sábado, 30 de novembro de 2019

Após

A vida que eu quero se esconde após a vida que eu não quero, sempre após. O momento tranquilo vem depois da reunião de família. O livro preferido vem depois do livro da faculdade. A música preferida vem depois do grande sucesso. E se fosse o contrário? E se a vida que eu quisesse viesse antes? E se viesse agora? Não quero esperar para ser quem sou. Não quero deixar para viver minha vida apenas após a que eu tenho que viver. Quero que sejam uma só, que minha vida sonho seja minha realidade. E não é pedir muito, como parece, é uma certa coragem apenas. Uma certa coragem apenas...

segunda-feira, 25 de novembro de 2019

Pela rede afora

- Você é feliz?
- Não sei, mas sei que você é direta.
- Não aguento mais as perguntas de sempre. De onde você é? Quantos anos têm? Com o que trabalha? E também acho que isso não interessa muito.
- Entendo. Mas essas coisas são parte da resposta. Não tem muito tempo que eu mudei para cá e agora os meus amigos estão longe. Tenho uma namorada, mas é isso. Sinto falta de algumas coisas. Mas não sei se sinto falta dos amigos, se sinto falta de conseguir usar melhor o meu tempo e levar meus projetos adiante. E você?
- Eu às vezes me sinto cansada. Tenho dois filhos. Uma mais velha, com meu ex-marido, e uma menina de três anos, com um namorado. Eu sou viciada nele, mas isso é um problema.
- Viciada em que? Como assim?
- Viciada no amor. Ele bebe. Tem exagerado. Mas eu sinto falta. Volto para ele.

Eles estavam distante. Mas se olharam. Se ajudaram.

Ainda não existe uma devida sociologia da rede. A humanidade não consegue entender nada a tempo, enquanto acontece, e depois não se interessa pelas velhas coisas da história. Ficam então abertas as duas possibilidades.

Primeira possibilidade:
A rede permite que eles resolvam suas crises internas descobrindo outras pessoas similares com quem a troca de ideias, sentimentos e impressões vai enriquecer a vida. Efeito remediador.

Segunda possibilidade:
O relaxamento produzido pela troca de ideias entre as duas pessoas vai aliviar as tensões da vida real permitindo que uma vida problemática se prolongue. Efeito analgésico.

sábado, 23 de novembro de 2019

Silvia

Tinha um certo friozinho no ombro então puxou mais a coberta. Descobriu os pés, inferno. A névoa quase negava a manhã e vidros da cabine respingavam umidade condensada. Já estava acordada, mas se negava a abrir o olho. Um misto de satisfação e arrependimento. Aquele mesmo arrependimento da primeira vez. Será que nunca ia se acostumar? Abriu os olhos, por fim. Estava só. Sozinha na boléia, no estacionamento, na estrada, nos dias, nos choros, nos frios, nos calores, nas saudades, nos sonhos e nas desilusões.

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Bala perdida

O Rio de Janeiro não muda minha vida. A Garota de Ipanema, com sua caminhada pela praia na frente do poeta já tendo acontecido há tantos anos, fez até agora muito mais pela minha vida que as mortes no Rio que se passam agora. Que me importa que morram miseráveis ou pobres ou inocentes ou bandidos de qualquer espécie por lá? O mesmo acontece o tempo todo em dezenas de guerras que acontecem pelo mundo a todo instante, não é mesmo? Não me importo. Dane-se o Rio. Que se exploda o Rio. E fico contente por não assistir mais TV há tanto tempo. Assim, o Rio também não muda na minha vida naquilo que é o impacto mais significativo e chocante da violência no Rio para milhões de brasileiros: a qualidade da programação da TV.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Um

Ela dorme com o rosto pousado em meu abraço, sobre meu peito. Ela sonha com essa união e eu me pergunto o que diabos estou fazendo ali! Não, a vida a dois não é pra mim. Os fins de semana ficam previsíveis. As saudades não têm um cantinho de solidão para acontecer. Os devaneios não se justificam, pois a vida a dois é mais burocrática, você precisa de justificativas. Vou viajar neste fim de semana. Pra onde? Não sei! Como assim? Não sei, vou viajar, quero pegar algum ônibus na rodoviária e me distrair um pouco. Por quê? Como assim por quê? Não sei! Quero fazer isso. Não entendo os motivos. Deve ter alguma relação com neurônios e sódio, mas não esmiucei a tal ponto. Apenas conheço o resultado final, minha vontade de fazer isso. E se no meio do caminho mudar de idéia? Vi uma lanchonete muito muito aconchegante e resolvi entrar lá com o meu livrinho, e passar a tarde toda lendo. Ué, mas você não tinha dito que iria viajar? Tinha, mas mudei de idéia ué, vi esse cantinho e gostei, entrei aqui e fiquei. E então eu sei que eu não fui feito para a vida a dois. Não me justifico nem a mim mesmo.

