Aprendizado é um processo individual. O professor não ensina. É o aluno quem aprende. Cabe ao professor, tão somente, lançar o desafio. Provocar. Oferecer as armas para esse combate íntimo e secreto que cada estudante trava - ou não - consigo mesmo. E entendendo assim o processo de ensino fica clara a tragédia que é quando um professor resolver ser "gente boa". O papel de um professor é ser odiado. Não por ser filho da puta e tratar mal os alunos. O professor deve ser odiado principalmente quando tem carisma porque vai usar esse carisma de modo traiçoeiro. Caso não se esqueça de sua missão de professor vai, invariavelmente, empurrar os alunos para fora de suas zonas de conforto mental. Agora, o que eles farão uma vez tendo cruzado a linha, aí já é problema deles.
quinta-feira, 21 de julho de 2016
Feridas
Andava sem mancar. Mas doía a cada passo. Fingia estar tudo bem. Até o dia em que deu um puta grito. Mandou o mundo à merda. E andou torto, tosco, feio, estranho. Mas adaptou seus movimentos até que a dor amenizasse. Até que a dor passasse.
Vivia sem gritar. Sem xingar. Sem olhar feio. Fingia estar tudo bem. Até o dia em que chorou e gritou e disse o quanto sofria. Mandou o mundo à merda. E foi tachado de revoltado, de estranho, de exagerado. Mas adaptou seus sentimentos até que a dor amenizasse. Até que a dor passasse.
quarta-feira, 20 de julho de 2016
Medo do chefe
Eu cresci em um universo cheio de intersecção de importâncias. Lá no clube, nos churrascos de fim de tarde aos sábados, os presidentes de grandes empresas dividiam o balcão e os pedaços de picanha com os faxineiros e o pessoal de "serviços gerais" lá da marina. Quando criança eu passava as férias de meio do ano no interior de São Paulo. Até chegarmos ao sítio do meu pai passávamos, de carro, por inúmeros desconhecidos ao longo do caminho. Independentemente de quem fosse, se gente andando a pé ou de carro, cumprimentávamos. Um aceno com a mão. Com a cabeça. Por isso tudo é que eu acho muito estranho esse medo que as pessoas da cidade têm dos chefes. O chefe visita pouco o local de trabalho e conversa pouco com as pessoas. Porque tem sempre assuntos para resolver. Está sempre com diversas preocupações. Mas, eu juro, por trás desse véu de mistério e suspense é só um ser humano como qualquer outro.
Turning points
E então ele foi para a entrevista. Não sabia se era apenas uma distração para aquele dia cheio de monotonias ou se seria o início de uma nova vida cheia de novos tons.
terça-feira, 19 de julho de 2016
O espanhol
Aprendi a fazer estes artesanatos desde sempre, sei lá. Sou ariano. Tenho que me mexer. Tenho que fazer alguma coisa. E cresci num lugar que não era como aqui, não. O inverno era frio. Seis meses em casa! E aí, o que fazia? Era montar brinquedinhos com arame, pedaços de madeira, lixa uma coisa aqui, corta lá... Um carrinho, um boneco, várias coisas. E eu sempre fui assim meio hippie. Meu negócio é andar por aí.
Já tem muitos anos que vim para o Brasil. Já foi melhor. As pessoas já compraram mais dessas coisas. Artesanatos. Enfeites. Hoje só querem saber de aplicativos no celular.
Uma vez sofri um acidente de moto. Olha só, aqui na minha cabeça. Eu estava voltando para casa no meio da madrugada. Uma Harley Davidson. E eu ia chutando mesmo, rasgando. Queria curtir, sabe? A cidade à noite, tudo livre. Mas tinha um bêbado vindo. Cruzou meu caminho. Ele quem furou o vermelho. Mas e daí? Bateu... Voei. Saí voando no ar, quiquei no chão. Bati com a cabeça numa guia. Voei para a vidraça de uma loja de carros. Quebrei a vidraça. Quebrei ainda o pára-brisas de um carro. Me acharam lá dentro do carro. Eu não lembro de nada disso, é claro. Mas foi o que me contaram.
