sábado, 30 de abril de 2011

Anhangabaú


Aquele espaço todo vazio no meio, calçadão e gramados, e aquelas duas muralhas de prédios dispostos ao lado... Ah, aquilo é a coisa mais linda! Não fosse pelos mendigos espalhados por todos os cantos, as putas empoleiradas às portas de quartos podres e escondidos, que lugar lindo, que lugar lindo! Não fosse pela pobreza que suja tudo de um jeito mais impregnado que a poeira fina da fumaça que essa metrópole faz e refaz todos os dias... Não fosse pelo cheiro de mijo que adensa no ar e invade as narinas pesando no olfato como um paralelepípedo mal cortado pesaria ao tato, que lugar lindo, que lugar lindo... O Teatro Municipal, as belas pontes antigas que cortam o centro. Não fosse a carcaça de cachorro morto jogada assim tão à vista de quem seja a passar, que lugar lindo!

sábado, 23 de abril de 2011

Princesa Isabel


- Ô motorista, vai descê, vai descê!!!

Não era um passageiro gritando, era a cobradora! Magrinha, séria, cansada e revoltada. Seu uniforme de camisa azul e calça azul marinho. E seu olhar sério, sem saber como se desculpar com os passageiros. O ônibus lotado, não havia espaço para nada. Ofereceram-se para segurar minha mochila, já que eu ia em pé com ela pendurada ao braço. Mas não havia espaço para a complicada manobra de tirá-la do meu braço e transferí-la à gentil senhora.

Não bastasse o ônibus lotado, o calor e o excesso de pessoas amontoadas, aquele motorista dirigia como se para torturar um por um dos que estavam ali dentro, como se para maximizar os trancos de cada um dos infinitos buracos das ruas. Como se para lembrar que estávamos em uma carroça, que éramos um rebanho e só. Um rebanho mal tratado, desprezado, cuspido pelo descaso dos altos escalões.

O que se passava com o motorista? Problemas em família? Com sua vida amorosa? Tristeza com a vida? Revolta? Ou indiferença pura e simples? No conforto do assento do motorista talvez dirigir assim fosse muito mais emocionante do que esgueirar-se lentamente pelos entraves dos asfaltos e esquinas.

E as pessoas todas ali, desconhecidas, grudadas, acotovelando-se sem poder impedir. Cheirando-se sem poder evitar. E quietas, torcendo pra acabar logo. Fingindo que é a última vez.

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Lábios


Nos olhávamos pensando vez ou outra em como seria bom, mas sabíamos de todas as culpas que nos apertavam pelo pescoço, que nos ameaçavam com rifles. As culpas não são nada simpáticas, não entendem nada dessas coisas de momento. Decidimos ignorar a culpa. Eu queria tirar aquela blusa branca, beijar aqueles seios, mas não havia tempo para tanto... era rápido. Nossos corpos precisavam se sentir pesados um contra o outro. Nossos lábios precisavam tentar se fundir. E depois nada teria acontecido. Depois nos entregaríamos impunes ao prazer infinito de sonhar com impossíveis repetições desse crime irresistível.

sábado, 16 de abril de 2011

Constatação


Há uma coisa melhor do que estar apaixonado: o apaixonar-se.

Todo o universo


As calças ficaram jogadas no pé da cama. A camisa sei lá onde foi parar. Liguei o computador e procurei meu fone de ouvido submerso em bagunças tão impossíveis quanto inevitáveis. O som de um violão bem dedilhado e uma voz que percorre de graves a agudos em uma empostação firme, e eu nem sei se a palavra existe, mas é isso que minha professora de canto sempre dizia. Empostação. A firmeza da voz. Atitude, confiança. Está tudo lá, codificado nos sons. Meus ouvidos vão se enchendo deste leite da alma, é isso que a música é: leite para a alma, o concentrado dos nutrientes necessários para sentimentos bons.

Um coro. Bateria, ritmo. Cadências. Dinâmica... os sons se aquietam, são os músicos todos esperando para me ouvir um pouco também. É a orquestra toda esperando para que eu me escute, perceba em meus vazios de dentro os ecos da vida. E depois volta a altura dos sons todos. Não sei porque é tão bom assim ouvir música jogado num canto de um quarto escuro. Como se não houvesse nada mais no universo e de repente isso tudo é o universo. É uma espécie de loucura, essa força de esquecer o resto do mundo? Ou é a salvação da sensatez esse momento de lembrar com tanto ímpeto dos movimentos de que minha alma é capaz? Um pouco dos dois, por fim. A verdade da vida é insuportável demais para as mentes que são apenas sãs.