sábado, 31 de agosto de 2019

Mãe

Xícara, pires. Colher perpendicularmente posta.

Leite quente.

Café e aquela fumacinha de vapor indiferente a tudo, subindo, calma que dá inveja.

Azuleijos frios.

Barulho de metal contra a porcelana. Colherinha mexendo, girando, girando, girando, girando...

E ela gritava tantas coisas por dentro. Sofria o marido tê-la deixado.

Os filhos não compreenderem nada. Sofria a irmã controlar sua vida...

Sofria a casa gigante estar velha e caindo pelos cantos

pintura

telhado

goteiras

janelas

poeira

bagunça

ratos

E gritava, e gritava por dentro, músculos rígidos, berro de cançar pulmões, diafragma, até as pernas se cansavam, de tanto berrar!

Metal contra a porcelana, girando, girando, girando... Lá fora, só se ouvia isso.

sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Dói

Eu a amo há anos. Ela me vê como o melhor amigo. De longe, disparado: o melhor. Ligou aqui de manhã dizendo que estava louca para conversar comigo, daí transformei-me em segundos num ser humano banhado, penteado, cheiroso e arrumado, e lá fui, quase num teletransporte, com aquele zuwwwiiiíííiímmm de fundo e tudo o mais.

Ela estava despenteada, do jeito que a noite de sono a deixou. Chinelos de dedo. Óculos mais pendurados na cara do que encaixados sobre o nariz. Acho que flagrei alguma remela no olho direito. Linda. Lindíssima, não tinha competição... Eu a via, fosse como fosse, e tinha essa sensação dentro de mim, que só se verbaliza assim: linda! Ela sorriu também, pensando os pensamentos dela ao me ver. E desatou a falar:

- Cara, preciso te contar... Ontem fui a um happy hour. Você não imagina! Do nada, sei lá eu como, só sei que conheci um cara tãããão legal!

E ficava eu lá, melhor amigo, ouvindo as inusitâncias da vida dela. E eu lá, apaixonado, fingindo que não era eu ali. E eu lá, apaixonado, fazendo um esforço impossível para não ser eu mesmo e deixar que ela fosse ela própria, em paz.

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

Verdade

Meu sincero é engolido de mim mesmo pra um buraco vazio, que fica sei lá aonde!

Saí de casa, saí correndo, saí da cidade, do estado, do país, fui pra sei lá aonde, pra longe! Fui pintar meus sonhos de outra cor, em outras paredes, com outras tintas. E eles estavam lá, sempre os mesmos sonhos, sempre os mesmos desejos.

E continuo num deserto, num deserto em que cada gota de afeto se transforma num oásis que esgoto até o final, todo mililitro, todo pedacinho, toda partezinha. Até acabar. Até acabar numa saudade asfixiante. Numa vontade desnorteante de abraçar, de querer, de ter...

No fim, é ela quem amo, e não me pareço capaz de mudar isso.

quarta-feira, 28 de agosto de 2019

Mais que justo

Um dia desses marquei uma reunião com meu autor. As coisas estavam muito bagunçadas, eu estava ficando perdido. Pra começar: sou um pseudônimo ou um heterônimo? Sim, essas coisas precisam ficar bem claras, se não a gente não se organiza, sabe?

Aí ele insistiu para que eu fosse um heterônimo, falei que tudo bem até, mas que isso dava muito trabalho e tal. Ele não mudou o pagamento. Ora, é muito pouco! - esbravejei. Ele ficou irredutível.

- Um personagem fictício não pode viver só de migalhas!

- Ué, não pode?

- Claro que não! É abuso, exploração, escravidão até!

- Ué, mas um personagem fictício não precisa se alimentar, não precisa andar de carro, não precisa ter um guarda-roupa tridimensional como o nosso! Você não precisa de um salário!

- Como não, como não? Olha, um personagem fictício desses figurantes por aí, vá lá. Aparecem num conto, colocam a cara na página, falam umas coisinhas e somem pra nunca mais aparecer em sebo nenhum. Esses realmente, não precisam de nada. Mas e eu?

- Ô bonitão... o que tem você de especial, hein?

- Não ironize! Respeito, ou te denuncio no sindicato! Eu sou um heterônimo, não é isso que exige de mim? Um heterônimo tem que ler outros livros, ter outros princípios políticos, se vestir de outro jeito, amar outras mulheres, ver outras paisagens... Como quer que eu faça tudo isso se ficar o dia inteiro sentado num canto aí vivendo a vento esperando você aparecer?

- Não não, é que...

- É que nada! Sem essa de é que. Exijo um salário, décimo terceiro e tudo, e exijo horário de trabalho definido. Cara, um heterônimo assim culto, viajado, ter que ficar servindo pras suas historinhas no meio da madrugada, soa a fim de carreira, né não?

- Você não está feliz?

- Estou exigindo meus direitos, isso não tem nada a ver com felicidade!

- Você está bravo comigo?

