terça-feira, 27 de maio de 2008

Fim de tarde

Restos de uma ilha próxima trazidos pela água. Minha própria sombra, calor do sol nas costas. Barulho do vento gritando lá dentro do ouvido, entrando em meu crânio e levando pensamentos tardes afora. A cidade à esquerda, até que passos e mais passos adiante vai ficando para trás. Alguns quilômetros de praia como as praias todas foram feitas. Água, areia e verde.

Vez ou outra um avião cruza os céus como um calendário caindo no mosteiro. Vai embora e tudo se esquece novamente. Grito. Grito forte, muito forte. Não escuto nada. Estou gritando por dentro, mas não percebo. Não escuto, mas a voz já estava em todos os lugares.

Piso passo a passo nas coisas que não têm sentido, nos fantasmas que me perseguem. Castelos de cartas, castelo de areia, castelos de sonhos, castas de monstros incompatíveis com o instantâneo eterno.

Sempre amei, e a areia sabe. Nunca fiquei sem namorar. Nunca deixei que a areia ficasse sozinha. Por vezes perdi olhares de perto. Aprendi a cativá-los com o tempo. Mas corações... Corações caminham todos comigo na praia. Porque a praia não tem tempo. Porque a praia tem todos os tempos.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Teorema

Antes de olhar claramente para as coisas o interior se fazia amplo, mais amplo do que realmente é. Nesse anseio enorme de compreender o abranger interno das coisas, clama-se pelo conhecimento que transcende a mente e deixa-se tomar pela ilusão de uma verdade individual falseada como única e absolutamente única representante da realidade. Ah, como deixam-se levar todos! Principalmente os cultos, os filosofados. Os filosofados de berço então... pobres. Como nos axiomas básicos, como na mecânica elementar, levará séculos e séculos para a tinta das páginas alcançar a sabedoria desverbalizada dos instintos. E quando um dia as letras enclausurarem estas lógicas, virá o controle dos instantes seguintes e com isso implodirá o romantismo. Mais uma vez, deus perderá uma batalha derrotado pelo exército que se pôs em marcha em sua defesa. Curiosa esta oleosidade da fé. Sua verdade se possui quando não se quer transferir responsabilidade aos teoremas. Fé implica responsabilidade. Vale a recíproca.

Não deixemos contudo que as letras corram por um caminho diferente do pretendido. É fundamental, afinal, para o surgimento de uma nova ciência, que se faça a observação de uma impossibilidade intrínseca. É impossível desfrutar por completo das possibilidades da vida interior e da exterior, simultaneamente, com efeitos quaisquer que não incluam a dor da incompatibilidade.

sábado, 17 de maio de 2008

Fundamentos

Mas qual é o tamanho do universo em que permanece válido o conceito de verdade? Até qual resolução conseguimos entender existir algo parecido com justiça? Quando valores sociais implodem em segredos à resolução de um único indivíduo, continuam existindo? Não há atitude verdadeiramente áustera que não tenha sido vendida segundo as regras de marketing preconizadas pelas leis não escritas e não ditas por ninguém jamais. É loucura. Numa religião de um, ainda que esse um seja ele próprio um papa ou o próprio messias, não há mais deus. E é o peso dessa ausência convivendo com a fé das mais profundas que prova a verdade concreta de todas as outras divindades. Em termos de valores morais, não há verdade em si, no acreditar, no defender... A verdade é o fluxo de compartilhar. Compartilhar decorre de ser incontido em um só.

Imagem obtida desde excelente site.

quinta-feira, 15 de maio de 2008

Onda


Pés na areia áspera. Úmida. Meus pés. Pelo princípio da incerteza, eu talvez não estivesse ali. Ou talvez estivesse mais rápido. Ou talvez estivesse pensando em outra coisa. Mas o Heinsenberg não entende nada da minha vida, então é melhor que não se meta a palpitar. Olhei pro horizonte: fato. Ao olhar para trás, a névoa noturna já havia engolido qualquer resquício de luz da cidade mais próxima. Adiante, apenas os contornos mal definidos dos morros que iniciam a grande reserva florestal dali adiante. Deitei na areia. Frio nas costas. Areia no cabelo. Barulho das ondas, vento, céu estrela e nuvens. Ouvi uma sombra se aproximando na areia. Outra pessoa andava ali. Passou. Nos olhamos sem que os rostos se vissem. Sem que os olhos se achassem. E ainda assim nos sabíamos invadindo mundos alheios de uma forma muito mais violenta e íntima do que jamais havíamos experimentado. Continuou andando e foi embora.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

Triunfo

Gêmeos, mas separados logo ao nascer. Refugiados no pior momento da guerra, a realeza temia pela vida de seus descendentes e confiou cada uma das crianças a uma família distinta. Um foi criado longe na floresta, o outro sempre próximo aos altos círculos.

