segunda-feira, 30 de junho de 2008

Indelével

Quando ele ia escrever uma carta de amor tirava todas as coisas de cima da escrivaninha. A bagunça e a poeira. Arranjava uma folha sulfite dentre as que estavam no meio do pacote, perfeitamente lisa e plana. Ajeitava sobre a madeira limpa. Usava só a caneta tinteiro, num capricho que lhe era peculiar.

E odiava sua caligrafia sofrida que parecia engasgar a cada vogal. Fazia esse esforço descomunal para endireitá-la, enquadrá-la aos moldes bem definidos de suas boas intenções. E lá iam ós engolindo os ésses. Os érres se derretendo em êmes disformes. E as linhas ondulavam incertas sobre onde encontrar o outro lado da folha. Desesperadas.

Comum que acontecesse de amassar a folha, arremessá-la ao lixo e reiniciar o ritual todo.

E no silêncio de seu perfeccionismo ele sofria essa agonia secreta de não poder apagar assim os garranchos passados de seu coração.

Detalhista

Um ou outro aspecto me escapa. Um cigarro entre os dedos. O manobrista se agitando para afugentar o frio, entre um carro e outro. Mas nem todos os detalhes eu percebo... Não percebo se há ou não limpador traseiro no vidro do carro caríssimo. Não percebo se há ou não aliança na mão da loirona que se vai.

Não percebo se há ou não sentimento nos beijos que aconteceram. Não percebo se há ou não lembranças do que eu costumo sonhar. Não percebo se souberam ou não das coisas que pensei. Não percebo se machuquei demais ou não corações que sofrem também pela sinceridade e transparência...

Sei que a noite passa, que o tempo não pára. Sei que me digo idiota por aí escondendo como inconsciência das possibilidades a profunda ciência das minhas dúvidas.

sábado, 28 de junho de 2008

Passo além

Lembrei de uma cena do famoso filme Indiana Jones - O Santo Graal. No momento em que ele está quase chegando ao graal, passando pelos últimos obstáculos. "Aquele que acredita passará", era algo assim a frase. E ele, diante de um precipício enorme, dá um passo no vazio. E quando está para cair à escuridão seu pé encontra uma ponte. De pedra, rígida, firme e sólida. Que estava ali, invisível o tempo todo sim, mas estava ali.

Quantos de nós dão esse tipo de passo no dia-a-dia? Que filosofia mais barata essa minha, com filmes assim de grandes bilheterias... Boas filosofias são as dos filmes que ninguém assiste, porque levam a insights que ninguém teve ainda.

Mas ainda assim... quantos de nós dão esses passos?

Percebo agora que devo eu, eu mesmo, dar desses passos por aí. Não adianta ficar parado olhando ao redor, esperando os outros começarem a andar assim sobre o nada cheios de coragem para ir ao encontro deles pensando: "finalmente, que gente legal que eu achei!". Ficar parado frente ao nada criticando o resto do mundo não ajuda.

sexta-feira, 27 de junho de 2008

Distinção

Conquistar uma mulher não é o mesmo que amá-la, que fique bem claro. E pode-se trocar as palavras de lugar conservando-se a verdade da sentença. Amar uma mulher não é o mesmo que conquistá-la. De fato, parece muitas vezes que estas coisas se interferem destrutivamente. Encontrar uma harmonia adequada entre amar e conquistar é arte. Vai além do que os instintos ensinam. Vai além do que a mente sabe. Vai além do que se pode ser pelo que se é.

E ainda assim é o exemplo máximo de simplicidade. Por ser de tal transcendência, não é algo planejado, sabido, dominado. É algo que, uma vez existindo, existe e pronto. Assim, dado. Assim, certo. Assim, distinto de tudo o mais.

quinta-feira, 26 de junho de 2008

Deprimido

Agora vejo que insistir em contornar os problemas do jeito fácil leva a dores maiores. Não gosto de envolver outras pessoas. Talvez antes fosse diferente, talvez eu pudesse não ter me tornado o que sou. Mas o fato é que não gosto nem um pouco de chegar perto dessas histórias. Que elas fiquem todas guardadas dentro de mim. Arrependimento. Há um certo arrependimento agora por ter dado margem a impulsos, na hora errada. Porque assim superficialmente as coisas fluem? Porque a amizade atrapalha outros tipos de proximidade? É um infortúito do acaso? Uma inépcia em conduzir as coisas ao meu redor? Ou um princípio fundamental de tudo, desses que são sempre verdade?

Estou triste. Profundamente triste agora. Oscilando entre acreditar em mim ou não, às vezes perco o equilíbrio, caio e me machuco. Derrubo outras pessoas. Não é uma sensação boa. Mas é a que estou sentindo.