- Olha, não estou bravo. Só estou atrás de uma relação profissional, para que tudo funcione bem. Eu cuido da minha vida, você cuida da sua. Que tal?

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Sistema

Descobri: eu não gosto de exaltações... Não, não gosto. Minha irmã, argumentando sobre o quão falhas são as bolsas de valores e o quão burros foram os capitalistas todos que não aprenderam nada com as lições de 1929, exalta-se. Eu odeio isso. Gosto de razoabilidade. Razoabilidade seria ficar menos irritada para tentar demonstrar contundência, e gastar mais tempo investigando o máximo que puder. Afinal: quais discussões ocorreram após 1929? O que os economistas da época disseram? Como o governo reagiu a isso? Por que determinadas medidas foram tomadas, e outras não?

E aí observo as outras pessoas, e há o mesmo fenômeno por toda a parte: ninguém está nem aí, nas discussões do dia-a-dia, para a razão que sustenta (ou não) cada argumento. Fala-se de política, de aquecimento global, de planejamento familiar, temas importantíssimos, sempre na base da exasperação como recurso lógico principal. Arthur Schopenhauer escreveu o pequeno porém curiosíssimo "Como vencer um debate sem precisar ter razão". Por um lado é uma pequena obra irônica, satírica. Mas o curioso é que a muitos realmente chama a atenção, e digo a quem: aos letrados. Aos educados nas escolas do filosofismos. Esses aprenderam formas tão amenas de tentar vencer um debate por meio da razão que atrofiaram no resto. Para todo o resto da humanidade, o livrinho é dispensável, supérfluo total.

A gente já sabe. Já nasce sabe sabendo. Tá nos genes, tá armado aí dentro da gente. Discordaram: grite. Ameaçaram: ataque. Duvidaram: insista. Muito diferente do que ensina a escola dos letrados. Discordaram: ouça. Ameaçaram: dissuada. Duvidaram: pondere.

Já não me deixo surpreender com a violência argumentativa das pessoas em geral. Vou é me deixar ficar curioso. Vou estudá-la. Vou entendê-la. Vou continuar tentando responder minha questão fundamental da existência: por que as pessoas fazem o que fazem, e não qualquer outra coisa?

segunda-feira, 26 de agosto de 2019

Mecânico

- Eu ainda gasto tanto tempo pensando nela...

- Eu sei cara, mas deixe isso de lado, que idiotice! Quanto tempo você acha que ELA gasta pensando em você? Você é o melhor amigo dela, nada mais que isso... São outros que inspiram desejos e tristezas naquele coração.

- ... pois é, eu sei... Sei lá, vez ou outra sou tomado por uma esperança estranha, de que algo, quem sabe um dia, por inusitado que seja, por impossível que pareça...

- Sim, sim, mas olha, você se transformou em uma ilha de paz e segurança pra ela. Não há nenhuma tristeza a ser vencida mais na relação com você. Nenhum problema mais a ser transposto. Logo, você já é algo definido. Me desculpe, mas você errou. Cordial demais. Pacífico demais. Complacente demais...

- Você está dizendo que, além de tudo, isso é culpa minha?

- Mas é claro que é! Você tem muitas amizades com mulheres, certo?

- Certo...

- E sabe me dizer o porquê disso?

- Bem, eu as entendo, converso com elas, eu as respeito...

- Ah, você as respeita! Então esta é a causa do seu sucesso em fazer amizade com as mulheres: você as respeita. E sabe qual é a causa do seu insucesso amoroso com as mulheres?

- Qual?

- Você as respeita...

domingo, 25 de agosto de 2019

Buraco negro

Eu quero todas as músicas do mundo. Todas as vozes, todos os sons, sustenidos e bemóis. Quero todas as letras, todas as rimas. Quero todas as imagens, todas fotos, todos os sons.

sábado, 24 de agosto de 2019

Excessos

E foi tão forte, tão repentino, tão intenso dentro de mim, que não houve tempo para que meu rosto acompanhasse. Que não houve tempo para que meu olhar mudasse. Que não houve tempo para que eu escolhesse palavras mais apropriadas a um sentimento que transcendia a cordialidade e a admiração respeitosa. Paixão. Desejo. Admiração. Uma explosão instantânea de identificação com ela. Tão intensa que ficou para sempre contida dentro de mim. E então foi que ela nunca soube que havia em mim esse sentimento. Desde o segundo milésimo de interação comigo, eu já estava inteiramente tomado por esse sentimento. E eis que, para ela, sempre fui como fui. É meu normal, e pronto. Amá-la é uma obviedade. E como acontece com todas as obviedades ao longo da história, esta também dificilmente será descoberta. E o mundo não é retilíneo e bem definido como em histórias. O que eu faço para esconder todo esse amor? Para onde mando tanto desejo represado? O que fazer com os impulsos mais tenros de bons tratos e agrados? Ao fazer desse amor um amor secreto, tornei-o infinito. Eu gosto dela mais do que de mim. Sem nunca ter declarado todo esse amor, sou dela o "único triunfo", a amizade masculina que deu certo. Teria dado certo, sem tanto amor assim? Sem um amor tão grande que se dispõe a se esconder, assim, voluntariamente?

