sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Leonora

Ah, o mesmo movimento. Quantas vezes isso já aconteceu? A história é testemunha de que não há repetição que traga prática suficiente para evitar problemas. Quem quer que se aventure neste ofício deve abstrair destas impossibilidades. Ou, por bênção do acaso, deve possuir uma mente que já venha de fábrica muito pouco propensa a abstrações. Não é, portanto, nenhuma coincidência que seja assim as mentes dos mecânicos. Rústicas, brutas, como as chaves que seguram. Como o ferro que martelam, giram, derretem, puxam...

Lá está o Décio. Roupa completamente suja. Mãos, braços, tudo com o negro pegajoso do óleo, como a poeira do ambiente. Até no rosto. Um barulho estranho no escapamento. Um cansaço da engenharia e uma vitória da perseverante força da natureza que a tudo busca retornar ao caos. Mas lá vai o Décio e salva a civilização. Localiza o parafuso solto, o ferro torto, e endireita o perfeccionismo dos nossos anseios pelas melhores máquinas como metáforas para melhores vidas. Quantos Décios constroem a história? As pontes que permitem que o passado caminhe até o futuro com um ritmo sempre otimista?

Décio não sabe nada disso. Amaldiçoou um golpe mal dado que lhe meteu o alicate no indicador e depois ficou pensando que talvez tenha achado o defeito rapidamente demais. Afinal foi a Leonora, uma jovem arquiteta, que trouxe o carro. Uma jovem chamada Leonora, e dirigindo um carro desses, com câmbio automático e bancos de couro, não saberia a diferença entre um escapamento meio solto e um pistão faltando. Ele poderia ter enrolado um pouco mais e encontrado um outro defeito. Mas Leonora tinha olhos negros profundos e cabelos da mesma forma. E uma pele branca que parecia pintura, quase artificial de tão perfeita que era a combinação. E pediu o serviço com um sorriso. Algumas mulheres riem pelo instinto natural que tem nossa espécie de sorrir. Mas outras parecem saber que há no sorriso algo mais que uma mera reação visceral. Entendem tratar-se de uma verdadeira arma. E foi assim que fez Leonora. Incurtiu em Décio uma empolgação, uma empatia tal, que logo estava ele embaixo do carro, todo imundo, porco do suor que não se podia evitar no calor da pequena oficina, feliz. Resolveu o problema rapidamente. Não ganharia muito, mas ganharia um sorriso. Era apenas um mecânico. Na maioria dos dias um zé ninguém distante de toda a poesia de suas realizações. Mas sabia que muito em breve, ainda que por pouco tempo, seria no olhar agradecido de Leonora o melhor de todos os mecânicos do mundo.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Mentiras

Ah, eu sabia que ela estaria lá, é claro que sabia. Ela iria aonde? No banheiro? Na cozinha? Cuidar da vida? Não, não ia não. Porque eu a havia marcado profundamente e então ela só podia estar em um lugar: sentada a beira da cama pensando em mim. Mas é assim mesmo, é só fazer a coisa certa. Nada de dúvidas. Se eu tenho dúvidas, isso é problema meu. Com a mina, na hora, a gente tem que acertar. E eu acerto. Um super restaurante. Confiança. Pode ser que eu largo dela amanhã, mas por enquanto é como se eu fosse o príncipe encantado para a vida toda. E nossa foto num fim de tarde perfeito, andando na praia. Tem coisa melhor? Como é que eu fui parar na praia, morando aqui em Belo Horizonte? Ué, eu estou falando que fiz tudo certinho... Um amigo meu é piloto executivo... Tinha que levar um avião até Vitória e trazer outro. Eu tava sabendo diss, troquei uma idéia com ele e então estava tudo acertado. E agora ela está lá, olhando nossa foto na beira da praia. Não é pra menos. Eu pareço mesmo um milionário poderoso, todo feliz!

Cara, você tem que ver com seus próprios olhos... Eu tinha falado que a gente acabaria andando pela praia à tarde. Ela não acreditou no começo. Eu insisti, falei que o avião era sério e tal. E aí ela veio... Não com aquele jeans que ela sempre trabalha, aquela roupa toda certinha. Ela veio com um shortinho desses brancos, bem finos. Uma blusinha mega decotada e o bikini por baixo. A blusinha era só um pano fino mesmo, só o que precisava pra não dizer que estava sem nada. E o dia perfeito.

E como é que eu sei que ela está olhando a foto que eu dei pra ela? Eu moro num casarão aqui na Rua Expedicionário Mário Alves de Oliveira, um lugar bem confortável. E a gostosa mora na casa do lado. Ela não sabe, mas tem um lugar aqui do quintal, mais nos fundos, que dá pra ver bem na janela do quarto dela. Eu iria lá agora. Mas é preciso ter calma. Só um pouco mais de calma. E aí amanhã ela não vai ver só a foto não. Vai poder me ver inteiro na frente dela. E eu vou poder vê-la bem de perto também, o que é a melhor parte!

