A casa estava cheia. Vinho, pizzas, comidas. Pessoas. Eu conhecia algumas, as que foram comigo. Há quantos anos não se encontravam? Dez? Doze? Alguém fez a conta. Dezessete. Mais da metade da minha vida. Por que é que as pessoas não se vêem mais? Não vem ao caso agora. Não sei responder essas coisas. Não sei responder nem mesmo sobre os meus amigos. Sobre os meus familiares. Por que é que eu não vejo mais a minha mãe? Ela morando lá em Porto Ferreira. Por que é que eu não vejo mais as minhas sobrinhas? Confesso que nem sei dizer ao certo a idade delas. Sou um tio ausente. Estou sempre cuidando da minha vida. Estou sempre com alguma urgência imediata. Nesta semana preciso estudar, vou ter prova. Na outra semana preciso ir para o interior, estou fazendo um curso. Depois preciso ver minha namorada, faz tempo que não dou atenção pra ela. Depois eu tenho que cuidar da minha casa, lavar roupa, arrumar o quarto, limpar o chão. Depois no outro final de semana é bom eu descansar um pouco, ficar no sofá vendo um filme, fazendo algo à toa assim, sem maiores preocupações. Por que é que eu não vejo mais as minhas sobrinhas? Por que é que estas pessoas não se viam há tantos anos?
Mas depois das conversas de sempre... atualizações básicas sobre o que cada um está fazendo da vida, o clima de amizade se instala novamente. O vinho ajuda as piadas a se soltarem se pudores. As pessoas que horas atrás estavam se apresentando quase formalmente agora já não vêem o menor problema em contar vexames de viagem, piadas que mencionam sexo ou falam algum palavrão. O clima é de alegria e discontração total. O ambiente é amplo, um grande apartamento. Um grande balcão mais parecendo um bar... De um lado, uma pia e ingredientes para as várias pizzas que estavam sendo preparadas. Do outro lado as pessoas trocando memórias e risadas. Fui pegar sorvete. As pessoas estavam servindo sobremesa em uns pratinhos plásticos. Pedaços de bolo e de uma torta que alguém preparou para não aparecer na visita sem levar nada. Eu achei que o sorvete também seria comido naqueles pratinhos de plástico e fui me servindo. Mas o pratinho foi tirado da minha mão por mãos ágeis e uma voz que disse: não, esse não. Melhor pegar esses daqui de metal, que pra sorvete são melhores. A agilidade do ato contrastava com a idade das mãos. Mãos enrutadas. Quantos anos tem a dona Cida? Oitenta e dois? Oitenta e cinco?
Depois do ocorrido fiquei reparando nela. Não era de falar muito. Apenas estava seguindo as pessoas mais animadas, receosa de perder as melhores partes da conversa. Estava sempre a distância, mas sempre atenta a tudo o que era dito e sempre com um largo sorriso no rosto. Em diversos momentos, nas piadas ou nos momentos mais discontraídos, eu olhava para a dona Cida e podia vê-la gargalhando sozinha.
Os assuntos eram variados. Falamos de viagem. Como as pessoas gostam de falar de viagem. Os que já foram se orgulham de suas histórias, e os que ainda não foram sonham com as maravilhas por serem vistas lá longe. Lugares bonitos, comidas deliciosas, causos inusitados nos hotéis, nos carros alugados, nas inusitadas comunicações improvisados entre idiomas que não se entendem. E a dona Cida lá, rindo feliz ao ouvir tudo aquilo.
Tudo estava ótimo. A comida. O vinho. A cerveja. A simpatia das pessoas. Mas nada superava a alegria da dona Cida. Uma alegria transbordante e ao mesmo tempo auto-suficiente.
As horas foram passando e algumas pessoas começaram a ir embora. Responsabilidades de família. O filho pequeno já morto de sono. O compromisso do dia seguinte que não poderia esperar.
Carlão, o dono do apartamento, era de uma alegria crescente. Resgatava dos confins das memórias a justificativa para um apelido esquecido. Uma lembrança de como tais e tais pessoas haviam se conhecido. Histórias daquela vez em que havia uma barata no quarto do hotel. Conversas iam se desenrolando.
Onde estava a dona Cida? Fiquei curioso, procurei ao redor e a encontrei. Ela estava já à pia. Em pé, lavando a louça. As formas de pizza, os pratos para as comidas diferentes que as visitas trouxeram. Olhar atento no trabalho, ouvidos atentos nas conversas. Já conhecedora daquelas histórias todas, não se entediava em ouvi-las. Bastava o anúncio de uma história e antes mesmo da conclusão, lá estava a dona Cida rindo sozinha, olhando para a louça.
Conheço pessoas que nunca viajaram e conheço pessoas que viajaram muito. Mas poucas... pouquíssimas pessoas encontrarão, em qualquer recanto do mundo, o que a dona Cida consegue ter em si própria o tempo todo: essa auto-suficiência em paz de espírito. Essa disposição a curtir o que há de mais alegre no ambiente sem se abalar pelo que há de negativo na situação. Ela é uma sogra ali. Quantas sogras na situação dela não iriam amaldiçoar a quantidade de louça para lavar, negando-se ao serviço e passando-o a outra pessoa. Quantas e quantas sogras não iriam se entediar por ouvir uma piada pela duzentézima vez?
Não é pela louça lavada. Não é pela falta de protesto com as histórias. Minha admiração pela dona Cida não é pelo que ela vem fazendo aos outros. É pelo que ela faz a si própria. A mairia das pessoas vai sair do Brasil, vai viajar para um país distante em procura de algo, de uma alegria, e não encontrará alegria tão grande como a da dona Cida.
Existem dois tipos de viagem que as pessoas podem fazer na vida. Uma delas é exterior. Comprar uma passagem. Deixar o avião te levar. Contratar um guia turístico. Tirar a foto para mostrar para amigos e familiares. A outra viagem é interior. Ninguém sabe onde comprar a passagem. Não há um guia turistico dizendo o que encontrar. A bem da verdade, para os segredos dessa viagem interior, não temos a quem perguntar nada... são mundos desconhecidos que ninguém visitou antes. Por isso mesmo a maioria das pessoas deixa de fazer essa viagem. E passa a vida sem ter sequer consciência de quanta alegria está desperdiçando em instantes seguidos sofrendo pelas coisas erradas enquanto poderiam ser colecionadores de alegrias sem fim. Assim como a dona Cida, que mesmo sem nunca ter saído da cidade, era ali a pessoa mais viajada de todas.
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