Estava tão destruído que acharam que não tinha mais jeito. Mas estavam me mantendo vivo porque aí o convênio paga, o seguro dá aquela ajuda. Coisa de médico. Só que eu acabei acordando. Cinco dias de coma. Daí abri os olhos e foi um deus nos acuda. Lembro de estar na maca, tentando entender o que acontecia, e aí os médicos se assustaram. Foi aí que começaram a cuidar de mim pra valer. Foram meses esperando os ossos se juntarem de novo. Perna esticada. Pinos. Gesso. Tudo o que você pode imaginar. Depois andei mais seis meses de moto pra ter certeza que tinha superado os medos. E aí nunca mais subi em nenhuma.
E vivo assim. Já vivi em vários países da Europa. Mas lá não tá muito boa a coisa também. Aqui no Brasil é bom. Muito bom. Gosto do clima. Gosto das pessoas. Mas o país tá uma merda. Ninguém quer saber de nada, sabe? O povo... é incrível. Por muito menos, anos atrás, estaria todo mundo na rua. Estaria todo mundo na rua de verdade. Não como foi nos últimos anos. Sai um dia na rua, e aí chega. Aí é hora de assistir tudo na TV de novo. Não entendo. Temos muita comunicação hoje. Mas pouca gente quer se informar de verdade. Ou então vai ver que bati com a cabeça forte demais. Por isso não entendo nada.
Inteligente, competente e arrogante
Eu a conheci anos atrás. Na faculdade. Ela logo se destacou e foi fazer um curso interno de especialização. Coisa de gente que vai para NASA. Que aparece em noticiários com grandes descobertas. Tempos depois a encontrei onde menos esperava. Na marina. Estava, como eu, andando de barco. Tirou a carteira de Arrais. Fiquei contente. Mas, tempos depois, em um almoço com outras pessoas das águas, fiquei surpreso ao ouvir o que falavam dela.
-O que? Aquela menina? Deus me livre, ninguém mais quer saber dela não. Super arrogante. Tudo o que você pode imaginar ela sabia mais que os outros. Todo mundo em volta dela estava sempre errado. Nariz empinado demais!
Sua nova carreira, nem preciso dizer, naufragou.
segunda-feira, 18 de julho de 2016
Diálogo comigo mesmo
-Por que você resolveu conversar consigo mesmo?
-Porque estava longe. Porque vejo que estou aceitando ficar longe de mim. Todos estão.
-Mas essa distância, na verdade, tem um quê de saudável!
-Saudável? Está maluco?
-Não é maluquice não. Lembra-se de quando seu professor de sociologia, já há catorze anos, disse que quando os indivíduos olhavam realmente par dentro deles tudo o que encontravam era um vazio?
-Ele estava se referindo à nossa necessidade de conexão com os outros e não literalmente à ideia de que ninguém tem nada dentro de si. Um diálogo comigo mesmo ainda pode ser rico desde que eu não me isole, efetivamente, do resto do mundo. Não é esse o objetivo. É mais o de explorar coerentemente os muitos "eus" que habitam em mim.
-Há uma certa arrogância nessa sua ideia.
-Nessa nossa ideia, você quis dizer.
-Minha não. Se você tem muitos eus assuma-os por completo. Não fique se reduzindo a um só novamente toda vez que isso lhe for vantajoso. Seja coerente. E tenha mais coragem.
Vida nômade
"If you could live a nomadic life, would you? Where would you go? How would you decide? What would life be like without a 'home base'"?
Nossos enviados especiais colheram respostas de diversas pessoas e selecionaram as principais. Aqui estão elas:
Pessoa 1: Não tenho condições de pensar nisso. Não hoje. Quer dizer... talvez já tenha sido um sonho em algum momento, aquela coisa de adolescente. Mas hoje eu tenho família. Meu trabalho é aqui. Essa coisa de pegar a grana e sair vivendo de vento por aí, curtindo a vida e deixando as responsabilidades depois.... Só se eu ganhasse na loteria. De qualquer modo, eu gostaria de conhecer as principais cidades do mundo. Mas já me contento em ir como turista.
Pessoa 2: Acredito que este seja o único jeito de viajar. Não acredito na praticidade enlatada do turismo. Viajar significa se entrelaçar aos diferentes lugares. Como fazer isso sem viver alguns meses em uma certa região? Eu gostaria de ir para diversas cidades do mundo. Mas nada de clichês. Quero conhecer cidades pequenas que estão fora do circuito turístico. Cidade turística, afinal, serve só pra isso: turismo.