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

A vida sobre rodas se foi. Se foi a sessenta por hora, e não precisava mais que isso. Uma discussão. Um coração partido. Um ego ferido. Uma alma insegura. Uma vida sofrida. Um futuro derretido. Os trilhos. O trem vindo. Se jogou. E por meia hora o sistema todo parou! E as pessoas se somaram aos montes pela estação e também pelas estações vizinhas. E todos preocupados com o horário de chegar em casa. De ligar a televisão. De tomar banho antes do sono. De desligar o cansaço horrível da sexta-feira. Os trilhos, o trem vindo, se jogou.

Naquele dia uma vida se foi mas confesso que eu, vivo, encontrei no caos boas atrações. Nessas situações as pessoas dão-se mais às conversas, e assim foi que fiz novos amigos no meio de todo o susto que era a estação Sé. Um contador, um ex-repórter. Conversamos sobre o acidente, sobre metrô, mas também sobre nossos empregos, o mercado para cada uma de nossas profissões, a importância de cursos extras, os cuidados que temos que ter para não sermos explorados no mercado de trabalho, e assim vai. A vida, toda incontida, continua.

Impossível

Quero você inteira
E minha metade de volta

Não sei quem é você
Mas quero você
Inteira!

É possível sentir saudades de sabores desconhecidos?
Ninguém sente sede de refrigerante,
se nunca tomou refrigerante!

Sente?

Quero você inteira
E minha metade de volta!

segunda-feira, 18 de novembro de 2019

Progressão

Dói cada vez mais, não era pra ser assim. O tempo devia erodir, apagar. Fiz errado, algo errado. Ela escreveu coisas tão boas. É trivial que eu seja cada vez menos nesta vida tão distante. Que mais eu queria daqui, isolado, fugido, desistido de tudo? E no entanto dói. E dói muito, muito. E eu queria correr pra algum lugar. Chorar. Soluçar igual criança. Brigar com alguma coisa e alguém. Perdi o sono de um dia cansado. De um dia cansado! Acordei hora antes. E não acordei. Anestesiado o dia inteiro. O que mais importa?

domingo, 17 de novembro de 2019

Alegre

Que calma serena, dias desses. Hoje. Oscilo. Me morro na exaustão da minha ansiedade. Me enterro na clausura da minha calma. Nunca o mesmo, quase como se nunca eu mesmo.

sábado, 16 de novembro de 2019

Sentimental mood

Que milagre é esse que faz um bom jazz restaurar a alma como se a criasse novamente, destruindo da alma velha todos os pesos e infortúitos, todos os invisíveis terrores insones? O quarto é o mesmo, o cheiro é o mesmo, a iluminação é a mesma, a conta bancária é ainda menor, a solidão vai do mesmo jeito. Mas o jazz toca, o jazz preenche o ambiente, e a alma muda. Muda completamente. Muda para outra, de um jeito que nem se eu fosse rico, nem se todos os amigos aparecessem, nem se os problemas todos sumissem...

Fica o tempo lá fora com seus problemas, que eu fico aqui com o meu jazz, e está tudo certo.

sexta-feira, 15 de novembro de 2019

Sky

Morto, caído, destruído. Não sei como ainda respirava, essa bola de pêlos sobrando. Essa peruca velha andante. Essa arte abstrada mal feita com forma de cachorro. Tentou ficar em pé mas não saia de suas células força suficiente para manter as patas verticais, paralelas. Escorregaram. Caiu de volta aonde a gravidade lhe queria. Gravidade da terra, dos corpos, da situação. Teimosia das teimosias, parece que não lhe havia forças para terminar de morrer, e foi tomando do tempo um espaço para ir aos poucos melhorando, e melhorando. E hoje correu atrás de mim por todo o quintal. Pulando até acertar minhas costas com as patas. Mordendo minha mão antes que eu pudesse puxar suas orelhas. Está rindo de todas essas coisas idiotas que pensei nos dias em que o vi doente. É um Husky e tanto!

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

Futuro

- Não fique revoltado! Sua irmã gosta dessas coisas, ué! O que é que há de tão errado com a astrologia? Com essas crendices? No fim das contas o grande problema é o dinheiro que ela perde com essas coisas, só isso. E é o dinheiro dela, entende?

