quinta-feira, 31 de agosto de 2017

Sou ruim com nomes

Sinto-me um tanto quanto mal por ser ruim com nomes. Demoro a decorar os nomes das pessoas. Dou aulas há vários anos e normalmente só acerto os nomes dos alunos lendo a lista de chamadas. Patético, eu pensava.

Mas patética, no fundo, é essa coisa de nomes. Em um mundo em que somos todos seres humanos. Em um mundo em que não quero me lembrar de rancores ou sucumbir a favores. Não lembro nomes porque os nomes não importam. Nomes mais feios ou nomes mais bonitos não mudam as paisagens das atitudes. Não mudam a sabedoria expressa pelo que são. Não lembro nomes, mas não é que falhe algo nos neurônios de memória em meu cérebro. Há algo em meu interior, percebi, que deliberadamente não quer prestar atenção ao que não importa. E nomes não importam.

Pastel é vida

Eu o vi pedindo um grande pastel e fiz qualquer comentário sobre aquilo não fazer bem para o coração. Usei um nítido tom de brincadeira mas a resposta veio séria:
-E você acha que eu não sei? Já enfartei três vezes. Do próximo tem grandes chances de eu não escapar. E se eu posso morrer amanhã então uma coisa que eu não posso deixar de fazer é comer um pastel de feira caprichado! Morrer triste não vale a pena.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Tu te tornas eternamente responsável por não ficar de frescurinhas com os outros

Eu sou ateu.
Mas ainda que Deus não exista, padres existem.
E não é por defender uma ideia errada que tudo o mais que alguém tem a dizer está automaticamente condenado. Essa é a falácia do "não fui com sua cara", da qual temos que nos livrar sempre com um árduo esforço.

Sempre trabalhei

Comecei a trabalhar com onze anos, sabe? Catei lixo na rua. Já catei latinha. Já recolhi coisas. Já fui carregador. Já vendi coisas. Já fiz de tudo. Ajudava em casa. Minha mãe lavava roupa pra fora. Pegava muito uniforme de fábrica. Eu ajudava. Era muita coisa para lavar e eu não ficava parado. Foi só em oitenta e seis que fui ajudar meu irmão em uma oficina. Mas eu não entendia nada de oficinas. Eu lavava peças que estavam desmontadas já. E deixava em cima da bancada, secando. Só isso. Depois fui aprendendo, aprendendo. E hoje sei desmontar um motor inteiro e montar de novo. Virei mecânico. Mas já fiz de tudo e se tem uma coisa que não me assusta é ter que trabalhar!

terça-feira, 29 de agosto de 2017

As explicações

Eu seria professora. Era meu sonho. Queria ensinar. Gosto de crianças. Mas fiquei grávida. Eu tinha que trabalhar. E depois não dava mais pra trabalhar e cuidar da criança e estudar direito. Trabalhar, não podia. Deixar a criança de lado não dava. Minha mãe não tinha tanto tempo pra ajudar porque trabalha também. Não temos dinheiro pra bancar uma babá. Não casei, porque o pai da criança sumiu quando soube que eu estava grávida. E ainda estou atrás dele, na justiça, tentando conseguir minha pensão.

Eu não aguentava mais. A vida estava ruim. O dinheiro era pouco e a satisfação, menos ainda. O pequeno era bebê ainda. E tinha essa família... Era ricos, donos de restaurantes por aí, até em shoppings... Eles não podiam ter filhos. E amaram tanto o pequeno. Fizemos um acordo. Eu dei a criança. Eu não tinha registrado ainda porque nem sabia fazer direito essas coisas. Ganhei um dinheiro bom. Não comprei casa não. Fui virar artista. Fui cuidar da minha vida. Fui me dedicar às pinturas, que eu gosto mais. Um dia, espero, o pequeno possa entender. Ou talvez não entenda nunca. Mas tem muita coisa na vida que nunca me explicaram também e que eu acho que nunca vou entender. Não dá pra entender tudo.

Etiqueta corporativa

Amanhã será minha entrevista demissional. Já trouxe para casa um grande questionário para preencher. Quais habilidades a empresa transferiu para mim ao longo desses anos? Qual meu legado para a empresa?
Pensei em responder com sinceridade. Embora o período inicial tenha sido de aprendizado e enriquecimento para ambos os lados, os últimos anos foram de total marasmo e de deslocamento. Gastei até com psicóloga. Não via mais sentido em minhas tarefas e cansei de ver colegas de trabalho sendo ignorados enquanto pessoa. Mas, pensando bem... nunca me perseguiram. E eu sei o que eles querem ouvir. Vou dizer o que eles querem ouvir. Porque, no fundo, essa habilidade de mentir para manter a civilidade foi meu maior aprendizado ao longo deste tempo.

segunda-feira, 28 de agosto de 2017

Procrastinação social

- Quando vamos nos ver?
- Poxa, é mesmo né...
- É!
- Vamos marcar algo!
- Vamos sim!
- Me liga?
- Ligo ou deixo mensagem...
- Manda logo no grupo!
- Boa ideia.
E assim foi mais uma oportunidade perdida de reencontro. Físico. Real. Olhos nos olhos.
É uma característica moderna. A procrastinação como consequência das opções.
Um compromisso é uma constrição, uma limitação, uma imposição da agenda.
Não queremos limitações.
Queremos opções.
Duzentos e setenta e três canais.
Botão de aceitar ou cancelar.
Botão de voltar.
Control + Z. Desfazer.
Por isso não marcamos um compromisso para daqui a uma semana. Para daqui um dia.
"Vou ver direitinho e a gente conversa"
Porque eu posso querer mudar de ideia. Voltar atrás.
Mas a vida não é assim. Nem tudo na vida pode ser assim.