Pessoa 3: Já vivemos todos uma vida nômade. Não é isso o que significa dizer que estamos aqui de passagem? Por isso, não tenho um apego forte ao local em que estou. O chão em que piso é minha casa. Onde eu puder carregar um livro e qualquer coisa para fazer barulho... um tambor ou uma flauta... então haverá teatro, haverá alegria. Encontrarei alguns amigos para dançar. Por que não? As pessoas se prendem a uma casa. Se prendem às contas do mês. E depois ficam usando o pouco tempo livre que sobra para falar mal dessas coisas todas.
A vizinha gritando com os filhos
Acho que já escrevi sobre isso. Posso estar repetindo o tema mas o incômodo é genuinamente novo. Porque, mais um dia, lá está ela, a vizinha, professora, adulta, gritando com os filhos. Gritos e gritos e mais gritos. Berros de trincar a jugular. Infâncias destroçadas. Triste. Fico profundamente triste.
Os livros do fim do mundo
Eu estava em um aeroporto nas imediações de Paris naquela época dos atentados. Tentei não ficar neurótico com a onda de preocupação que se seguiu. Não queria assistir os noticiários, ouvir o rádio ou mexer nos aplicativos de notícia do meu celular. Não queria nem mesmo ver as manchetes dos jornais na livraria. Fui para a seção de ficção descansar minha mente com a abstração de realidades imaginárias.
Um título então me saltou aos olhos. "A Sombra do Juízo Final" Como já acontecera com inúmeros outros livros, adiantei-me a amaldiçoá-lo mentalmente pensando tratar-se de um besteirol religioso qualquer. Lá fui eu dialogando comigo mesmo. "Afe, que jeito de ganhar dinheiro. Alimentando a ignorância alheia. Eu deveria deixar de lado meus princípios de honestidade e partir em busca desses níqueis também." Mas ao tomar o livro em mãos para um exame mais detalhado fui surpreendido pelo seu conteúdo. Não se tratava de uma obra religiosa. Tratava-se de um trabalho de ficção. A história se passava em um futuro não muito distante. Dois grandes vulcões da Terra haviam entrado em erupção lançando milhões de toneladas de detritos na atmosfera e diminuindo a entrada de luz do Sol em todo o globo.
Efeitos climáticos se seguiram. Com um inicial resfriamento em algumas regiões seguido de um acúmulo generalizado de calor devido a um efeito estufa. Mas o efeito mais importante foi a deterioração de produtividade nas grandes plantações da Terra, prejudicando o suprimento de alimentos. Guerras de todas as espécies começaram a irromper. Êxodos urbanos inimagináveis se seguiram. O livro retrata não o fim absoluto da humanidade mas, ao menos, a completa destruição da civilização moderna. Me chamou a atenção esse final e confesso que, ali mesmo, de pé na livraria, adiantei-me às páginas finais em busca de um final feliz. Não o encontrei. Não se tratava de um trabalho aos moldes de filmes de Hollywood. Achei isso positivo.
Já no avião, seguindo meu roteiro para a Estônia, qual não foi minha surpresa ao encontrar uma entrevista do autor na revista de bordo? Fiquei feliz ao ver que algum trabalho literário diferenciado tem chamado a atenção da mídia de alguma maneira. E creio que o autor teve uma certa sorte. Agora, depois dos atentados, certamente uma matéria assim não teria lugar. Afinal os editores se preocupam em alimentar um pouco de otimismo também. Deixo aqui um trecho da entrevista:
- Alguns críticos dizem que o seu texto é apenas uma descrição cataclísmica, desprovida de moral maior, e portanto seria uma literatura de menor valor. O que você tem a dizer a eles?
- Em primeiro lugar não cabe a mim julgar o peso de minha literatura. Uma vez pronto, acredito, o texto não é mais meu. Deve ser julgado pelo que ali está escrito e não pelo que eu possa ter a acrescentar. Mas este julgamento refletirá, invariavelmente, algo de quem está a julgar. O que posso dizer então, para não parecer que me esquivei da pergunta, entra aqui como uma opinião de leitor. Ou como a opinião de um idealizador do trabalho. O livro descreve uma verdadeira calamidade planetária, mas o foco é a reação da humanidade perante esta calamidade. Quem quer que tenha deixado de perceber isso, ao meu ver, fez um julgamento precipitado do texto. Porque isso está bastante explícito e enfatizado. Ou talvez simplesmente não leram o livro inteiro. Em termos de moral, de lição do texto, faço ressalva similar. Enxergar uma moral ou não em uma história reflete o grau de alerta do leitor e quanto a isso não posso esperar muito de boa parte dos críticos. Lembre-se que o grande cataclisma da história é a explosão de dois super-vulcões. Mas nenhum deles, de fato, causa diretamente um grande dano à humanidade. Dali em diante o suprimento de alimentos começa a entrar em declínio devido à diminuição da luz solar. E dali em diante é a humanidade que começa a se destruir a si própria. Para alguns essa pode ser uma descrição fantástica de um futuro improvável ou impossível. Para outros pode soar como um alerta quanto ao limites do comportamento humano. Ao segundo grupo posso fornecer material de discussão. Ao primeiro, enquanto escritor, não tenho nada para dizer.