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

O espírito das palavras

Ocorreu-me que as palavras têm espíritos.

Perambulando por aí entre as várias vidas que se desenrolam pude observá-las.

"Eu te amo" sofrendo de solidão quando não encontram seus iguais.

"Peremptório" toda orgulhosa de si, aristocrática, sentindo prazer na altivez do seu isolamento.

Palavras desfrutam de sentimentos diferentes.

Algumas são gregárias, carentes até.

Outras são solitárias, independentes, não querem saber de mais ninguém por perto.

Algumas são imediatistas.

Outras parecem exalar a própria eternidade.

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Raspão

Numa escuna azul
Mar de Parati
Te levei pra ver
Golfinhos peixes
Corais Tesouros
Secretos

Corações

Você é transparente. Transparentíssima, de deixar ver de um lado a outro. Eu não deveria ver tanto. Ou deveria? Não sei lidar com tantas verdades.

O gerente

O gerente sabe que os funcionários mais baixos não estão vivendo bem.

E se tivessem estudado mais?

A vida não é justa.

Ele não pode resolver tudo.

O gerente sabe que há dinheiro de sobra para melhorar substancialmente a vida de milhares desses funcionários que passam longas horas em exaustivos trabalhos físicos e que mal conseguem aproveitar a família ou o resto da vida no tempo livre devido à exaustão.

Mas e os acionistas?

E os relatórios de performance?

E a teoria economica, que diz que reduzir custos é um jeito de aumentar os ganhos?

Custos.

As pessoas custam.

O bem estar alheio custa.

O gerente sabe que se fizer o que acha mais certo logo será substituído por pessoas capazes de continuar fazendo tudo errado.

O gerente não tem escolha.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

De novo

Sabe, eu fico aqui pensando em você, e sei lá como pensar em você. A madrugada não me engoliria assim se você estivesse mais dentro da minha vida. Será? Imagino, imagino e não sei. Conversamos até as cinco da manhã outro dia, não foi? Não conseguíamos parar de falar. Não víamos nossos rostos. Era tudo escuro aqui no quarto. Mas nossas palavras se encontravam no vazio, no ar, e não queriam parar. Dançavam daqui pra lá. E algo fez você ficar tão longe. Sabe, eu não quero mais amar. Eu te amo, e não quero dar esse amor a mais ninguém, não importa que você não o queira. Não importa. É seu. E ficará num canto qualquer. O amor que não amamos. Um dia alguém o encontrará. Os escafandristas do Chico Buarque, será? Será mesmo? É fraqueza minha não conseguir deixar de te amar. Mas é heróico o quanto tenho tentado. Só que cansei de mentir pra mim. Cansei.

domingo, 26 de janeiro de 2020

Sobrado

Eu moro numa casinha num bairro jogado. Desses que, se aparecerem na TV, será num programa de doação de eletrodomésticos e móveis de quinta categoria ou, mais provavelmente, num jornal policial (também de quinta categoria). Jornais de boa qualidade estão por demais preocupados com indicadores mundiais e fofocas da política para gastarem alguma atenção com a monotonia dos rios de sangue dessa gente que morre por atacado mas nunca acaba.

Tem uma pizzaria aqui embaixo. Sim, é um sobrado, e embaixo é uma pizzaria. Moro num quartinho, na verdade. A casa é alugada por três pessoas. Um engenheiro, um estudante de física e uma estudante de letras. Eu, no caso, sou o engenheiro. Mas não se deixe iludir. Os estereótipos, como sempre, são distorcidos com muita selvageria pelas circunstâncias da vida. Eu passo todo meu tempo livre aqui às voltas com música e leituras. Já a estudante de letras, que não sabe o que quer da vida, não perde uma festa sequer e está cada semana com um cara diferente, que invariavelmente se apaixona por ela. Que invariavelmente toma um pé na bunda e fica arrasado. Que invariavelmente transforma o vazio amoroso em raiva na semana seguinte, quando aparece aqui e dá de cara com o mais novo substituto. Já o estudante de física, não, não está o dia inteiro em livros e em experimentos malucos e cálculos sem fim. Política. O negócio dele é política. Quer saber quem será o próximo reitor da universidade. Não entende o descaso do governo federal com a educação. Não entende o descaso de todos com o descaso da política. Não entende que eu seja engenheiro e só esteja preocupado com o bem-estar imediato do meu dia-a-dia. Não entende que a Laura seja humanista em formação e só queira saber de sexo, bebida, dança, sexo, homens, sexo, dinheiro, sexo e viagens.

Eu gosto da vida por aqui. Mudei faz coisa de um ano, por aí. Aqui é perto do trabalho. La no outro bairro em que eu morava, do outro lado da metrópole, lá era um canto esquecido, desses que nunca aparecem nos jornais de importância e onde vai se vivendo. Igual aqui. Mas era longe do trabalho. Como toda periferia, os dias de calor transformam tudo num inferno. Não temos uma piscina porque no lugar dela já tem vizinhos. Não temos vento porque são paredes e mais paredes por todos os lados. E os cômodos são pequenos demais pro vento entrar. Quente, no verão é quente. Mas fico à vontade.