O que vemos no mundo é o que sonhamos para o mundo. Enquanto nossos sonhos não mudam, a realidade mostra-se como um contraste estranho, como um "não foi dessa vez", como uma falha das coisas, ao invés da simples coisa em si. Sonhar é visitar com um pouco de ousadia os domínios da loucura. Uma viagem em que a volta é sempre triste.

quarta-feira, 25 de junho de 2008

Noite

Não entendo porque faço isso. Sempre fazendo coisas erradas contra mim para evitar fazer coisas erradas para os outros. Será essa atitude assim comum? Mais importante ainda: será ela assim inevitável? É culpa de minha estranha matriz de interesses, ou de entruncamento no rumo das coisas que faço?

Olhava de perto aquele olhar distanciando-se, acolhido pelo calor das cobertas, rendendo-se ao cansaço incomum. Deixava meus carinhos caminharem por aquela pele desonhecida na exata medida que torna fácil desligar-se do mundo sem impedir que se desligue de si próprio. E ela adormeceu. Sentia sua respiração de perto. E nunca vou entender a verdade por trás de tudo o que estava acontecendo.

terça-feira, 24 de junho de 2008

Segredos

Amores, amores que nunca se contam. Amores que não se permitem contar aos outros. Amores que se furtam a contar pra mim o que são. O que são em mim. O que são de mim. Muitos amores. Um coração cheio, uma alma cheia.

Não se cabe um mundo grande dentro num mundo grande fora. É muito espaço. Ou vai a vida, ou vai o sentir a vida.

Muitos amores. Lembranças de olhares. Cheiros. O indescritível prazer da companhia. Da conversa. A dor saudável da saudade. A euforia revigorante da expectativa. Muitos, muitos amores.

Sendo-se um pouco de tudo vai-se a quase tudo deixando-se de ser um só. Deixando-se de ser, para todos os efeitos.

Muitos sentidos. Muitas histórias. Muitas memórias. Um só eu. Ninguém. Nem uma letra. Nem uma letra é mentira. Nem uma letra é verdade.

É um certo consumo de mim mesmo este constante nascer do nada. É uma sensação estranha de sempre ser esse limiar de existir. É uma água na boca de um sabor que eu desconheço. É uma lembrança de um lugar onde nunca estive, cheio de cores que nunca vi. Amores. Amores que nunca se contam. Amores que não se permitem contar aos outros.

segunda-feira, 23 de junho de 2008

Quase onze

Eu não era mais quem sou, e sou nada do que nunca seria, sou o oposto das minhas negações do mundo, sou o discurso desmentido desmentindo. Sou uma mentira, uma mentira enoorme. Sou um mergulho em verdades verdades só minhas de ninguém mais.

Dançam em círculos como dois amantes enlouquecidos, num beco abandonado, sob a luz da última lâmpada. Dão-se as mãos e giram, giram e giram... Ele, Impulsivo, ela Cautela. E dançam passos estranhos. Passos imprevistos. Um pensa, o outro fala, um cala e assim vão hesitando entre um ser e outro de si, entre uma possibilidade e outra...

Enterrei algumas espontaneidades debaixo de terra alta, dura e pesada. Outras escapam como água por entre os dedos, fogem ao mundo e lá vivem pra sempre.

Nesses dias de tanto em tão pouco tempo, deito no trilho do trem e fico pensando nas descontinuidades da vida. Deitado no trilho do trem olho as estrelas, e escuto festas ao longe. O trem vem, o trem passa. E no meio de todo aquele barulho e daquela vibração que por instantes parece ocupar todo o universo de forma homogênea, entendo que o suceder de descontinuidades é a própria impressão digital da única continuidade que existe. Essa sucessão criações vindas de si, autopoiéticas em suas entranhas.

Falo às vezes sem pensar. Penso às vezes sem falar. Por vezes palavras doces. Noutras lanças pontudas. E sou sempre eu. Sou assim, muitos, muitos como todos são. Como você é muitos.

Deitado no trilho do trem, olho as estrelas. O universo me olha. Sabe de tudo o que fiz. Sabe de tudo o que sou.

quinta-feira, 5 de junho de 2008

Sala São Paulo


A estação de trem, Julio Prestes. Onde as pessoas passam apressadas de manhã. Aposentados mostram suas carteirinhas provando o que o rosto não faz duvidar; passam finalmente pela portinha ao lado.

A Sala São Paulo. Concertos de música da maior qualidade. Eventos. Pessoas bem vestidas, felizes por experimentarem a aparência de serem elas próprias. Silêncio. Celulares desligados.

