segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Rotina

A gente sempre brincou que minha filha era preguiçosa. As crianças iam correr e ela cansava primeiro. Ficava ofegante. Mas normal, eu também não sou nenhum atleta, né? Aí uma vez fui com ela fazer alguns exames. Descobrimos um problema no coração. Uma pele num músculo, uma válvula, eu não sei explicar. Não entendo nada disso. Mas entendo que coração é sério. E falamos com um monte de médicos. Fizemos um monte de exames. E a gente estava desesperado. Sabe, ela vinha ficando mais e mais cansada, por isso tínhamos ido fazer os exames. E a coisa estava de um jeito que, se ela não operasse logo, ia acabar ficando tão cansada que ia dormir e não ia acordar mais. Porra cara, minha filha! Dez anos a menina! Cê tem que ver os desenhos dela, ela faz um gibi, um gibi inteiro... Ela conta as histórias, sabe? E falei com os melhores médicos que achei. Fui falar com o melhor da cidade. Uma grana. Dois carros embora, dane-se. Era minha menina. O cara explicou tudo. Como iriam fazer. Disse que só era uma operação perigosa em caso de outras fraquesas. Gente idosa, ou outras doenças concomitantes. Sempre há um risco, mas ele estava confiante. Daí no dia da operação, putz... Era pra demorar três horas. E seis horas e eu lá, sentado naquela cadeira. Levantava. Água. Sentava. TV. Celular, olhava pra parede, não sabia onde me enfiar. Ele tinha dito, explicado tudo. Ele falou: "Faço isso há vinte anos. Não saio da sala de operações até o final do trabalho, não adianta. Ficar dando notícias para a família no meio do trabalho só atrapalha. Então eu não vou sair até terminar, e peço para não se preocupar com isso, é o meu modo de trabalhar." Mas porra, minha menina tava lá dentro, depois daquela porta, de peito aberto. De peito aberto, imagina? Passaram a faca e estavam mexendo no coração dela. Eu queria entrar e mandar fechar logo e me devolverem ela. Eu não dormia mas não era sono. Nem sei falar como eu estava. Aí a porta abriu. Aí o cara sai de lá olhando pra mim e o filho da puta fala, todo sério, "Tivemos alguma dificuldade, alguns contratempos", e daí depois manda: "mas deu tudo certo, ela está anestesiada, estão terminando de fazer os pontos e logo ela vai correr com fôlego!". Porra, meu... Caralho! Eu não sabia se xingava o cara ou se abraçava ele. Chorei ali em pé, soluçando. Ele quase me matou de susto, que papo é esse de "tivemos dificuldades"? Mas depois falou que conseguiu, ele conseguiu! Eu sempre sofri por ser um pai distante, ficar meses fora de casa. Mas valeu para juntar cada centavo que usei pra pagar esse cara, essa operação. Eu estava tremendo, respirando rápido, chorava e ria, soluçava e gaguejava porque tinha achado que podia ter dado tudo errado mas não podia dar nada errado. Aí o cara continua, com a maior normalidade do mundo, de quem faz até três ou quatro dessas operações por dia: "logo vão terminar de fazer os pontos e levá-la ao quarto, eu vou indo pois tenho outra e estou um pouco atrasado, abraço, tchau".

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