sábado, 30 de maio de 2009

Todo dia


Todo dia Maria lava roupa. Todo dia o mundo gira. Todo dia Tiago lê e-mails. Todo dia o mundo gira.

Todo dia um poeta morre.

Todo dia uma palavra nasce.

Todo dia o mundo gira.

Todo dia Heróclito está certo.

Todo dia é urgente. Todo dia tem uma última vez.

quinta-feira, 28 de maio de 2009

Método

- Sabia que o pai de Nietzsche, o Karl Ludwig, era um pastor protestante fanático? Quando Nietzsche diz que Deus está morto ele estava é perturbando o pai, era uma crise familiar acontecendo ali!

- Não sei... Ele fundamenta bem seus pensamentos de que Deus é uma invenção humana, de que a divindade como se apresenta não faz sentido e nem é viável à nossa sociedade, e que nos submetermos cegamente à invenções literárias do nosso passado é fraqueza pura. Algo assim, se entendi direito, embora não seja nenhum especialista... Acho que não era só a questão familiar da briga com o pai não.

- Não, não era só isso, claro. Mas a inspiração familiar é uma coisa muito forte. Mesmo uma mente sagaz e atenta como a de Nietzsche acaba por perceber sua revolta com a cultura religiosa como uma dedução lógica de sua própria mente e nunca chega a explicitar a parcela de influência que sua vida pessoal, por vias irracionais, tem no processo. Nossas histórias de vida nos engolem, creio que esse seja o ponto. Ele chegou às conclusões que chegou por vias lógicas, mas talvez tivesse adotado outras vias lógicas, tivesse tido outra infância, outra ascendência.

- Não está simplificando muito não?

- E quem disse que não pode ser simples?

quarta-feira, 27 de maio de 2009

Tão pouco


Não suma. Eu só quero que você não suma. Você não. Eu não esperava você aparecer. Eu não acreditei que nos conheceríamos tanto. Eu não sabia que seria tão rápido. Agora só quero que você não suma.

É o desencanto do mundo em nossos pequenos mundos? De perto, todo anormal é normal? Minhas poesias continuam dentro de mim. Tuas aparições ainda inspiram novas idéias.

Ou é medo? Respeito tanto você, sabe disso, respeito tanto que talvez, sem querer, te desarme. De onde vem um desejo tão agudo que ao mesmo tempo é assim tão libertino, talvez se pergunte.

Corpos há muitos no mundo. Só quero sua alma. Quero seu sorriso de perto, mas dispenso seu beijo se custar qualquer inconveniência. Quero só passar por seu olhar até entender seus sonhos. Até rir suas graças todas de dentro pra fora.

Talvez estranhe o comedimento de meus abraços. Mas sou possessivo. E mais que outros homens. Só quero sua alma. Quero estar dentro de você até de longe. Quero te preencher inteira até quando não estiver pensando em mim.

Só quero mudar as cores das coisas que você vê. Quero mudar a graça das coisas bobas que você vê na TV. À noite, jogada no sofá. Eu aí perto ou longe. Só quero que sinta meus tapas indignados protestando contra suas bobeiras num quase abraço que nunca se rende. Direto de minha mão, ou ainda que eu esteja do outro lado do mundo.

Não quero mudar o mundo. Não quero fazer desabar contra você a ira de convenções seculares.

Mas, diz pra mim, que legislatura há contra a comunhão invisível das almas?

Só quero sua alma. Só quero estar em seus pensamentos. Ainda que não esteja pensando em mim.

Só quero que entenda que você me é assim.

Íntimos


Hoje eu fui à praia. Precisava caminhar. Areia. Vento. Cheiros, ondas quebrando. Precisava caminhar. Santos. Praia Grande. Mongaguá. Itanhaém. Eu não parava. Não tinha energias suficiente para ficar ali parado. Tinha que andar como se conseguisse manter meus pensamentos todos ao menos um passo atrás de mim. Sempre.

E eles me seguem, me atropelam, correm atrás de mim.

Entre Itanhaém e Peruíbe há um pedaço de praia deserta. Gaivotas, com letra maiúscula, e umas poucas das de letras minúsculas.

O céu nublado: olho e penso que é melhor assim. Nos sentimos mais íntimos nessa semelhança recíproca.

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Breve......