- Minha próxima pergunta diz respeito a outro consenso entre muitos críticos, de que sua visão da humanidade é excessivamente ou particularmente pessimista. Pelo que você diz quanto aos próprios críticos e leitores insensíveis, posso assumir que esse pessimismo existe?
- Não me sinto um pessimista. Mas tenho profunda preocupação em ser o mais realista possível. Se eu achasse que o livro não conseguiria dialogar com ninguém eu simplesmente não o escreveria. Ou não me preocupararia em dar entrevistas agora. Deixaria o livro publicado na esperança de que a posteridade soubesse aproveitá-lo mas não me incomodaria em dialogar com o mundo agora. Há pessoas com uma profunda percepção e sensibilidade para questões importantes. Pessoas que vão muitíssimo além de mim nesses quesitos e com quem tenho muito a aprender. Mas a ignorância e a indiferença são também realidades fortes dentre os humanos. Não posso fingir que esses traços não existem. São tristes aspectos encontrados em qualquer grupo de seres humanos. Dentre pobres. Dentre militares. Dentre críticos literários. Dentre escritores. Dentre políticos. Dentre bilionários. Dentre médicos. Dentre padres. Todos os grupos possuem, em maior ou menor grau, sua parcela de seres humanos empáticos e aquela contrapartida de indiferentes insensíveis. Não acho que isso seja pessismo.
- Mas estritamente quanto ao rumo da história em seu livro pode-se dizer que você foi pessimista, não é?
- A história, em si, pode ser dita pessimista. A civilização empreende sua própria destruição em um caos sem fim devido à situação extrema a que foi exposta. Espero que os leitores entendam que não estou aqui "entregando o ouro" da leitura porque este nem é o ponto principal do livro. Tenho outros trabalhos rumo à publicação em breve e este é um traço comum a todas as histórias. Mas meu ato de publicar o livro e a minha postura enquanto escritor, enquanto ser humano, não é pessimista.
- Como assim? Poderia explicar melhor? E poderia também falar mais sobre o projeto de livros futuros?
- Claro. Primeiramente quanto à questão do pessimismo. Meu ato de escrever é um alerta. Estou apontando o problema da coordenação da sociedade como um todo diante de sérias questões. Não é um ato pessimista apontar um problema embora as pessoas rasas façam esta confusão com frequencia. Se estou pilotando um avião e o motor pifa de uma vez eu não sou um pessimista por dizer "o motor parou" ou mesmo "vamos cair". Pessimismo e otimismo decorrem do que faço diante dessas informações. Posso tomar medidas para procurar um bom local para pouso de emergência. Tentar prosseguir para outra pista ou mesmo retornar ao aeroporto de onde sair, ou ainda preparar os passageiros para um pouso forçado em condições difíceis. Ou mesmo voar o avião com um motor só se isso for possível, sei lá. Então aquela declaração inicial de que as coisas não iam bem foi tão somente uma constatação realista e, se dali em diante todas as minhas atitudes mostraram uma crença embutida de que no fundo tudo iria acabar bem, não faz sentido dizer que fui pessimista. Pessimista seria dizer "o motor parou" e então cruzar os braços e deixar o avião cair onde quer que fosse. Pessimismo envolve desistência. Pessimismo é uma atitude de indiferença. É neste sentido que não me considero pessimista enqanto autor mesmo que não esteja preocupado em defender que minhas histórias não são pessimistas. Elas são. Eu sou como o piloto que diz "estamos caindo". Se bem que não sou piloto. Sou um dos passageiros. Ou talvez esse seja outro erro... Na sociedade somos todos passageiros mas também com responsabilidades de piloto, mesmo quando não somos presidentes ou empresários ou generais, enfim...