O tempo

Está reduzido pela metade. Eu ia lá para o andar de cima e ficava lendo alguns livros sentado na escada. Há bem menos livros agora. Para onde foram todos? A moça, ao caixa, é a mesma de antes. Mas não tem uma cara feliz. Os negócios não vão bem. Minha vida não está certa. As coisas estão indo mal. Quem lê nesta cidade? Com tantos celulares nas mãos de todos. Com tantas mensagens de WhatsApp, Twitter, tudo apitando o tempo todo... quem ainda tem tempo de ler? O que será dos sebos?

domingo, 27 de agosto de 2017

Ego grande angular

Sou uma artista! Vejam meu trabalho! Vejam como sou maravilhosa! Paguem minha vida para mim, me deem respeito e boas energias! Engulam meu trabalho e curtam minha página! Porque eu mereço, porque eu sou fantástica, porque eu luto muito por isso... Ou pensa que não é uma profunda luta eu fingir que não estou ignorando minhas responsabilidades? Ou pensam que é fácil deixar de ganhar dinheiro mesmo com dívidas e mesmo podendo fazê-lo? Nada como umas boas cervejas com os amigos no bar pra me convencer de que a vida é assim mesmo, de que tenho que passar por essa "luta". Porque... olhando pra mim, cada vez mais só pra mim, não posso deixar de constatar que sou fodona e que o mundo precisa aprender a me valorizar por isso.

Viadagem

No ônibus. Dois gays no banco de trás. Conversavam.
-Não vai mesmo deixar eu ver seu celular?
-Mas que mania! Agora tudo é meu celular? Você não larga meu celular! Quer me deixar em paz?
-Muito bem, se você não pode mostrar é porque está escondendo alguma coisa, não é?
E assim ficaram. Um sem admitir sua insegurança e o outro sem assumir de vez as razões de suas confidencialidades. Muita viadagem, até para dois gays. Ou talvez especialmente para dois gays.

sábado, 26 de agosto de 2017

Adeus

A morte de um amigo dói. Dói muito. De surpresa. Um acidente de carro. Ontem conversamos. Ontem estava tudo bem. Ontem tinha sorrisos. Ontem tinha futuro. Hoje não existe mais. Hoje é uma lembrança etérea. Hoje é sem sentido.

E ele havia me ligado uma vez chamando pra ir pra um bar. Eu estava cansado. Fiquei de pés pra cima, no sofá, vendo televisão.

E ele havia sugerido uma viagem nas férias. Mas eu estava economizando dinheiro. Achei melhor não ir. E acabou não indo ninguém. Não teve aquela viagem.

E agora nunca terá.

O tempo está indo sempre embora. Achamos que há alguma poupança. Mas a qualquer momento o saldo vem zerado.

Dizem para não deixar para depois o que pode fazer agora. Não sei se vale para tudo. Nem para lição de casa, nem para aquele relatório chato ou aquele estudo para a prova. Isso depende de muitos fatores e aceita vários argumentos. Mas certamente vale para a vida.

Não deixe para depois a vida que pode viver agora.

Deu errado

Alguns anos já. Falhou. Era para ser uma metamorfose completa. O despertar de um canalha interior. Eu iria me tornar um mulherengo sem sentimentos. Ou melhor: sentimentos apenas por mim mesmo. Falhou. Descobri a empatia.

Hiato

Chegou um momento em que eu não queria falar mais com você. Nunca mais. Eu não queria nunca mais ter o prazer dessas conversas que estragam todas outras conversas. Porque eu conhecia já a abstinência que desabaria. Eu sabia da tristeza que seria conversar com todo o resto da humanidade. Eu sabia que procuraria um pouco de você em cada nova fagulha de companhia que encontrasse. Sabia que juntando todas essas migalhas ainda não daria meio prato. Fome. Dor no ventre. Então silenciei. Silenciei para tentar me livrar da fome. Como se parar definitivamente de comer fosse a saída para o corpo esquecer dessas precisanças. Mas no fundo nunca desisti. Somei todas as conversas que consegui e ainda não resultava nas tuas. Somei todas as risadas que ouvi e ainda não era você. Juntei todos olhares que vi e ainda precisava do seu. Eu fui pra longe. Eu precisava ir pra longe. Mas você volta? Depois você volta? Não diga nada... Só chegue perto e diga "oi". Quantos anos? Dez? Vinte? Cinquenta? Só poucos meses? Sério? Foram várias vidas de espera para mim.