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

Eu

Adoniran Leblon é o que escreve porcarias. É o que não está nem aí. É o que não se importa com o amor dos outros; mergulha no próprio coração e esmiuça todos os cantos até se afogar de tédio com essa infinita monotonia de diferenças sem fim. Adoniran Leblon não pensa antes de se expressar. Expressa o desespero de pôr pra fora do jeito que vem. Adoniran Leblon não tem critérios, não se policia. Adoniran Leblon é um eu meio outro eu, o lado de mim que é pra dentro, sendo portando despudorado por não ter autoria de nada disso que nasce sem controle. Adoniran Leblon é um espelho fosco onde vejo meus contornos. Adoniran Leblon é um rascunho de possibilidades irrealizáveis. Adoniran Leblon é um passado que eu não vivi. Adoniran Leblon... um amigo e tanto!

quinta-feira, 22 de agosto de 2019

Desamando

Andavam pela rua e sorriam das coisas miúdas, sem que grandes preocupações lhes roubassem o tempo de viver. Mas tinham medo demais de macular tanto interesse recíproco com qualquer jura de compromisso. E assim foi que esse amor germinou pra dentro e implodiu numa distância que não agradava a nenhum deles, e nada conseguiam fazer para transformar a saudade em sorrisos de novo.

quarta-feira, 21 de agosto de 2019

Triângulo

Ah M., querida... Fiquei sabendo que não estava mais namorando, e dei pulos e mais pulos de alegria, e comemorei até o instante em que lembrei que era eu ainda quem namorava. E ainda namoro. Deveria eu magoar uma pessoa tão boa por conta de meus assuntos mal resolvidos? Quando aceitei namorar a S. não foi como que assumisse o compromisso de superar todos os meus problemas ou de ao menos guardá-los para sempre no alçapão profundo de minha intimidade, de modo a jamais permitir que interferissem na ordem do mundo?! Mas quero terminar, como quero. Não sei qual a razão dessa sede de coerência, não sei porque é tão difícil assim contrariar os próprios sentimentos... E, no entanto, sei que não me ama nem me amará. M., meu amor! Nunca vai saber o tamanho dos sentimentos que nutro por você, nunca vai entender a natureza desse amor que deixo orbitar sua vida de longe, numa órbita perfeitamente circular desenhada para nunca se aproximar nem nunca se afastar nem mais um tanto. Saber que são outras pessoas as que movem seu coração dói, mas já doeu mais. Aprendi a esconder no fundo de minha alma meus sentimentos, e a conservar na roupagem social somente a fração amizade desse amor, que é a fração aceitável, que é a fração que não gasta, que é a fração não egoísta. Eu sofro por te deixar não minha sem brigar, e não entendo porque aceito isso. Mas é fato: prefiro assim. Prefiro ter pra sempre um acesso à sua vida, como amigo, do que o risco de diluir tudo o que podemos sentir um pelo outro nas profundezas obscuras de um amor relâmpago. Conservador demais? Medroso? Covarde? Ou heroico no esforço hercúleo para superar os impulsos mais imediatistas? Com sinceridade: não sei dizer. Sei que amo você e que escondo esse amor dentro de mim como meu segredo mais bem guardado, e sinto que é o preço que pago para não perder você da minha vida. O resto são conjecturas de uma mente e um coração perturbados, que adorariam entender mais dessa realidade que lhes escapa e lhes envolve ao mesmo tempo.

terça-feira, 20 de agosto de 2019

Tango

Ré Fá Si, Buenos Aires Café: tango. Fones de ouvido fazendo meu mundo secreto. E vou passando pelos blogs das pessoas que põe a alma do avesso, que vomitam o lado de dentro, que gritam pro mundo, do alto do Everest: eu! sou eu! Um grito no vazio, e eis que uns, aqui e ali, escutam. Vou vendo as vidas dos outros e entendendo que nestes últimos anos eu morri. Sim, é isso, que outra explicação há? Eu morri... A vida que borbulhava dentro de mim, que pensava, que queria, que sonhava, que dançava no escuro: cadê? Onde? Deixei esses anos sérios diluírem-na para sei lá onde. E agora tenho que reconhecer que morto estou, e que é algo morto que olho o mundo. É um momento importante, afinal esse tango tem qualquer som de que renascer é possível. De que a morte é inevitável, e que nem por isso é um fim. Vou renascer num agudo qualquer, num desespero novo, que não sei bem aonde será. Onde está a vida mais prazerosa de se viver? É só isso que quero saber... quero sentir esse sabor delicioso, que tantas vezes experimentei aqui e ali, mas que se dilui em seriedades inúteis. Seriedades que nos fazem humanos ao nos roubar o melhor de nossa humanidade. Odeio as seriedades.