- E quanto aos projetos futuros?
- São outras ideias na mesma linha. Este livro já traz em algum lugar da capa a menção à "série apocalipse". Há outros livros a caminho. Outras desgraças que colocam a civilização em risco. Um grande meteoro. Uma guerra nuclear. Uma invasão alienígena. Uma tempestade solar sem precedentes. Uma grande epidemia. São temas que aparecem em outras histórias. Em filmes e livros. Mas em todos os meus livros, de um jeito ou de outro, a civilização chega ao fim. Esta é a diferença. Os heróis não são suficientes. Mas, é preciso deixar claro, até para evitar a gafe dos críticos mais preguiçosos, que em nenhum desses livros o fim da civilização se dará pela calamidade inicial em si. Em A Sombra do Juízo Final não são os vulcões que fazem a humanidade acabar. E não é a falta de alimentos, no final, a principal causa de mortalidade. Há uma ferrenha guerra por comida e os poderosos tomam a iniciativa de matar aqueles que querem se apoderar de suas reservas de alimentos. A civilização provê, no fim, o próprio caos que a engolirá.
- Este é seu alerta de emergência, no fim das contas? Crê que nossa civilização caminha para isso?
- Sim, apenas não estou decidido quanto à palavra "caminha". Temos em nossa estrutura cultural a latência da auto-destruição. Porque não tratamos a questão de frente. Estamos preocupados com o dia de hoje. Com a produção industrial. Com os impostos. Com as próximas chuvas e com algum escândalo político. No caminhar do dia-a-dia vamos cultivando posturas políticas, ou favorecendo certas ignorãncias, que podem se condensar em algo mais intenso quando sob circunstâncias extremas. É parte da visão que tenho da nossa sociedade. Nossa cultura atual não diz respeito apenas ao que estamos vivendo agora. Ela carrega uma espécie de latência quanto ao comportamento que teríamos em situações diferentes. Um exemplo leve disso é o que vemos em países que guinam rapidamente da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita. Observamos, subitamente, emergir julgamentos políticos que pensavamos estar abandonados ou esquecidos. E eles surgem com intensidade. Vozes que estavam adormecidas. Ideias latentes que de repente irrompem. Então este é meu grito de emergência. A metáfora do avião não é uma escolha aleatória. Estamos, literalmente, em uma grande nava espacial. Um rochedo esférico flutuando pelo espaço. Mas aqui não há aeromoça. Não há um speech inicial de segurança. Então o que faremos no caso de uma emergência não está combinado. Será um cada um por si baseado em iniciativas próprias oriundas de posturas intelectuais, ideológicas e mesmo espirituais que já estão aí, apenas expostas a um contexto diferente. Dito de um outro modo... estamos tão preocupados com alguns aspectos imediatos da nossa sociedade, que também não estão resolvidos, que não atentamos para o potencial adormecido de nossa sociedade. O Holocausto já estava presente na sociedade alemã, como um potencial, antes de a Segunda Guerra eclodir.
Saudades de Aberdeen
Lembrei da cidade por acaso. Fui tomar café lá na escola e falei com o professor de inglês. Eu achava que ele era brasileiro. E que essa coisa de falar inglês com os alunos fosse um mero exagero de professor dedicado. "Só falamos em inglês e pronto!". Mas não. Ele é um gringo original. E me contou coisas da Escócia. E me lembrei daqueles poucos dias há cerca de quatro anos. O passeio nas ruas noturnas. As paisagens frias. A antiga igreja medieval, de estilo gótico, transformada em um bar-balada. De sua porta ampla de madeira saiam luzes coloridas. Jovens bebiam e conversavam. Conversas amistosas. E o sotaque. Adoro aquele sotaque. E a ajuda na noite fria. E o bar de videokê. Em que cantei com desconhecidos. Beatles! Quem diria, eu cantando Beatles em um barzinho de quinta categoria rodeado por escoceses felizes. Saudades de Aberdeen.