Plataforma lotada. Todos os olhares ao longe, o trem vindo. A questão existencial metafísica profunda que perturba milhares de almas justapostas: onde é que as portas irão parar? Alguns têm lá suas regras astrológicas próprias... Outros partem para espécies diversas de adivinhações seguindo abstrações platônicas. A boa e velha preguiça científica vence por fim e o empiricismo diz a todos, sem sombras das dúvidas: cá há porta, lá não há. Amontoam-se.

Aplausos. Todos de pé. Músicos vindos de todos os cantos do mundo olham pessoas vindas de muitos cantos da cidade. Por vezes de muitos cantos do estado. Ou do Estado, raramente. A música há séculos refina e evolui nesse borbulhar de novas gerações de virtuosas pessoas capazes de dedicarem-se com afinco à exacerbação de seus pontenciais mais escondidos.

"Os bancos de cor cinza são reservados a gestantes, idosos e pessoas com deficiência física. Respeite esse direito."

"A obra que vamos apresentar a seguir é de Igor Stravinsky..."

Um vidro. Um vidro que a arquitetura da ópera escolheu ao bem do estilo e que tanto mais faz ali. Um vidro, fino, transparente. Uma película. Uma fronteira. Olham-se por ele mundos diferentes que coexistem assim, sempre assim: justapostos, olhando-se, mas tocando-se o mínimo. Um protegido da sujeira suada do outro, o outro protegido da futilidade superficial do um. O terno elegante olha o trem chegando e lhe é um espetáculo bonito, um quadro quase distante da "realidade" da cidade. O estudante cansado, já quase meia noite, olha para os vinhos nas taças de coquetel das celebrações especiais. Chegará ali um dia?

O nome é perfeito. Sala São Paulo. É Sala, é um espaço único, amplo porém acolhedor, aglutinador. E é São Paulo, na ruptura, no contraste, no convívio incompreensivelmente harmonioso de contradições tão profundas.

terça-feira, 3 de junho de 2008

Ketrina

Ele estava lá na estação de trem, esperando sua amiga aparecer.

Uma pequena criança, não mais que cinco anos, brincava de contar passos no chão, entre os quadros de exposição artística espalhados pelo saguão.

- Um, dois, três, quarenta, vinte e dois, mil e um, cinquenta!

Ele falou com ela.

- Não, ó! Tenta assim, com um pé bem juntinho do outro, pra gente ver quantos passos dá até ali.

Contaram passos pelo saguão inteiro. A mãe ali ao canto, esperando alguém e olhando tudo, suspeita. Com um olhar, ele explicou que só estava brincando.

Contaram passos de vários jeitos. Um pé depois do outro. Passos gigantes. Passos pulados. Passos com pés tortos.

Mapearam toda a estação. A amiga dele chegou, iria ambora.

A menina lhe deu um abraço de tchau e um beijo. Sorriu e foi embora, e continuou brincando.

Crianças são assim...

domingo, 1 de junho de 2008

Viagem

Antes que pudesse se esconder em seus medos ouviu gritos vindos de longe.

-Não! Não busque as terras distantes! Não busque as ilhas legendárias! Do contrário jamais as encontrará!

Balela. Blasfêmia. Burrice. Como é que se chegaria a um local precioso, um local tido pelos viajantes antigos como uma extensão do Paraíso descendo à própria Terra? Era impossível ficar parado num mesmo lugar aguardando que ele chegasse.

E foi atrás do lugar encantado. E morreu a caminho, tanto mais longe de seu destino quantos foram os passos pela busca.

E assim foi com muitos outros que o seguiram, um após o outro. Definhando ao longe.

Um, apenas um, séculos mais tarde, sentiu não ser merecedor de uma obra divina tão esplêndida, e contentou-se por deliciar-se com os relatos antigos, com o que sabia das histórias. Nesse saciar sem fim fez-se uma constante presença em seu olhar a tranquilidade relatada como única da terra prometida. E este olhar contagiou um por um todos ao seu redor. E o paraíso havia então vindo ao único que nunca furtou-se a conquistá-lo.

Triste


Isso que faço não é correto. Ah, como é ruim achar que não é correto. As músicas vão sendo ouvidas sendo ignoradas sendo sepultadas. É um breve instante de raiva das músicas. Sim, ando com uma considerável muita raiva ultimamente.

Sem você meu amor eu não sou ninguém...

Nem sei como retratar a desvontade de escrever. Nem sei me olhar de longe agora. Ou até sei, mas não há vontade. Há um certo receido de ser flagrado por mim mesmo como eu sei estar agora. Seria vergonhoso. Seria inquietante a sensação de incapacidade de reverter a realidade. O mundo não é meu. Não... o mundo não é meu.