segunda-feira, 22 de novembro de 2021

A parte e o todo

Quando a pessoa está triste, será que o neurônio da tristeza fica feliz?

Quando eu sonho com uma boa pizza, meus neurônios sabem o que se passa?

Quando um glóbulo branco persegue uma bactéria, suas moléculas sabem que estão vivendo uma aventura dramática?

Passando do nosso próprio nível organizacional e perceptível para baixo é fácil desmerecer essas questões como certas curiosidades bobas.

Mas o que dizer quando passamos para um nível acima?

Se nossa rede de comunicações estiver desenvolvendo algum tipo de inteligência ou mesmo consciência própria, nós de algum modo saberemos? Seria possível de algum modo investigar se isso está acontecendo, mesmo que a experiência e o conteúdo exato desse nível superior nos escape?

Essa possibilidade, para além de uma curiosidade teórica, é também um tanto quanto alentadora. Penso que a consciência do mundo interconectado está apenas começando a acordar. E, como um bebê recém nascido, ainda está formando muitas de suas conexões e está, inevitavelmente, cometendo muitos equívocos e erros durante o processo caótico de tentar aprender a interagir com o mundo.

Se este super cérebro vai algum dia adquirir alguma maturidade, ou se será para sempre um imbecil desfuncional, isso só o futuro dirá.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Urgências

 Não vou arrumar o mundo hoje.

Já me orgulho de ter arrumado a cama.

De ter preparado marmitas para uns três dias - sem carne.

Não vou arrumar o mundo hoje.

E o mundo vai continuar caindo aos pedaços.

Ódio, dúvida e equívoco se espalham. Chama em palha seca. Quem deixou a palha secar? 

Se alguns caem em erros óbvios hoje, outros erros são comuns a todos e não os enxergamos também a gente: a ideia de linearidade do avanço do mundo sempre foi uma ilusão sem fundamento. O mundo oscila em diversos processos vivos e complexos. As ideias avançam e se retraem feito ondas. Marés. Estamos vivendo uma inundação e não adianta ficar jogando água pra fora com baldinho. Está tudo inundado.

Mas é preciso continuar respirando.

E, se não dá para arrumar o mundo hoje, ainda há sentido em ajudar a pessoa ao lado.

É natural se sentir paralisado enquanto todos caminham para a inundação voluntaria e cegamente. Mas o futuro não depende de todos sobreviverem hoje. Basta alguns.

Tal qual na história da evolução biológica, também na história das ideias muitas vezes o que conectará o futuro e o passado será um estreito fio de renegados sobreviventes de um período sombrio.

Não é hoje que vou arrumar o mundo.

Mas vou sobreviver. E vou ajudar alguém mais a sobreviver. E, hoje, é essa a tarefa mais urgente para viabilizar o futuro.

terça-feira, 20 de abril de 2021

Desespero

Eu fui ali até a vida, me acheguei de jeito pra espiá o que se acontecia. E se acontecia muita coisa, ô! O homem da mesa empapelada ia nos países todos petroleando dinheiros, a deusa do vestido branco vozeava paraísos nos corações de públicos e câmeras: lentes e olhos choravam todos naqueles agudos suaves de deixar escorregar tristezas pra longe. Naquele mundo mágico até eu tinha um passado e sonhos e futuros e todos estavam ali juntos na mesa do bar rindo de suas mentiras deslavadas, de seus devaneios tolos. Não sabia quanto tempo eu poderia ficar ali olhando, curiosando coisas alheias, os segredos do mundo e de mim e de todos. E nem lembrava bem nas precisões da memória o lugar certo pra onde voltar. Voltar numa imaginária inconsciência do fluxo das coisas onde eu via menos e vivia mais sem saber nos detalhes o quanto da vida acontecia. Ali no mundo fantástico eu era um assombro: um fantasma que tudo via e nada tocava. E me sentia vivo. E de volta à vida, ao mergulhar em minha própria realidade de novo, eu sabia: viveria uma vida plena e, preso para sempre em uma vida só, me sentiria menos vivo. E vi a vida de perto, a vida dos outros. Dos felizes e dos sofredores, dos que fomeavam sem lembranças do último saciar, das brigas de almas desencontradas, das solidões tropeçadas em desejos tão tenros. E de algum jeito, dentro de mim, era ser preso demais ser condenado a uma vida só dentro de um universo tão rico. Inveja de Deus? Pequenez de si? Já se sentiu assim?