Raiva
Não pai, eu não quero saber dos seus problemas. Não quero saber se o leite vai ferver, se a lâmpada queimou, se vai perder a casa e se as contas estão vencidas. Você por vinte anos não ouviu os meus problemas. E agora estou aqui, cheio deles de novo, e você não vai ouvir. De novo. Foda-se. Vamos falar qualquer inutilidade. Pra constar que conversamos. Falar do vento. Do gato que engordou. Falar de quantos litros por quilômetros o carro está fazendo. Assuntos de hoje. Assuntos isentos. Assuntos que não interessam a nada. Porque dos seus problemas eu não quero saber. Porque esse tempo todo que eu quis saber deles, de nada adiantou.
sexta-feira, 15 de julho de 2016
O mentiroso
A babá soube que o menino havia mentido. Foi interrogá-lo diretamente.
- Você mentiu?
Fez que não, decidido. Apenas cinco anos e já mostrava uma determinação sólida em suas trapaças.
- Olha, eu vou perguntar de novo, e se você mentiu é melhor me contar! Porque mais cedo ou mais tarde eu vou ficar sabendo mesmo.
- E como você vai ficar sabendo? - perguntou o menino, tomado de curiosidade.
A babá explicou.
- Sabe aquela escadaria na entrada do colégio? Ela detecta mentirosos. Se você estiver mentindo, o terceiro degrau vai se quebrar e você vai despencar em um abismo!
O menino ficou pálido, completamente quieto e compenetrado. Até que chegaram em frente à escola. A babá, agora em tom grave, se dirigiu a ele.
- Vou perguntar mais uma vez... Você mentiu?
Engoliu em seco, olhou nos olhos dela e não chegou a emitir um único som. Apenas balançou a cabeça. Em negativa.
Posicionou-se diante da escadaria de madeira e parou por um momento. Olhou para a babá. Movimentou o primeiro pé e começou a subir. Primeiro degrau. Segundo degrau. Hesitou. Terceiro degrau. Prosseguiu. Nada aconteceu. Quarto degrau. Terminou de subir até o topo e então, exultante, voltou-se para a babá:
- Acho que tá quebrada!
História adaptada das "Piccole storie senza morale"
Famoso pra cachorro
Brugues é uma cidade super charmosa da Bélgica. Uma Veneza de água doce. Uma cidade medieval e moderna ao mesmo tempo, repleta de turistas e com as melhores batatas fritas do mundo. Passear por seus canais é dar um banho de descanso ao espírito. Nesse pequeno paraíso há um morador especial. Um cachorro que mora em uma das casas com vista para o canal. Na janela da casa há uma almofada para ele apoiar as patas. Ele fica lá, patas apoiadas, observando o movimento dos barquinhos cheios de turistas. E enquanto ele está absorto na tarefa de observar torna-se ele próprio a atração turística mais observada desse doce passeio.
quinta-feira, 14 de julho de 2016
Leitores
O que você está lendo? O que tem na página 47? Lê pra mim? Gosto de saber o que você está lendo. É ao mesmo tempo um pouco do que está entrando na sua mente e do que está saindo da sua curiosidade. Porque as almas são assim como o Sol que não pode ser olhado direto. É só nas sombras, em um eclipse, que o observamos em seus contornos. E a leitura habita nos contornos da alma.
Tarja preta
É comum dizer que o poder corrompe. Só não dizem, explicitamente, o que é que ele corrompe. Porque varia. Por vezes corrompe a integridade da pessoa. É este o sentido mais comum do ditado popular. Mas, noutras ocasiões, corrompe a própria sanidade. O esforço mental feito para apagar da consciência as lembranças de cada injustiça cometida terminarão por corroer também tudo o mais que deveria ser lembrado e a imagem do mundo se tornará uma confusa mistura de imaginações e memórias e delírios. O poder corrompe. Corrompe e corrói.
quarta-feira, 13 de julho de 2016
Medo das fotos
Medo. Era o lançamento de um livro. Eu tinha que ir. Minha amiga estava lá. Mas tantas máquinas, tantas! E eu não podia mandar aqueles fotógrafos todos pararem. Tem que avisar. Primeiro uma foto. Depois a outra. E se eu sair gorda? E se eu parecer velha? E se minha cara aparecer torta? O que vão falar?
Não consigo me livrar deste medo. Não consigo deixar de me assustar com isso. Fazer uma cara feia em um certo momento não é problema. Porque nossas caras aparecem e somem. Mas as fotos ficam aí para sempre denunciando aquele momento terrível para a eternidade.
Quero perder este medo. Sair nas fotos mostrando a língua. Fazendo careta. Sair nas fotos livre como minha alma se sente. Livre como gosto de ser quando ninguém está olhando.