Eu ouvi a música tantas e tantas vezes
Todas pensando em você
E fui ao piano
Tirei nota por nota
Nem sabia das partituras
O que eram as colcheias
As semibreves e as mínimas
Mas escrevi
Escrevi e pratiquei
Tocava e tocava
Toda tarde
Tocava e tocava
Copiando aquela voz doce
Aquela voz doce que você mandou pra mim
E aí um dia, eu sabia,
Um dia eu iria tocar pra você
E você sentiria
Das coisas que senti
E eu e o piano ficamos íntimos
E você nunca mais apareceu
E assim ficamos
Como dois estranhos

domingo, 17 de maio de 2009

Widescreen

Cinema. Só eu, ela ao lado, e como se ninguém mais. Começa o filme.

Passam-se minutos. Dividimos a pipoca, mãos se tocam num pretenso acidente de acaso movido pela fome do estômago. Mentira. Com o sono acarpetando as ousadias, levanto o apoio de braço e a convido ao aconchego do meu abraço. Nos ajeitamos.

O que estou fazendo? Essa história de novo? Ela de novo? Já não bastam todos esses anos e anos de histórias? Essas idas e vindas que borraram com tantas lágrimas e soluços as madrugadas de saudades indevidas? Isso tudo não havia sido tão facilmente esquecido mais de uma vez?

Eu a conheço, penso. E nossa história... Por que deixar-me convencer pelos tristes solavancos do passado de que o percurso deve ser abandonado? E essa pele, esse cheiro. O braço dela que acaricio levemente enquanto utilizo as mais poderosas técnicas de concentração da ioga para continuar acompanhando algo do filme. Os seios dela que sinto com meu braço por baixo da blusa de frio, graças à geometria do abraço. Quero morder a orelha dela de leve.

E aquelas noites soluçando? E aquelas tardes quietas, de olhar parede?

Eu não sei mais, eu não sei mais... quem sabe?

quinta-feira, 14 de maio de 2009

Alicerce

Gosto de atenção. E gosto de dar atenção. E o tempo não colabora. O tempo é pequeno. Falta ar, falta comida, falta água. Mas no mundo, tem isso também: falta tempo! Tempo de mandar oi pra todo mundo que amo. Tempo de ser atencioso com tudo o que minha atenção guarda no bolso da camisa.

Meus livros na estante. Meus trabalhos esperando. Meus familiares e visitas que não acontecem. As músicas que não conheço. Os teatros que não vejo. Os sites que não acompanho. As bebidas que não preparo.

E com tanta coisa pendente, o que me move a vir aqui escrever sobre este prolongado atraso?

Que coisa mais curiosa que a vida precise pensar de si até mais do que precisa ser pra si!

segunda-feira, 11 de maio de 2009

Self

Personalidade? Eu não tenho nenhuma.

É que eu tenho todas. Abro o guarda roupa e escolho uma, logo antes de escolher a meia ou a calça do dia.

Falastrão.

Tímido.

Folgado.

Recluso.

São sete os dias da semana. Quase sempre trinta dias no mês. Cabem muitas, muitas escolhas.

Hoje eu vou cuspir em você. Amanhã vou passar reto. Na sexta lhe deixo uma flôr à porta de casa.

Você não é assim comigo? Não minta!

Você jura me amar, com seus olhos nos meus. Me deixando borrar seu batom. Jura me amar.

Que mentira que é jurar. Um desejo recluso de que não saibamos nunca mais de nossas outras verdades.

Hoje eu vou ler Nietzche.

Amanhã eu vou assistir o Faustão.

Até eu descobrir se na vida vale ser fútil ou profundo, rico ou pobre, fiel ou sincero, só deu tempo de perceber que a vida sempre quase já passou.

Você vem comigo hoje? A gente deita naquela praia, a primeira que fomos, lembra? Deita seus cabelos longos sobre meu ombro, me deixando beijar sua testa. Olharemos as estrelas. Vamos rir das nossas bobagens. Vamos falar do nosso futuro inteiro, dia a dia. Mas amanhã eu não sei.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Ambulante

Cheguei na plataforma junto com o sol da manhã. Eu e outras oito mil pessoas. Já o trem, este se deu ao luxo de atrasar um pouco. Mas veio. Trazendo mais quinze mil pessoas. Por vagão. Eu poderia descer na estação seguinte e fazer baldeação, mas hoje, só hoje, decidi fugir da rotina e das coisas e ir a linha toda até a Grécia antiga. Depois de Mauá o trem começou a esvaziar, ainda bem. Passando pelo Rio Grande da Serra já eram uns poucos que sobravam.