O curso da guerra foi revertido, o tempo passou. Embora sem o menor contato por anos e anos, ambos tomaram gosto pelas artes da espadaria. O irmão nobre, obviamente, dominava muitas outras artes de combate, como a literatura, a filosofia, as linguas diversas e a geografia. Nestas destacava-se como imbatível, porém na espada jamais havia conseguido vitória contra os maiores nomes do reinado.

O irmão plebeu soube cedo de seu parentesco secreto. E quando sua fama tornou-se incontida por vencer com classe as mais hábeis lâminas da Europa, foi procurado pelo irmão nobre para um duelo. Todas as noites olha para o corte em seu braço e sente a dor fria em sua orelha - um golpe de misericórdia. Dói na pele a lembrança do secreto desistir. Porém dói mais o peso de esconder o que, exceto por um delicado capricho da História, e só por isso, seria sabido por todos.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

Tênue

Segredos são para serem contatos. O que levo comigo não é um segredo. É algo cuja leve idéia de menção me causa náuseas. Levo arrependimentos pela incompetência em guiar minhas verdades prudentemente às margens dos idealismos cultivados pela solidão da humanidade. Nenhuma letra do que se escreveu sobre sentimentos é verdade. Não neste mundo. Sentimentos dos mais verdadeiros devem ser tão intensos quanto suaves, e se consomem numa sede calma, serena porém constante, que não admite o tempo longo de sentar para escrever. Eu não devia ter lido o que li. Não devia ter ouvido o que ouvi. Porque seria inevitável ver quem vi, e agora a inspiração é poluída por essa coisa que se quer tão transcendente que vai por conta própria, degrau a degrau, minando sua realidade mundana.

domingo, 4 de maio de 2008

Sangria

Não vi o processo. Fechei o olho. Abri e o mundo já era outro. Virei um rabugento. Ainda sou contido, não explodo, não percebem. Mas hoje meu quarto é meu outro mundo, um espaço meu. Não existe mais o simples ato físico de entrar no meu quarto. Existe o ritual religioso de me desligar da Terra. E quando invadem meu santuário, odeio. Ainda vou resmungar, eu sei. Tempos atrás eu gostava de mostrar meus livros. Era a exposição vaidosa de posses materiais conseguidas a moedas sofridas. E eram diferentes. Meus livros já foram meus moicanos, minhas tatuagens, minhas botas diferentes, minha jaqueta reacionária e meu cabelo comprido. Hoje não. Hoje eles guardam pedaços de mim. Começam a olhar meus livros e fazer perguntas. Me sinto desnudo. Incomodado. Quero mandá-los embora. Quero mandá-los tirar a mão dali e deixá-los todos em paz. Neurótico? Rabugento, rabugento talvez, só rabugento...

Olha! Você se interessa por genética? Por que é que tem um livro de dinâmica aqui? O que é esse livro sobre a louruca?

Calem a boca! Não lhes diz respeito! Acham que entenderiam? Acham que entenderiam se eu explicasse como cada livro que ocupa os pedaços da minha mente compõe a história de meus anseios, meus sonhos amputados ou ainda por aflorar, como cada um deles guarda em segredo uma história de perturbações e de desespero para que eu me encomunhasse com o resto do mundo... Acham que entenderiam que eles são minha chave secreta para momentos de solidão que me recompõe de dentro pra fora e me permitem tocar novamente o mundo? Fossem capazes deste tipo de entendimento, jamais agiriam como agem! Jamais entrariam aqui como fuinhas adrenaladas remexendo as coisas para fora de lugar e cuspindo interrogações sem sentido e bestamente invasivas. Entrariam no meu mundo com um respeito solene que não precisaria de modo algum ser chato ou sem graça. Bastaria não ser vulgar. E olhariam. Contemplariam. Sentiriam. É por isso que existem tantos estúpidos no mundo hoje. As pessoas não param pra sentir. Sentir explica muita coisa. As pessoas não se dão o tempo necessário para sentir. E quando sentem algo, quando o sentimento lhes rouba a atenção, não confiam no que sentem. Ignoram. Pulam por cima. Idiotas... Vão embora. E deixem meus livros em paz. Deixem meu mundo em paz.