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Saúde

A cada tosse, vai-se embora uma Hiroshima num canto qualquer do meu cérebro. Vista turva. Isso é uma cadeira ou um puf? Desabo em cima e não percebo a diferença. Os olhos ardem: o alto-forno de uma siderúrgica. Pelo nariz escapa um pântano selvagem e indomável. Uma aspirina, sono, cama. Um afago na peruca despenteada. Falta o afago, falta o afago...

domingo, 18 de agosto de 2019

Necrófilo

Há sempre mais no mundo. Me apaixono e jogo na calçada. Não piso e cuspo e chuto por apego ao glamour da aura de homem respeitoso, mas confesso que há em mim o impulso. Amei, ardeu, queimou, já era, já foi! E dói, e dói tanta a saudade! E não quero que volte, não quero de novo. Entende? Já sentiu isso? Aquela menina da faculdade, aquela conhecida da viagem, aquela namorada inusitada, aquela paixão das cartas sem fim... Que saudade sem-vergonha, de dar nós nos dedos enquanto escrevo. E não quero que volte. Não quero reviver. Não quero que seja possível. Gosto da minha galeria de sentimentos extremos.

sábado, 17 de agosto de 2019

Dos espelhos

A Cássia queria prestar o TOEFL, um exame de inglês. Eu a havia encontrado ano passado. Ela estudava os pormenores das gramáticas e sabia todas as regras. Verbos regulares e irregulares. Coisas contáveis e não contáveis. Só havia um problema. Ela não falava.

- Fico nervosa quando penso que vou falar para alguém que sabe mais que eu.

Combinamos que ela me enviaria áudios pelo WhatsApp, para praticar.

E nunca mandou. E se passou um dia, uma semana, um ano.

E eu insistindo, insistindo. Passei o último mês escrevendo para ela todos os dias, explicando que não importa o conteúdo, importa que ela vença essa barreira que a faz paralisada quando ela tem, sim, algo a dizer. Esse perfeccionismo que a transforma em silêncios.

Briguei e insisti e fui claro: desse jeito, sem chances. Expliquei tudo de trás pra frente, de frente pra trás, de lado e em cores diferentes. Até que, finalmente, ela enviou um áudio. Quarenta e dois segundos. E eu não perdoei. Elogiei mas com ironia e sarcasmo ácidos: parabéns! Esse levou só treze meses, quatro dias e duzentos e oito minutos pra chegar! Nosso objetivo é continuar reduzindo o tempo até chegarmos a um minuto ou menos!

À noite, depois do jornal, fui organizar os arquivos do computador. Encontrei esse arquivo, Artista.txt. Que eu havia começado a escrever em 2010 e desde então, nove anos, oito meses, dezessete dias, seiscentos e trinta e quatro minutos depois, nunca mais continuei.

A gente só aprende as lições que ensina.

Mais das métricas

A minha métrica é a felicidade, a alegria pessoal vivida, sentida, experimentada.

Mas reconheço que há uma outra métrica, que pode talvez ser dita universal, que prioriza a originalidade, a complexidade agregada, e essas coisas. Assim, um livro de piadas que me faça rir é um bom livro para mim, mas uma grande obra filosófica, por mais merecimento que tenha na história do pensamento universal, só será boa para mim se eu me sentir, de alguma forma, feliz ao lê-la (pode ser uma felicidade sublime, contemplativa... não estou associando o mérito à gargalhada, mas apenas a um sentimento de prazer bom).

Aí é que, agora me ocorre, os bons livros se dividem em duas categorias, se tentarmos unir minha métrica à métrica universal. Existem os bons livros bons e os bons livros ruins. Os bons livros bons são aqueles tidos por todos como bons. Platão, Aristóteles, Marx e Weber são bons livros bons, assim como Shakespeare e sei lá mais quem. Já livros como A Expansão da Memória, de Luís Carlos Eiras, de 1986, se forem conhecidos de alguém mais além de mim, provavelmente serão considerados no máximo como uma ilustre porcaria. O mérito desse que citei, dirão, talvez seja o de ser uma sátira da informática escrito numa época em que a informática ainda engatinhava. Só isso. Mas, em termos de literatura mesmo, de estilo, impacto filosófico e tudo o mais, deve ser considerado pelos caras da Academia como um livro ruim. Já eu o considero um livro bom. Então junto as duas definições e tenho aí um exemplo de um bom livro ruim. Outros exemplos de bons livros ruins: Tratado Geral dos Chatos, de Guilherme Figueiredo, e O Guia do Assaltado, de Roberto Schneider e Vilmar Rodrigues (foram precisos DOIS para escrever esse!). Nenhum desses custará mais que US$0,70 em nenhum sebo do mundo.

Claro deve ser que um bom livro ruim não precisa, necessariamente, ter esse viés de tosquice desvexada dos exemplos acima. É mais uma questão de gosto mesmo. Para quem não gosta de Woody Allen e considera suas peças uma literatura menor, um recorte mal feito de questões que estão muito mais bem abordadas em outros lugares, tratar-se-ão de livros ruins. Como eu gosto de Woody Allen, então, passo a considerá-los também exemplos de bons livros ruins.