Na estação Siracusa sairam uns ambulantes, entraram outros. Um barbudo de manto branco segurando uma caixa de papelão com uns livros e pergaminhos.

- Bom dia, senhores passageiros. O meu nome é Platão. O meu professor se suicidou e meus alunos são inadimplentes. Cortaram a luz da Academia. Eu poderia estar roubando, eu poderia estar vendendo. Eu poderia estar trabalhando. Eu poderia não estar enchendo o saco. Mas estou aqui pensando! Trago a vocês hoje mostras da realidade imaginada e sensível.

Ele remexe em suas caixas, joga os livros pro lado e pega ou pacote com outras coisas.

- Quem estiver interessado na realidade imaginada, tenho aqui um pouquinho desse chá feito com cogumelos colhidos por epicuristas nas encostas dos Urais, coisa finíssima. Leva cinco, paga dois, enxerga dez, garanto! Quem estiver interessado na realidade sensível, tenho essa coletânea pirata de CD's emo em mp3 que eu baixei da internet enquanto deveria estar trabalhando e não achava nada legal no Orkut. Tem de tudo! Lost Kids! For Fun, Simple Plan, Fresno, Green Day, Good Charlot, My Chemical Romance... Paga dois e leva três. Se chorar, apanha!

terça-feira, 5 de maio de 2009

Endoscopia do ego

Recebo elogios. Recebo carinhos. Recebo afago. Recebo saudades. Recebo olhares.

Elogio. Acaricio. Afago. Sinto falta. Olho.

Escambo frio, podre. Ninguém gosta pra fora. Mundo egoísta. As pessoas são pra dentro. Não é? Você não é assim?

O que você quer saber de mim das coisas que não tocam sua vida? Das coisas que não ligam pra você? Nada, nada! Sei que nada!

Caçamos elogios mentirosos e esqueçemos de nós mesmos a obviedade destas enganações. Queremos o direito de livremente fingir ser o que não somos. Brincar de viver o que sonhamos. Só queremos que nos apóiem. Que nos apóiem e que se fodam em todo o resto das coisas. Carteiras esvaziem, prateleiras empoeirem, ombros pesem. Foda-se. Quero minha atenção mentirosa. Solidão é nossa moeda de troca oficial.

sábado, 2 de maio de 2009

Ficção

Ele era tímido, retraído, no que se referia ao trato social, à construção de seus relacionamentos com amigos, com mulheres. O primeiro beijo e a primeira foda vieram tarde. Mas o que demorou mesmo foi para que ele pensasse sobre sexo com essa naturalidade: uma foda e pronto. Criava sua bolha de romantismo e tinha certeza de que ela o recompensaria com a história perfeita. Amou. Amou de escrever cartas. De fazer surpresas no meio da noite. Amou de chorar saudades. Amou de guardar segredos. Amou de ser confidente até a última gota, até o último segundo, até a última fidelidade possível. Conversava com ela sobre tudo. Ouvia dela fatias roubadas de um amor divino.

- Gosto de você... Já tentei ter amizade com vários meninos legais, mas no final eles sempre se apaixonavam por mim e isso estragava a amizade. Você é meu único triunfo!

Ele vibrava de alegria, de ódio, de raiva, de orgulho. Era anjo. Era humano. Era idiota. Era vencedor. Queria só desejá-la e não conseguia descer a tão pouco. Continuava seu confidente.

- Caro amigo! Estou apaixonada!

- Como assim? Você não disse que o achava um impertinente por ficar se declarando pra você mesmo na época em que você namorava?

- Disse, mas ele insistiu tanto que acabou conquistando meu coração.

- Mas e você gosta mesmo dele? E se ele não tivesse se declarado, guardado segredo?

- Acho que aí eu o amaria ainda mais.

Raiva do mundo. Raiva de si. Só os anjos deveriam poder amar assim. E o segredo morreu com ele. Nunca souberam. Nunca saberão.