quinta-feira, 25 de março de 2010
Querida
Coitada da minha filha. Não está trabalhando com algo de que goste. Passa os dias lá, contabilizando aqueles números financeiros, montantes que nunca vai ver, que nunca vai tocar. Aí todo fim do mês pinga um dinheirinho na sua conta. Novecentos reais. Têm idéia da miséria que é isso? Se algum nativo do primeiro mundo estiver lendo isso, por favor, faça as devidas correções para o dólar ou o euro. Sim, vai ficar um número bem pequeno. E aí, todo fim do mês ela pega esse dinheirinho, ajuda na conta do telefone, paga ainda a internet sozinha, que é só ela quem usa, depois me deixa cinquenta, para o que eu precisar gastar. Aí o resto... O resto? Ela já recebe resto, mas enfim... O resto ela guarda um pouquinho na poupança para planos futuros. Pobrezinha. Trabalha por dinheiro, apenas. O que ela gostaria de fazer? Será que ela não tem vontade alguma? Será que ela está acomodada apenas? Por pior que seja o trabalho, é um lugar que a emprega e onde não há risco de ser mandada embora. Comodismo. E as coisas dela? O que ela realmente gostaria de estar fazendo? Eu gostaria tanto de saber. Tanto. Talvez ela devesse se jogar no mundo, viver misérias maiores porém mais cheia de emoção. Viver só esperando a vida passar não é lá dessas vidas mais magníficas, não é mesmo? Claro que não, todos sabem que não. Mas como eu a ajudo? Chego perto e ela se esconde. Passa o tempo todo no quarto. Vai ao trabalho, chega, vai pro quarto. Toma banho, quarto. Vai ao banheiro, quarto. Come qualquer tranqueira semi-biológica, quarto. Coitadinha dela.
terça-feira, 23 de março de 2010
Flagrante
Eu me faço mal. Estou com a boca seca, cabeça doendo. Eu não sou um super-homem. Quem disse que eu aguentaria isso? é que eu achei que não passaria por isso. Nunca decidi mentir pra mim: decidi, lembro bem, mudar o que sou. Deixar de amar, afinal, é isso, é mudar o que se é. Mas não consegui, e arco com as conseqüências. Amo, amo escodido. Amar escondido é amar? E minto pra ela todos os dias. Afinal, omitir é uma espécie de mentira menor, mas ainda assim uma mentira, não é? Ela se sentiria traída se soubesse? Não foi a intenção. É covardia se esconder assim e amar escondido? Ela deveria poder decidir se me autoriza ou não a amá-la? Ela deveria poder decidir se me submete ou não a tanto sofrimento por me contar tanto de sua vida? Eu não deveria perder tempo com essas questões. Essas questões, aliás, não deveriam existir, porque deveria ser tão fácil deixar de amar. O maior problema do mundo hoje não é justamente o oposto? As pessoas não conseguem evitar deixar de amar, não é isso? Namoros acabam, casamentos acabam, até a cumplicidade na traição, mais hora menos hora, acaba também. Ou será que acaba justamente porque desgasta, de modo que meu amor será eterno, eterno precisamente porque nunca começou?
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segunda-feira, 22 de março de 2010
Eu líquido
Ler Bauman é perturbador, profundamente perturbador, porque eu me descubro mais filho desta época do que gostaria de ser. Sou mais filho deste mundo do que imaginava ser, e bem lá onde a gente se acredita mais escondido, mais individual: meu íntimo é um produto desta época. Lendo Bauman entendo tanta coisa sobre mim. Mas essa existência interior é tão concreta que permanece a questão: entendê-la é algo capaz de alterá-la?
quinta-feira, 18 de março de 2010
Pós leitura
Tive uma luz ao ler o último livrinho que eu li. Era de uma autora boa, dessas que futucam lugares escondidos, sabe? Já leu algo assim?