- Não é só isso. Não, não pode ser! Vai além disso. Ela compra esses CD's com terapias quânticas. É enganação. Há alguém roubando ela. Talvez um louco que acredite colocar algum poder estranho no CD porém muito provavelmente alguém que sabe, ou até recentemente já soube, que está enganando as pessoas. Ela está sendo enganada. E não é um simples efeito placebo. Num nível local isso é simplesmente uma pessoa perdendo dinheiro com bobagem. Num nível maior isso é a falta de apoio a pesquisas com células tronco porque as pessoas não só não entendem a ciência mas acham também que o cientista típico é uma pessoa querendo fazer algo de ruim e disposto a esconder a "verdade" do público.

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

Quieto

Tem desses dias nada literários, em que sentimos as mesmas coisas profundas que se sente por existir e viver a vida e tal. Mas as palavras fugiram. Nem sempre a vida topa se descrever.

terça-feira, 12 de novembro de 2019

Tudo

E foi no meio de um churrasco de improviso, com música de improviso, que me ensinaram que tudo é arte. É arte um belo quadro. É arte uma bela música. Mas é arte uma parede bem feita. É arte um software bem bolado por um programador nerd de óculos sem graça e camisa pouco criativa. É arte ali onde a criatividade toca. É arte ali onde um indivíduo mergulha na atividade levando seu trabalho um passo além, transformando pensamentos em coisas quaisquer capazes de ficar, ou de ao menos passar tocando outras vidas. Como a arte da música que é tocada na hora, sem passar pela cristalização da partitura. Arte que saiu ao mundo para quem estava ali a apreciar. Tudo é arte, a recusa a seguir caminhos óbvios. O impulso incontrolável de inserir alguma pessoalidade no mundo.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Volta

Sabe, eu queria me abrir com você. Não porque eu ache que lhe deva algo em honestidade, pois embora eu tenha o impulso de buscar um dia a mesma nobreza que em você é tão natural, a mesma postura firme e transparente, não sou idiota a ponto de contrariar meus impulsos hesitantes por conta de um raciocínio mecânico. Eu queria me abrir com você, e é por conta dessa vontade, simplesmente uma vontade de me abrir. De contar coisas pra você como quando andávamos conversando pelas calçadas do campus ainda com folga no horário. E eu simplesmente falava. Não ponderava falar isso ou deixar de falar aquilo. Falava porque as palavras, de repente, saiam. E hoje não faço isso. E logo vou te ver de novo, e não farei isso. E vou desejar tanto que você volte. Só não entendo mais que volta vou querer. Se quero que você volte comigo ao passado em que não estávamos atrasados nem para a aula, nem para o resto todo da vida, e podíamos ter o prazer infinito de uma conversa absolutamente insignificante, prazer que só uma conversa assim desinteressada pode trazer. Ou se quero que você volte para o velho mundo mesmo, para bem longe, com promessa de não voltar nunca mais, que volte para outro mundo, outra galáxia, outra era, outro universo, tão longe que não fará mais a menor diferença falar ou não falar isso e aquilo. Tão longe que não faça mais sentido eu me proteger tanto assim de meus impulsos e aí então não restará mais nada a não ser a liberdade total de me abrir com você, porque aí, assim tão longe, nada mais que eu possa dizer conseguirá ser sério o suficiente para transformar nossa conversa em algo além de uma simples conversa. Sou inocente por querer essa inocência de volta?

domingo, 10 de novembro de 2019

Sono

É que eu brinco com coisas que não devia
Queria que alguém me levasse daqui
Queria aquelas coisas todas que não podia
Eu fico olhando, olhando
Eu me deixo levar
Eu me deixo sumir
Eu deixo acontecer
Coisas que me fazem um outro eu
Deixo acontecer coisas sem eu estar
Deixo viver
Quem vive em paz quando ama?
Eu machuco pessoas
Arrisco alegria
Brinco com coisas
Coisas que não devia