Até aqui, me preocupei só com terminologia, o que é uma chatice só (cf. Figueiredo, 1975, que também critica uso indevido de citações). Tenho, contudo, algo a acrescentar. Vou defender que os bons livros ruins são MELHORES que os bons livros bons. Ou, ao menos, que é muito mais nobre a admiração por um bom livro ruim do que a admiração por um bom livro bom.

Vamos lá... Ao admirar um bom livro ruim, você está assumindo ter tido prazer frente a uma arte menor. Então está valorizando o livro com base unicamente em um sentimento que você experimentou, e não em nenhum mérito do livro em si (já que, por definição, esse mérito nem precisa existir!). Você está declarando gostar da vida, valorizar a felicidade. Está dizendo que encontrou algo que tomou seu tempo mas que, como dentro de si algo se sentiu bem, o tempo não foi perdido. Está celebrando a simplicidade e ao mesmo tempo mostrando que você não se vende a padrões estéticos externos, já que sendo o bom livro ruim provavelmente uma grande bosta que não vale nada, declará-lo como algo bom é equivalente a colocar um piercing ou uma tatuagem em um mundo em que ninguém o faz. É equivalente a pintar a casa de verde num bairro em que todas as casas são cinzas. Todos os olhares serão de "hã? Tá louco!". E sua resposta, íntima ou em alto e bom som, será: "que é que tem? gostei, ué!".

Já gostar de um bom livro bom é algo muito suspeito. Talvez só na microscópica minoria dos casos trate-se de uma admiração genuína. Mas, em geral, gostar de bons livros bons levanta suspeitas de elitismo, de fraqueza nos julgamentos estéticos e morais, de falta de originalidade e até mesmo de falta de dedicação ao assunto. Se você realmente gosta de livros, não é possível que não tenha ainda achado algum por aí de que só você goste, um autentíssimo bom livro ruim. E vou ainda mais longe... Não é apenas DOS OUTROS que devemos desconfiar quando dizem gostar de um bom livro bom. É de nós mesmos. Será que realmente captamos a profundidade filosófica da obra, vislumbramos uma nova idéia, e tivemos pequenos orgasmos intelectuais a cada parágrafo, ou será que estamos desfrutando apenas de uma sensação de fartura de nossa vaidade, que acabou de se alimentar de um requintado e reconhecido pedaço literário? É em geral difícil saber a resposta, tão propensos que somos ao Auto-Engano.

  Sei que vão dizer que estou construindo tudo isso apenas para defender meus péssimos livros como portadores de algum mérito. Não, não é isso, estou só registrando a idéia, talvez sob seu palpite mais uma idéia ruim dentre outras tantas do livro. Mas, ainda que estivesse falando tudo isso apenas para me defender, reconheça que fico com algum crédito no final... Afinal de contas, não é muito mais interessante defender um livro admitindo a hipótese de que ele é péssimo ao invés de fingir ser o único no mundo a achar que ele presta?  E não é, por fim, uma sacada de mestre dizer: "tá, o livro é ruim! mas se ele te agradar, o fato de ser ruim frente a critérios estabelecidos é ainda uma razão a mais para que você o valorize!". E é aí que os invariavelmente pessimistas com problemas psicológicos (o tipo de gente que jamais deveria ler Freud) vai dizer: "se eu admitisse tudo isso, teria que reconhecer que um livro ruim que ninguém valoriza me divertiu, e isso revela antes de mais nada algo sobre mim, não sobre o livro. Qual a vantagem de descobrir que seu íntimo se identifica muito com algo que todo o resto do mundo desvaloriza?". Quanto a esse tipo de gente, que não sabem se bastarem da própria companhia em clima de paz, não posso fazer nada. Não sei se o Figueiredo reservou um capítulo a eles, mas acredito que sim! Caso contrário, já é hora de um volume 2, com melhorias!

Óbvio

- Não entendi ainda... Por que foi mesmo que você saiu de casa da primeira vez?

- Olha, eu dizia que era pra ficar mais perto da faculdade. E eu dizia isso com toda a convicção do mundo, com toda assertividade possível. Mas a qualquer um minimamente ciente dos fatos, evidentemente não era só isso. Morando a vinte e cinco quilômetros da faculdade, mesmo com o trânsito todo dessa enorme metrópole, o deslocamento diário era plenamente possível. Acontece que eu queria viver por minha conta. Ficar longe da minha mãe, da minha tia, dos problemas de casa. Queria fazer minha rotina e ter meus jeitos sem interferências alheias.

- E aí ficou um ano morando fora, não foi isso?

- Exatamente.

- Bom, e então, por que voltou? Não deu certo?