Descobri, correndo as páginas, que ando longe de mim. É esse o resumo de todos os problemas. Tenho me escondido, fugido, ficado ausente. Mas não dos outros. De mim mesmo. Minhas sinceridades não me contam nada há um tempão. Só ouço minhas mentiras, minhas coisas escondidas se escondem e se sufocam debaixo de escombros de mentiras. Mentiras pequenas, talvez. Mentiras inocentes até. Mentiras sem importância, considerando-se a história do mundo, o mercado do petróleo ou o risco de destruição por asteróides. Mas, ainda assim, minhas mentiras, minhas, e isso cria perspectivas tão aterradoras de importância pra mim.
Olha só onde estou agora. No trabalho. Estou trabalhando? Não. Estou escrevendo de mim para mim mesmo, uma carta que talvez eu não precisasse escrever pois, autor e destinatário em um só, eu poderia só pensá-la. Mas preciso disso. Nesse momento é necessário. O que é necessário? Estar um pouquinho próximo de mim, e isso envolve confessar abertamente, ainda que só no silêncio das minhas introspecções, a catástrofe que é eu estar preso a um trabalho que não é a coisa mais sensacional do mundo, enquanto todas minhas vidas, todas as coisas que me empolgam, que me movem, que têm um poder de me desabar em lágrimas de desespero, todas essas coisas estão lá fora. Essas coisas, essas pessoas. E aí, o que fazer? Preciso escrever porque, vendo as palavras aí fora, sei com um pouquinho menos de dúvida que meus pensamentos são reais. Pensar apenas pensando é algo muito fácil de apagar.
Quando terei forças de ser sincero? Já conheço o caminho, falta andar nele. Confessar minhas coisas aqui, que coisa mais estranha. Não sei se consigo.
Lembro anos atrás, a empolgação com que eu me atirava às minhas coisas. Meus trabalhos, minhas curiosidades. É aterrador constatar o quão frágil era isso tudo. Frágil sim, porque foi por pouco, tão miseravelmente pouco que tudo se diluiu. Ou isso não é pouco? Um pequeno segredo fica gigante com o tempo? A História se importa?
Descobri, correndo as páginas, que ando longe de mim. É esse o resumo de todos os problemas. Tenho me escondido, fugido, ficado ausente. Mas não dos outros. De mim mesmo. Minhas sinceridades não me contam nada há um tempão. Só ouço minhas mentiras, minhas coisas escondidas se escondem e se sufocam debaixo de escombros de mentiras. Mentiras pequenas, talvez. Mentiras inocentes até. Mentiras sem importância, considerando-se a história do mundo, o mercado do petróleo ou o risco de destruição por asteróides. Mas, ainda assim, minhas mentiras, minhas, e isso cria perspectivas tão aterradoras de importância pra mim.
Olha só onde estou agora. No trabalho. Estou trabalhando? Não. Estou escrevendo de mim para mim mesmo, uma carta que talvez eu não precisasse escrever pois, autor e destinatário em um só, eu poderia só pensá-la. Mas preciso disso. Nesse momento é necessário. O que é necessário? Estar um pouquinho próximo de mim, e isso envolve confessar abertamente, ainda que só no silêncio das minhas introspecções, a catástrofe que é eu estar preso a um trabalho que não é a coisa mais sensacional do mundo, enquanto todas minhas vidas, todas as coisas que me empolgam, que me movem, que têm um poder de me desabar em lágrimas de desespero, todas essas coisas estão lá fora. Essas coisas, essas pessoas. E aí, o que fazer? Preciso escrever porque, vendo as palavras aí fora, sei com um pouquinho menos de dúvida que meus pensamentos são reais. Pensar apenas pensando é algo muito fácil de apagar.
Quando terei forças de ser sincero? Já conheço o caminho, falta andar nele. Confessar minhas coisas aqui, que coisa mais estranha. Não sei se consigo.
Lembro anos atrás, a empolgação com que eu me atirava às minhas coisas. Meus trabalhos, minhas curiosidades. É aterrador constatar o quão frágil era isso tudo. Frágil sim, porque foi por pouco, tão miseravelmente pouco que tudo se diluiu. Ou isso não é pouco? Um pequeno segredo fica gigante com o tempo? A História se importa?