sábado, 9 de novembro de 2019

Wild

Tô nem aí pra solução dos problemas do mundo. De que adianta? Talvez eu não seja competente. Mas, talvez, mais que isso, resolver os problemas do mundo não seja algo pra quem quer resolver os problemas do mundo. Talvez, considerando toda a sociologia, faz algo de útil aquela pessoa cuja vida a leva a fazer algo de útil. É, sem muito livre-arbítrio. Tudo bem, o Obama trilhou o caminho dele com muita garra, bla bla blá, mas ele tinha fibra pra isso e isso vinha de algum lugar, né? Eu não tenho. Eu sou feliz assim, quieto. Eu fico aqui, escrevo. Ando pelas ruas, converso com as pessoas, vejo confusão e corro. Corro pra um lugar onde eu possa ficar tranquilo, ler meus livros, conversar com pessoas legais, ouvir minhas músicas. Faço muito pela humanidade cuidando para que eu seja feliz. E para que aqueles ao meu redor sejam felizes. Que parece pouco, que parece um desleixo, mas que, se feito por todos, resolveria tudo, não é? E quanto a escrever, não quero um épico. Não quero a obra final. Gosto do som que os dedos fazem ao bater nas teclas, então continuo batendo nas teclas. Nada mais. Precisa de mais conteúdo? Gosto do desenho das letras aparecendo na tela. Então escrevo e as letras vão aparecendo na tela. E quando leio, gosto dos pensamentos ecoando dentro da minha cabeça. Então leio, sobre o que for. Sexo, política, ciência, sociologia, romances, mistérios, dramas, investigações policiais. Não importa, importa? Importa é sentir o peso de um livro nas mãos. Importa é ter a sensação de que quem escreveu estava fazendo algo de que gostava, até que se fique quase que com inveja, morrendo de vontade de se sentir assim também, entende? Percebe que estou feliz? E que, por mim, que se dane o resto do mundo?

sexta-feira, 8 de novembro de 2019

Fotógrafa

Que riqueza que há na alma de quem vê a riqueza das almas?

Que sorriso sorri quem flagra o melhor dos sorrisos todos?

Que momentos tem quem congela dos outros tantos momentos?

Que segredos tem quem tanto revela?

Que tanto esconde quem tanto mostra?

Que sonhos sonha quem sonhos garimpa?

Que vida vive quem vidas descobre?

Quem é a fotógrafa?

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Pedra filosofal

Que inteligência? Inteligência coisa nenhuma! A civilização, a sociedade, e os reality shows só serão compreendidos quando entenderem a ignorância humana. A ignorância humana, com todas suas reentrâncias complexas e suas formas mutáveis, é o verdadeiro átomo da civilidade, o bloco construtor da história. Isso já estava muito claro no que se refere aos reality shows. Quanto às civilizações e à sociedade em geral, ainda há certa resistência no meio acadêmico.

A pluraridade de crendices se alastra pelo tecido social como fogo em palha seca, sempre se reproduzindo porém nunca se conservando. É um sistema muito bem elaborado, e nada poderia exemplificar de forma mais intensa a verdade por trás da afirmação de que Deus escreve certo por linhas tortas. Funciona assim: os espécimes sociais mais estúpidos são aqueles que, por incapacidade de reflexão crítica e outros fatores menos polêmicos, têm a maior tendência a absorver novas informações de seu pacote cultural tal como estas lhes são apresentadas e a rejeitar informações de pacotes culturais destoantes não importando que qualidade tenham. Contudo, a estupidez, em suas manifestações mais primorosas, carrega em seu bojo distorções de entendimento que produzem como que mutações espontâneas nos memes que afortunadamente chegarem a esses indivíduos. Assim, de um jeito ou de outro, Deus arquitetou um mundo em que a realidade social conserva uma dinâmica própria incontrolável, independente do mérito dos pacotes culturais, e sempre sujeita a mutações, mudanças e, portanto, renovação. Abençoado seja!

Busquei no Google por "sociology of irrationality" e, assim com as aspas, nenhum resultado foi encontrado! Prova de que nosso meio acadêmico ainda está muito imaturo na tarefa de entendimento do mundo? Ou, num contexto maior, prova de que o meio acadêmico simplesmente faz parte da sociedade como todo o resto, e que portanto sua racionalidade é na verdade irracional e de modo algum compromissada com uma aproximação à verdade?
-.-
Update: 10 anos depois, agora em 2019, busquei novamente no google por "sociology of irrationality", com aspas. Encontrei um resultado. Estamos progredindo!

sábado, 2 de novembro de 2019

Sábado

Loucos, todos loucos. Louco eu sendo mais eu ao encarnar um não-eu.

Famílias se diluindo, amores se escondendo, músicas ressoando por teatros e casas cheias. Lei anti-fumo numa cidade super-poluída. Temos direito a respirar a fumaça dos carros sem que nada interfira nesse aroma tão característico da industrialização dos nossos humores.

Eu gosto de tocar. Música. Som preenchendo o ambiente. Tempo, intensidade, ritmo... E a vida vai seguindo. E sou louco, louco de mim de crer que entorto o tempo, de imaginar que o mundo se curva pra longe enquanto eu sento na beira, vejo tudo acontecer, e me distraio em paz... estranha paz.