Sem presentes. Sem parabéns
Eu queria comprar um presente de dia dos pais pra ele. Fiquei pensando um dia. Dois. Fui a uma loja. Fui a outra. Aí estava no carro, pensando em ideias alternativas, e lembrei que ele não é meu pai. E lembrei que meu pai está em outra cidade. E lembrei que meu pai não consegue evitar ficar enciumado e triste de ver como eu gosto dessa outra família que me acolheu. Neste dia dos pais, ficaram ambos sem presentes.
terça-feira, 12 de julho de 2016
Da nudez
Para se banhar o corpo é imprescindível que, primeiro, livre-se das vestimentas.
O mesmo ocorre com a alma.
Apenas sem nossas proteções é possível acessar a sujeira do dia-a-dia e remove-la.
Apenas sem nossas falsas aparências, adereços estéticos, é possível banhar a matéria da nossa existência. E também o núcleo de nossa essência.
Para que os corpos se misturem é imprescindível que, primeiro, se façam nus.
O mesmo ocorre com as almas.
Quais roupas há por cima de sua alma?
Como é, desnuda, vulnerável, sua alma?
Revele-se. Para si. Para o outro.
Livre-se do pudor dessas vestes.
Odeio meu trabalho mas ele paga minhas contas
Não gosto de ter que acordar cedo todos os dias.
Sem vontade.
Com sensação de querer ficar na cama.
Sair é ruim.
Ver aquelas pessoas.
Não gosto delas.
Irresponsáveis.
Falsas.
É um ambiente ruim.
Elas não entendem das músicas que eu entendo.
Elas não gostam de cachorro. Eu amo.
E elas não fazem o que deveriam. As planilhas. As ligações. Tudo fica para depois. Tudo é transferido para o outro. Tudo é tratado com desdém. Um lugar onde ninguém está a fim de nada. Um lugar onde eu não estou a fim de nada.
Mas como vou sair deste lugar?
Tenho minhas contas para pagar. Se eu sair, e meu carro novo? Troquei de carro agora.
E a casa? Estou pagando as prestações ainda. E eu moro com meu irmão. E ele está desempregado. Não dá para ter esse luxo de sair do emprego.
Preciso manter minha vida.
Preciso continuar abrindo mão da vida para manter minha vida.
segunda-feira, 11 de julho de 2016
Perguntas
Eu me divorciei quando minha mulher ainda estava grávida. Brigamos. Eu não conseguia conviver com o ciúme doentio dela. Ela não conseguia conversar comigo. Não queria saber de procurar ajuda. Acabamos nos separando. Mas ela já estava grávida. E nasceu o Ênio. Eu amo o Ênio. Minha família ama o Ênio. Minhas filhas. Meu filho. Até minha primeira ex-mulher o ama. Quem não ama um bebê lindo e sorridente?
A Rita vive em outra cidade. Rio Claro. Vou para lá aos finais de semana buscá-lo. Brinco com ele. Depois o levo de volta. Às vezes ele chora. Parte meu coração. E sinto que dói para a Rita também. Ciúmes é uma coisa difícil de controlar. Ver o filhinho chorando porque quer ficar com o pai, deve ser difícil pra ela.
E no meio dessa confusão toda eu me entendi com ela. Convivemos suficientemente bem. Às vezes, em feriados prolongados, eu trago a Rita pra casa também. Assim podemos ficar todos juntos com o Ênio. Minha família, claro, não concorda. Ela aprontou outras coisas depois do divórcio. Tentou arrancar mais e mais dinheiro de mim e mentiu algumas vezes pro juiz. Tentou impedir que eu visse o Ênio. Mas eu me entendi com ela. Sinto sim uma raiva interior, até um desprezo, mas de que adiantaria brigar e brigar e brigar sem parar? Não é exatamente um perdão. É pelo Ênio. Porque hoje temos um convívio pacífico. Já tem um bom tempo que não discuto com a Rita. Não falo mal dela. Sei que isso diminui também os episódios em que ela vá falar mal de mim para o Ênio.
E ainda assim, no meio de tudo isso, outro dia o Ênio, agora com pouco mais de quatro anos, veio até mim e perguntou, visivelmente curioso:
- Papai, a gente também é uma família?
Aforismo 77
Uma crença em algo que está correto é um conhecimento. Uma crença em algo que está errado é um engano. Não há meio termo.