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O imbecil
Qual a receita para ser um completo imbecil? Ele sabe, é claro que ele sabe. Ele chega aqui todo dia e repete a receita. Eu, que não sou imbecil, confesso uma certa dificuldade para entender todos os meandros desse mecanismo de imbecilidade. Não é que apesar de não ser imbecil eu seja burro. Não é isso. É que a imbecilidade é intrinsecamente aleatória e toda aleatoriedade desafia com garras duras as delicadezas da razão. Então eu não cheguei ainda a uma fórmula geral, tenho apenas os eventos isolados. Os comentários jogados, os sorrisos conclusivos que declaram não reconhecer a completa impertinência do que se disse. Isso é importante, ora como é. Um sorriso, qual belo é um sorriso, não é mesmo? Mas ele não é algo de valor absoluto, de forma alguma. Há sorrisos sarcásticos, há sorrisos que produzem ódio. O sorriso do imbecil, logo após ele ter dito alguma imbecilidade, atesta o tamanho de sua burrice. O que é pior do que se orgulhar abertamente de algo que não apresenta o menor mérito? Em uma criança, atribui-se todos esses momentos à infantilidade. Ela ainda não entende, que bonitinha! Está aprendendo, olha que doce. Mas o imbecil, o imbecil é diferente. Ele deveria saber, mas não sabe. Esse não saber causa um grande incômodo. Não se trata necessariamente de um saber técnico, enciclopédico, que deveria estar na cabeça dele mas não está. É em geral um saber mais profundo, social. Ele conta uma piada que não tem a menor graça, que ofende o bom gosto de todos os ouvintes, e ri. Ri com uma sinceridade que irrita, incomoda, desconcerta. E inicia-se um carnaval de calamidades. O riso é medonho não só porque acontece, mas também porque permanece. Ora, um idiota que continua a rir de algo completamente desapropriado, que saiu de sua própria boca, é claramente incapaz de captar os gritantes sinais de desaprovação de todos. Não se trata de ceifar a criatividade. Não se trata de um elitismo verbal de minha parte, como se eu preferisse que todos parassem de falar merda. Falar merda é ótimo, é sensacional, é uma condição essencial para a existência humana ser humana. A pertinência completa e mecânica de todas as sentenças ditas em todas as situações vividas sugeriria com grande ênfase que estaria na hora de nos substituirmos por máquinas, ou que talvez já tivéssemos terminado de nos metamorfosearmos em tal. Não é isso. Mas, quando falo merda, das duas uma... ou eu acreditava falar algo totalmente genial, e então percebi, com a ajuda do espelho público que é o rosto alheio, o tamanho da asneira que proferi, ou então eu já sabia de antemão o desordor da intestinice que iria proferir e cuidei para adotar uma reação cabível. Em suma, o que incomoda no imbecil não é a imbecilidade em si, não é o conteúdo de sua manifestação, propriamente dito. O que incomoda no imbecil é sua completa incapacidade de se saber idiota. De entender o que lhe dizem todos, e enfatizo, todos os que estão ao redor e reagem aos seus ditos com um olhar que não deixa dúvidas: nossa cara, como você é imbecil! Fora isso, não consigo mesmo captar uma receita geral. Às vezes ele é imbecil na reunião. Às vezes é imbecil quando fala de mulher. Quando emite opiniões técnicas sobre os assuntos do trabalho. Quando oferece café. Quando conta uma piada. É um imbecil muito pró-ativo, e eu terei que conviver com isso.
Existir, feliz
Existir, quando eu existo? Quando estou no trabalho, fazendo as coisas? Quando ganho mais dinheiro? Quando a vida é viabilizada? Ou quando me sinto profundamente feliz e vivo com a simples leitura de um livrinho aqui fechado num apertado e meio fedido quartinho dos fundos? Eu estou feliz. O livro é tão bom. A mente se sente tão viva. Como poderia um corpo ser vivo sem uma mente plenamente viva? Eu vivo da mente pra fora, mas ando ou andava morto por aí. Ressucito, volto, teimo. De que adianta morrer e largar o corpo andando por aí? Tenho meu jeito de viver e gosto de deixá-lo acontecer. Feliz, feliz.
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