- Em um certo sentido deu muito certo sim. Eu saía para ir aos lugares de que gosto, sem preocupações com horários ou grandes satisfações. Também estava sempre de portas abertas para meus amigos. Essa era uma coisa que eu amava: minha casa estava ali do lado da faculdade, e meus amigos a viam como um refúgio próximo, sempre acolhedor. Então às vezes eu estava estudando, ou vendo TV, naquela quase-melancolia de se estar sozinho demais, e o interfone tocava, e eu era invadido por cinco ou seis pessoas que não tinham nada pra fazer mas que faziam questão de ficarem todas juntas, conversando. Era um paraíso. De volta à casa da minha mãe, por várias razões, isso já não mais acontece. Agora a maioria dos meus amigos ou mora longe ou têm horários não condizentes, e mesmo eu estou em casa apenas uma fração do meu tempo, pois por trabalhar e estudar longe passo também boa parte do dia me deslocando de cá a lá.

- Certo, mas o que explica o seu retorno então?

- Sei lá... em meu íntimos há muitos conflitos nesta questão. Não queria deixar minha família sozinha. Não queria eu ficar sozinho. Num apartamento não posso cantar loucamente, como faço em casa de tempos em tempos. Não sentia um completo alívio de minhas tensões por falta dessa bagunça solitária. E tenho muito medo de sentir uma culpa sem fundo por deixar minha família se resolvendo com seus próprios problemas, mas ao mesmo tempo tenho uma certa frustração por não ser capaz de contornar todos os percalços que se apresentam e conseguir interferir nos problemas do meu lar familiar de forma realmente eficiente.

- E voltar pra casa ajudou em algo com relação a isso tudo?

- Não.

sexta-feira, 16 de agosto de 2019

Só mais um

Eu não tenho a menor idéia do que fazer da minha vida. Tenho tantas possibilidades diante de mim no momento que me sinto até um tanto quanto sufocado, confesso.

E daí que tenho incômodos profundos? Que dentro de mim o universo se vira do avesso? E daí que vejo problemas e mais problemas no mundo e tenho dentro de mim respostas, soluções, palpites bons? Quem vai ouvir? Como vou parar o mundo para que escutem?

E daí que minha namorada tem a vida toda nos trilhos, encaminhada, é uma pessoa em quem eu posso confiar e está plenamente determinada a se dedicar a mim? Está apaixonada realmente? E daí? E daí que o que sinto por ela às vezes vacila?

E daí que as coisas são?

E daí que há tantas pessoas assim nesse extremo da confusão ebulente? E daí que sou mais um?

quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Receita

É assim que faz pra se criar magia, pra que o novo tenha graça...

Estudar direito não basta, tem mesmo é que tomar cacaça

E rir até de rima sem graça.

Feliz por dentro, sem critério, sem rodeio

Rir do que é tonto, inútil, besta e fútil. Assim é que se faz pérola de um tosco devaneio.

A gente se reúne. A gente ri.

Não vê o que fez.

E é só assim que se faz.

quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Deprimido

Não há muito o que fazer quando não se acredita nos compromissos.
Vão se esvaziando todas as atividades, as ocupações.
E meus desânimos desincentivam minhas forças.
E minhas forças se minguam tristes.
E meus silêncios se emparedam.
E minhas paredes esfriam.
E meus rins se cansam.
Meus pulmões param.
Meu ar cessa.
Morro.

Não há muita poesia numa vida de dúvidas.
E minhas dúvidas engessam meus dias.
Nada acontece, há anos.
Os dias pararam.
Estou parado.
Estático.
Parado.

Outro dia quis ter outra vida,
Uma vida diferente dessa,
Uma vida com ânimos.
Uma vida de risos.
Existência feliz.
Sorrir sempre.
Olhar bom.
Feliz

A depressão é assim funda
Funda e imunda e suja
E pegajosa e oca
e infinita
pra baixo
f
u
n
d

o

terça-feira, 13 de agosto de 2019

Rascunho

Ele saiu de casa. Subiu os sete quarteirões até o fim da rua e virou à direita.

Desceu as escadas. Estava um pouco de sol e ofuscou-se de início. Caminhou decididamente rua acima, até dobrar à direita e continuar seu caminho.

-.-

Faz onze anos que comecei  escrever isso.

Só achei hoje.

Vejo que não acabou.

Vejo que não foi a lugar nenhum.

Vejo que nem sei para onde ia.

Vejo que é como a vida.

segunda-feira, 12 de agosto de 2019

Deprê

Faz tanto tempo que acabou a Segunda Guerra Mundial! A Guerra Fria até teve lá suas emoções, mas não foi a mesma coisa. Agora o mundo é uma monotonia só. Esse papo de terrorismo, com uma ou outra explosãozinhas em que morrem dez ou vinte pessoas, num espaço de anos... Qual é hein? Quando as Torres Gêmeas cairam achei que a coisa ia realmente pegar fogo. Que começariam a caçar os culpados mundo afora, e que esses explodiriam cada vez mais coisas. E que os inocentes seriam perseguidos também, por via das dúvidas, e que aí finalmente minha vida começaria a ficar emocionante. Mas nada, o mundo apenas vai seguindo, sem graça, seus dias normais.

domingo, 11 de agosto de 2019

Estética

Há pessoas que se importam muito mais com a foto do que com a paisagem. Que sentido há nisso?

