segunda-feira, 18 de julho de 2016

Os livros do fim do mundo

Eu estava em um aeroporto nas imediações de Paris naquela época dos atentados. Tentei não ficar neurótico com a onda de preocupação que se seguiu. Não queria assistir os noticiários, ouvir o rádio ou mexer nos aplicativos de notícia do meu celular. Não queria nem mesmo ver as manchetes dos jornais na livraria. Fui para a seção de ficção descansar minha mente com a abstração de realidades imaginárias.
Um título então me saltou aos olhos. "A Sombra do Juízo Final" Como já acontecera com inúmeros outros livros, adiantei-me a amaldiçoá-lo mentalmente pensando tratar-se de um besteirol religioso qualquer. Lá fui eu dialogando comigo mesmo. "Afe, que jeito de ganhar dinheiro. Alimentando a ignorância alheia. Eu deveria deixar de lado meus princípios de honestidade e partir em busca desses níqueis também." Mas ao tomar o livro em mãos para um exame mais detalhado fui surpreendido pelo seu conteúdo. Não se tratava de uma obra religiosa. Tratava-se de um trabalho de ficção. A história se passava em um futuro não muito distante. Dois grandes vulcões da Terra haviam entrado em erupção lançando milhões de toneladas de detritos na atmosfera e diminuindo a entrada de luz do Sol em todo o globo.
Efeitos climáticos se seguiram. Com um inicial resfriamento em algumas regiões seguido de um acúmulo generalizado de calor devido a um efeito estufa. Mas o efeito mais importante foi a deterioração de produtividade nas grandes plantações da Terra, prejudicando o suprimento de alimentos. Guerras de todas as espécies começaram a irromper. Êxodos urbanos inimagináveis se seguiram. O livro retrata não o fim absoluto da humanidade mas, ao menos, a completa destruição da civilização moderna. Me chamou a atenção esse final e confesso que, ali mesmo, de pé na livraria, adiantei-me às páginas finais em busca de um final feliz. Não o encontrei. Não se tratava de um trabalho aos moldes de filmes de Hollywood. Achei isso positivo.
Já no avião, seguindo meu roteiro para a Estônia, qual não foi minha surpresa ao encontrar uma entrevista do autor na revista de bordo? Fiquei feliz ao ver que algum trabalho literário diferenciado tem chamado a atenção da mídia de alguma maneira. E creio que o autor teve uma certa sorte. Agora, depois dos atentados, certamente uma matéria assim não teria lugar. Afinal os editores se preocupam em alimentar um pouco de otimismo também. Deixo aqui um trecho da entrevista:
- Alguns críticos dizem que o seu texto é apenas uma descrição cataclísmica, desprovida de moral maior, e portanto seria uma literatura de menor valor. O que você tem a dizer a eles?
- Em primeiro lugar não cabe a mim julgar o peso de minha literatura. Uma vez pronto, acredito, o texto não é mais meu. Deve ser julgado pelo que ali está escrito e não pelo que eu possa ter a acrescentar. Mas este julgamento refletirá, invariavelmente, algo de quem está a julgar. O que posso dizer então, para não parecer que me esquivei da pergunta, entra aqui como uma opinião de leitor. Ou como a opinião de um idealizador do trabalho. O livro descreve uma verdadeira calamidade planetária, mas o foco é a reação da humanidade perante esta calamidade. Quem quer que tenha deixado de perceber isso, ao meu ver, fez um julgamento precipitado do texto. Porque isso está bastante explícito e enfatizado. Ou talvez simplesmente não leram o livro inteiro. Em termos de moral, de lição do texto, faço ressalva similar. Enxergar uma moral ou não em uma história reflete o grau de alerta do leitor e quanto a isso não posso esperar muito de boa parte dos críticos. Lembre-se que o grande cataclisma da história é a explosão de dois super-vulcões. Mas nenhum deles, de fato, causa diretamente um grande dano à humanidade. Dali em diante o suprimento de alimentos começa a entrar em declínio devido à diminuição da luz solar. E dali em diante é a humanidade que começa a se destruir a si própria. Para alguns essa pode ser uma descrição fantástica de um futuro improvável ou impossível. Para outros pode soar como um alerta quanto ao limites do comportamento humano. Ao segundo grupo posso fornecer material de discussão. Ao primeiro, enquanto escritor, não tenho nada para dizer.
- Minha próxima pergunta diz respeito a outro consenso entre muitos críticos, de que sua visão da humanidade é excessivamente ou particularmente pessimista. Pelo que você diz quanto aos próprios críticos e leitores insensíveis, posso assumir que esse pessimismo existe?
- Não me sinto um pessimista. Mas tenho profunda preocupação em ser o mais realista possível. Se eu achasse que o livro não conseguiria dialogar com ninguém eu simplesmente não o escreveria. Ou não me preocupararia em dar entrevistas agora. Deixaria o livro publicado na esperança de que a posteridade soubesse aproveitá-lo mas não me incomodaria em dialogar com o mundo agora. Há pessoas com uma profunda percepção e sensibilidade para questões importantes. Pessoas que vão muitíssimo além de mim nesses quesitos e com quem tenho muito a aprender. Mas a ignorância e a indiferença são também realidades fortes dentre os humanos. Não posso fingir que esses traços não existem. São tristes aspectos encontrados em qualquer grupo de seres humanos. Dentre pobres. Dentre militares. Dentre críticos literários. Dentre escritores. Dentre políticos. Dentre bilionários. Dentre médicos. Dentre padres. Todos os grupos possuem, em maior ou menor grau, sua parcela de seres humanos empáticos e aquela contrapartida de indiferentes insensíveis. Não acho que isso seja pessismo.
