas que não tocavam ali. Comecei a pensar em palavras que eu jamais falaria; frases que eu jamais escreveria. Quando dei por mim, era inescapável: já tornara-me alguma espécie de outra pessoa. Eu jamais faria coisas que, perdidas ali na minha imaginação, agora eram minhas pra sempre. Olhei no espelho e vi: sou só um pseudônimo.

    Desespero. Senti o chão sumir nos medos de não ser ninguém. Entendi que minha história era cada vez mais uma mistura pastosa de fatos e vontades, de lembranças e invenções. Eu não sou de verdade! Aí o alívio: e quem o é?

    Escovei os dentes mas a escova não machucava a gengiva. Eu estava então do outro lado do espelho e vivo dali adiante neste mundo. De sensações que existem quando eu invento. De mundos que são concretos quando fecho os olhos. Controle. Liberdade... Mas as coisas não são feitas só com a metade boa do maniqueísmo. E assim é que esta minha condição implica em muitas coisas. Junto com a sede de abandonar todas as minhas histórias para inventar outras, fiquei sem nenhuma... Sou retalhos de idéias. Sou rascunhos misturados. E o doloroso é que às vezes vou pra gaveta. Às vezes fecham o caderno velho e não escrevem nada. Às vezes vejo fotos dos meus filhos mas não sei ainda quando nasceram. Às vezes fui viajar, às vezes nunca fui.

    Tenho o infinito pra mim como que uma posse mágica: futuro e passado são o que eu quiser. Mas, estranho descobrir isso depois de fugir pra longe correndo: esse insignificante ponto na eterna linha do tempo me faz falta... O presente tem lá seus caprichos. Na imutabilidade dura do mundo que se impõe está uma poesia que não se inventa, que não se toma em posse. Transfigurei-me em pseudônimo para sentar no alto desta montanha de abstração e olhar de longe, com toda a inveja que sente quem aprecia de fora, o realismo fantástico das coisas que são simplesmente assim: são.

    sexta-feira, 7 de março de 2008



    Gerentes engravatados. Macacões engraxados. Estalos metálicos. Cliques de mouse. Aço grunhindo. Telefones tocando. Todos ali, paredes apart. Contas do mês. O futebol de quarta. Reformas na casa da praia. Chamar amigos pra encher a lage do puxadinho. Todos ali, paredes apart. Planilhas de cálculos. Gambiarras e improvisos.

    A maldição da elite é ter intelectualidade suficiente para tentar planejar a própria felicidade. A maldição da plebe é ser tão visceralmente humana quanto qualquer outra inveja infundamentada.

    À noite. Dois lares diferentes. Crianças pulam aos pescoços que voltaram do trabalho. Seriam ambos iguais?

    O bom da pobreza é que ela abstrai em sonhos distantes as artificialidades fúteis da vida. Ninguém deveria existir além de seus momentos humanos.

    Trânsito. Ar condicionado. Trânsito. Ônibus lotados. A mesma avenida. A mesma cidade. A mesma economia. De quem são os muros?

    São milhões de pessoas na megalópole. Todas acreditando que seus conhecidos próximos são os únicos honestos e confiáveis do mundo. Vamos desconfiar de todos nas ruas... este é um denominador comum dessa gente, não importa que panos usem. A diferença é que a plebe não consegue comprar seu particular cenário de ignorância e é forçada a misturar-se ao mundo dia após dia. E no meio de tanto cansaço, nem sabe a bênção que é...