- Gosta de literatura?

- Amo literatura, amo os livros!

- O que tanto gosta na leitura?

- As histórias, os estilos, a forma com que os grandes autores revelam os meandros mais escondidos da alma humana, em diversas situações distintas, é apaixonante!

- E por que diabos você não quer a casa cheia de gente no sábado!

- Não gosto de bagunça!

- Gosta de literatura e não gosta de gente?

E esse é só um ponto... O que dizer então dos críticos, de forma geral? Críticos são seres inferiores. Em geral eles têm um conjunto vastíssimo de informações prontamente disponíveis em seus cérebros, e são capazes de fazer associações rápidas entre essas informações e as obras artísticas que analisam. O que, em princípio, tendemos a associar a alguma espécie respirante de cognição minimamente desenvolvida. Engano.

Tendo uma clara visão do desobjetivo da vida e entendendo que a felicidade é a melhor experiência que um ser vivente pode desfrutar, podemos sem grande dificuldade entender que inteligência é a habilidade de utilizar-se dos recursos disponíveis num dado contexto para alcançar a felicidade ou aproximar-se dela tanto quanto possível. Nessa definição de inteligência, fazendo-se uma comparação entre um crítico, uma pedra e um imbecil, temos que o imbecil sofre uma vantagem fenomenal. Em suas mãos, tudo é transformável em algo feliz. A pedra recai no ponto intermediário, sendo que nada em contexto nenhum afeta-lhe o humor em nenhuma direção. Já o crítico está no extremo oposto do espectro de inteligência, como o ser mais ignóbil que as estranhas combinações de aminoácidos jamais conceberam... Isso porque são extremamente hábeis na arte de colocar tudo em uma perspectiva desanimadora. Não há nada no mundo, aos olhos dos críticos, que não apresente sérios problemas, sérios vícios, desvios da perfeição...

Sei que aqui muitos argumentarão...

- Mas péra lá! Então está dizendo que devemos aceitar tudo no mundo como se fosse algo bom, sem jamais enxergar pontos em que as coisas possam ser melhoradas? Quer que a arte jogue ao lixo seus critérios? Que a capacidade de discernimento do cérebro humano seja jogada às favas, às cucuias, ao diabo que a carregue?

Não, não. Não estou colocando em minha definição de inteligência, em sua conexão com a importância da felicidade, a capacidade crítica. Trata-se na verdade de um foco na POSTURA crítica. Trata-se de uma atitude, de uma forma de vida. Explico melhor... Suponha que está assistindo um filme bem idiota, feito às pressas, com pouco orçamento e sem o menor insight filosófico. Assuma, apenas, que o filme foi feito por novatos em cinema que se divertiam com o que estavam fazendo. Podemos assumir que, sem precisar ser um especialista na arte das telinhas, você é plenamente capaz de enumerar centenas, se não milhares, de defeitos nesse filme. A atuação dos atores, escolha de cenários, iluminação, sentido das tomadas, sequencia do roteiro, ênfases escolhidas para a história... e assim vai. Minha questão é: por que diabos esse conhecimento deveria, obrigatoriamente, minar sua capacidade de se divertir com o filme e fazer da experiência de assistí-lo algo desanimador e tedioso? Será que seu claro discernimento sobre os problemas existentes acabam por minar sua capacidade de enxergar, para além da névoa densa de críticas, a alegria e a naturalidade humana que se esconde por trás do trabalho?

Note que não estou querendo inferiorizar os críticos por eles serem capazes de tantas observações contundentes sobre os aspectos deploráveis da maioria das obras humanas de qualquer espécie. Estou querendo inferiorizá-los porque são chatos sem graça, e considero gente assim uma espécie de existência menor. Fossem eles chamados a participar da elaboração da obra, o que teriam sido capazes de fazer ali, durante o nascimento da arte, com todo seu conhecimento crítico? Posso até assumir que teriam induzido substanciais melhoras (embora não julgue essa a possibilidade mais provável), mas é para isso que a capacidade crítica deve servir: para promover melhorias sempre que as ocasiões para tal se tornarem propícias, pois isso está de acordo com nossa visão de felicidade e nossa definição de inteligência: promover uma melhoria em algo que está nascendo é algo produtivo e que gera realização e alegria em todos os envolvidos. Criticar, sem nada produzir com isso, algo já existente, gera o que? Apenas nos priva de um tempo precioso da vida que poderíamos ter investido na arte da identificação de aspectos felizes da existência.

Podem dizer que sou incoerente por criticar os críticos. Onde na vida está escrita uma imposição suprema por coerência? Ao menos, no resto do tempo, sou feliz.