- Mas estritamente quanto ao rumo da história em seu livro pode-se dizer que você foi pessimista, não é?
- A história, em si, pode ser dita pessimista. A civilização empreende sua própria destruição em um caos sem fim devido à situação extrema a que foi exposta. Espero que os leitores entendam que não estou aqui "entregando o ouro" da leitura porque este nem é o ponto principal do livro. Tenho outros trabalhos rumo à publicação em breve e este é um traço comum a todas as histórias. Mas meu ato de publicar o livro e a minha postura enquanto escritor, enquanto ser humano, não é pessimista.
- Como assim? Poderia explicar melhor? E poderia também falar mais sobre o projeto de livros futuros?
- Claro. Primeiramente quanto à questão do pessimismo. Meu ato de escrever é um alerta. Estou apontando o problema da coordenação da sociedade como um todo diante de sérias questões. Não é um ato pessimista apontar um problema embora as pessoas rasas façam esta confusão com frequencia. Se estou pilotando um avião e o motor pifa de uma vez eu não sou um pessimista por dizer "o motor parou" ou mesmo "vamos cair". Pessimismo e otimismo decorrem do que faço diante dessas informações. Posso tomar medidas para procurar um bom local para pouso de emergência. Tentar prosseguir para outra pista ou mesmo retornar ao aeroporto de onde sair, ou ainda preparar os passageiros para um pouso forçado em condições difíceis. Ou mesmo voar o avião com um motor só se isso for possível, sei lá. Então aquela declaração inicial de que as coisas não iam bem foi tão somente uma constatação realista e, se dali em diante todas as minhas atitudes mostraram uma crença embutida de que no fundo tudo iria acabar bem, não faz sentido dizer que fui pessimista. Pessimista seria dizer "o motor parou" e então cruzar os braços e deixar o avião cair onde quer que fosse. Pessimismo envolve desistência. Pessimismo é uma atitude de indiferença. É neste sentido que não me considero pessimista enqanto autor mesmo que não esteja preocupado em defender que minhas histórias não são pessimistas. Elas são. Eu sou como o piloto que diz "estamos caindo". Se bem que não sou piloto. Sou um dos passageiros. Ou talvez esse seja outro erro... Na sociedade somos todos passageiros mas também com responsabilidades de piloto, mesmo quando não somos presidentes ou empresários ou generais, enfim...
- E quanto aos projetos futuros?
- São outras ideias na mesma linha. Este livro já traz em algum lugar da capa a menção à "série apocalipse". Há outros livros a caminho. Outras desgraças que colocam a civilização em risco. Um grande meteoro. Uma guerra nuclear. Uma invasão alienígena. Uma tempestade solar sem precedentes. Uma grande epidemia. São temas que aparecem em outras histórias. Em filmes e livros. Mas em todos os meus livros, de um jeito ou de outro, a civilização chega ao fim. Esta é a diferença. Os heróis não são suficientes. Mas, é preciso deixar claro, até para evitar a gafe dos críticos mais preguiçosos, que em nenhum desses livros o fim da civilização se dará pela calamidade inicial em si. Em A Sombra do Juízo Final não são os vulcões que fazem a humanidade acabar. E não é a falta de alimentos, no final, a principal causa de mortalidade. Há uma ferrenha guerra por comida e os poderosos tomam a iniciativa de matar aqueles que querem se apoderar de suas reservas de alimentos. A civilização provê, no fim, o próprio caos que a engolirá.
- Este é seu alerta de emergência, no fim das contas? Crê que nossa civilização caminha para isso?
- Sim, apenas não estou decidido quanto à palavra "caminha". Temos em nossa estrutura cultural a latência da auto-destruição. Porque não tratamos a questão de frente. Estamos preocupados com o dia de hoje. Com a produção industrial. Com os impostos. Com as próximas chuvas e com algum escândalo político. No caminhar do dia-a-dia vamos cultivando posturas políticas, ou favorecendo certas ignorãncias, que podem se condensar em algo mais intenso quando sob circunstâncias extremas. É parte da visão que tenho da nossa sociedade. Nossa cultura atual não diz respeito apenas ao que estamos vivendo agora. Ela carrega uma espécie de latência quanto ao comportamento que teríamos em situações diferentes. Um exemplo leve disso é o que vemos em países que guinam rapidamente da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita. Observamos, subitamente, emergir julgamentos políticos que pensavamos estar abandonados ou esquecidos. E eles surgem com intensidade. Vozes que estavam adormecidas. Ideias latentes que de repente irrompem. Então este é meu grito de emergência. A metáfora do avião não é uma escolha aleatória. Estamos, literalmente, em uma grande nava espacial. Um rochedo esférico flutuando pelo espaço. Mas aqui não há aeromoça. Não há um speech inicial de segurança. Então o que faremos no caso de uma emergência não está combinado. Será um cada um por si baseado em iniciativas próprias oriundas de posturas intelectuais, ideológicas e mesmo espirituais que já estão aí, apenas expostas a um contexto diferente. Dito de um outro modo... estamos tão preocupados com alguns aspectos imediatos da nossa sociedade, que também não estão resolvidos, que não atentamos para o potencial adormecido de nossa sociedade. O Holocausto já estava presente na sociedade alemã, como um potencial, antes de a Segunda Guerra eclodir.

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