Descalço

Praia. É impossível quem não goste do mar. Não que não exista essa gente, mas não são boas pessoas. A praia é a igreja de quem acredita no Mundo.

sábado, 10 de agosto de 2019

Patente

Nunca contei à minha Nástienhka das minhas solidões todas. Ou de meu amor por ela. Sou mais um Florentino Ariza, mas também quieto, nunca escrevi cartas de amor, nunca dei os sinais que deveria. O que corrói é a hipótese de que ela também já me amou em segredo. Que talvez até ainda me amasse ou que já tenha feito por diluir esse amor nas águas do tempo.

E a vida segue e esses pensamentos todos são espetáculos secretos, dos quais sei os meus, mas que a muitos acometem.

Estranho contraste entre a profunda incongruência desses espectros internos e a rápida solução proposta pelo mundo prático numa trivial reunião de mesa de bar. Olhando essas duas vidas se fundirem na minha, já que não sou nem completo recluso nem invejável boêmio, fico a pensar que nunca somos vítimas. Somos sempre co-autores das emoções que borbulham em nosso peito. Por vezes, e talvez quando menos parece, somos os autores principais.

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

Deixa

Procrastinar... Eu não sei porque faço isso, se por desgosto das coisas que tenho por fazer, ou se por paixão desses instantes de não fazer nada em que todos os esforços mentais dedicam-se a sonhar com o futuro, desenhá-lo de infinitas formas possíveis e impossíveis.

Cada fazer cessa um sonho. Eu gosto de sonhar...

Duna

Se eu fizer da minha falta de tema meu tema oficial, em primeiro lugar passarei a ter uma linha de trabalho definida. Porém, inescapavelmente, cairei também em contradição. Eu até posso ser um escritor fajuto sem assunto, mas quando começo a me dar conta disso, corro o risco de arquitetar minha auto-destruição. O que fazer? Desistir de escrever só para curto-circuitar o cérebro no nada? Escolher um assunto, afinal? Se toda mente inquieta do mundo se desse ao trabalho de verbalizar suas inquietudes sem conteúdo, quem se prestaria a ler tudo isso? Já tem muita gente pensando sobre tudo, outras vivendo coisas diferentes, em lugares diferentes e de jeitos diferentes. Bandidos, gênios, heróis, safados. Tem de tudo lá fora. Não posso só sentar aqui e aniquilar-me num simples Nada que observa? Posso... não posso?

quinta-feira, 8 de agosto de 2019

Da profissão

Eu não sou escritor ou sou escritor? Escritor medíocre, sem tema, sem linha nem bem estilo, com espasmos de falar disso e daquilo mas sem variar muito, de vocabulário parvo, truão. Sem tema e ainda com trema, vacilão. Idiota, medíocre, sem maiores convulcionismos passionais: fato. Ou talvez eu seja isso apenas e o apenas mate de vez: escritor, escritor e só... Porque em geral nunca se é só escritor. Há escritores que são poetas, outros que são romancistas, alguns cientistas, outros cineastas, turistas, repórteres, velhos, sindicalistas, filósofos. Talvez eu esteja explorando um nicho abandonado às traças: sou um escritor desocupado. É esse meu predicado, a mais pura falta do que fazer. Venho aqui à noite quando nada mais é convidativo, engatilho os dedos e não mato um boi gordo sequer... só tiros inocentes no vazio. E não é curioso que esse pequenez toda, ainda que constatada, pouco me importe? Me divirto com o barulho das teclas, com o frio nos dedos expostos. Com os traços de cada letra que vai aparecendo. Quando eu era criança gostava de olhar as palavras nos livros sem fazer mínima ideia do que diziam. Hoje escrevo minhas palavras e fico aqui olhando o colapso de cada pensamento mudo em letra. E não faço a mínima ideia do que dizem.

quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Das mentiras que me escapam

Não era problema, mas ele fez que fosse. Suas desconfianças de si, mal escondidas, transbordaram ao mundo e foram vistas como verdadeiros crimes. Crimes que nunca aconteceram. O mundo é pura aparência, é assim que é, é assim que foi feito. É este o maior desafio para aquele que vive em última instância em nome da paz interior: nada garante que sua bem construída integridade transparecerá límpida e indubitável a quem quer que olhe. Antes o contrário... Toda interpretação é turva. Entorta, dilata, omite e acrescenta do jeito que bem entender, de jeitos que nem percebe. Quem se preocupa com as aparências vai pouco a pouco aprendendo a manobrar essa caótica mecânica da interpretação para segurar o mundo ao redor funcionando a contento. Mas quanto aos que se preocupam em primeiro lugar com o mundo interior, com as decisões em si e não com as informações sobre elas, com a ação ao invés da propaganda, esses pouco tempo tem e, além disso, pouquíssima prática desenvolvem, no trato com a sempre arredia interpretação alheia. Uma saída forte é tão desafiadora quanto a transformação do carbono em diamante: diamante é só carbono, nada mais, porém com uma perfeição infalível. Há que se recorrer à perfeição infalível, integridade total. Aquele que mente muito pouco deve perceber que não poderá mentir nunca.