Mudei só querendo ficar mais perto do trabalho. Mas descobri que mudar é bom. Deixei tanta coisa de lado. Lá em casa tinha minha família. Tinha meu jeito de viver os dias. Aqui como que me vi totalmente livre pra bolar dias novos. Foi assim que finalmente realizei meu desejo de começar a ler e a escrever mais. E a música, ah! A música. Todo final de semana vem uns amigos. Violão. Flauta. Pandeiro. Tambores de qualquer espécie, do bongô mais caro da Teodoro até uma lata de lixo ou balde velho, devidamente testado para identificar os timbres certos. Cantamos. No improviso ou na lembrança, no plágio ou na inspiração. Música é música. Música lava a alma. Lá na minha outra casa não tinha dessa mesma música. Dessas pessoas assim, que vinham, cantavam e iam embora. E lá a pizza demorava bem mais pra chegar. Lá eu tinha outras coisas pra fazer. Não podia sentar e ficar assim escrevendo à toa, porque tinha tanta coisa pra fazer. As paredes precizando de pintura, o gato precisando de comida, as poeiras precisando de vassouras.

Gosto daqui. Das pessoas que logo vão sumir. Gosto de saber que logo acaba, e que ninguém está dramatizando com isso. Gosto de saber que vai mudar logo, e não fazer a menor idéia de como vai mudar. Vai mudar e pronto. E os segundos são os mesmos, sempre os mesmos, e segundo após segundo, fico eu com esse sorriso espontâneo grudado na cara, de quem gosta de viver e está achando tudo muito bom.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Atlântico

De que forma eu compro a alegria de te ter por perto?

Hoje no ônibus vi uma bunda como poucas vejo nesta cidade de milhões de bundas.

No trabalho soube que viajarei ao exterior em breve, tudo pago, bonificações, e ainda posso escolher onde ir estudar.

Toquei meu clarinete ao chegar em casa. As notas saiam redondas, o som bonito, aveludado, coisa mais tranquilizadora.

E eu penso em você, sonhando loucamente para que esteja pensando em mim. Transformando irracionalmente todas suas declarações em referências indiretas a mim. Acho graça de um gostar assim arredio a qualquer disciplina. Imortal contra todas minhas tentativas despudoradas de desmerecê-lo.

Que saudade gigante.

Gigante. Maior que o Atlântico todo, com seus abismos, peixinhos, baleias e tudo...

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Burro

A Aline, a Cristina, a Tereza, a Marcia, a Gabriela, a outra Gabriela, a Joana... Penso em todas as histórias e descubro, consternado: não sei não me apaixonar. Não consigo. Não consigo não me entregar demais até não sobrar muito da minha alma em mim. Sou assim, a cada vez foi assim que fui. Vai acontecer de novo, eu sei...

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Alquímico

Minhas visículas começaram a produzir amor demais.

Procurei curandeiros, médicos, advogados, engenheiros, pedreiros, chineses e camelôs. Procurei um homeopata.

Solução: diluir o amor.

Diluir em água? Não, amor se dissolve em outros amores, disse ele.

E então dei-me a outros amores.

Loira peituda, alta, perna grossa.

Libanesa trintona super gostosa, simpática, que estava infeliz no casamento. Um doce...

Morena dançarina, rebola como ninguém, coxa com coxa. Cheiro de impregnar.

A namorada toda certinha que tinha duas faculdades, um bom emprego, leitora voraz, atenciosa com a família, perfeita nos ideais da normalidade.

Olhar excitante. Pele com pele.

Menininha inocente, longos cabelos compridos, lisos, impressionada com os mistérios de minha pouca idade a mais.

Filósofa voraz leitora de tudo. Tudo. Filosofias, romances, guias, folhetinhos. Tudo. E conversadora. Horas de conversas no sofá sob o cobertor. O melhor chocolate quente é aquele que vem cremoso, com um leve toque de conhaque e coberto de muitas frases raras. Se tiverem a delicadeza de enfeitá-lo com bons olhares então, é um paraíso.

A atriz que tinha nos jeitos da saudade a poesia dos palcos. E abraçava apertado. Mordia. Apertava as mãos em mim forte, com medo de deixar escorregar.
Com medo do tempo passar rápido demais.

E então ela, aquela de antes, aparece dizendo tchau. Outro país, morar fora.

Não consigo: não quero.

Amor não se dilui. Com sorte e um bom sufoco, se esconde. E se ele não morrer sufocado, azar o seu.

Pele

Eu a vi a primeira vez perto do metrô, onde marcamos um encontro. Não um encontro amoroso: ela me daria carona para uma festa que tínhamos mais tarde. Amigos em comum, essas coisas. E é inevitável, todo homem sabe: falávamos de coisas banais, eu olhava as pernas dela. Ríamos risadas triviais, eu deixava os olhares se cruzarem. Olhava bochechas, peitos, braços, mãos, unhas, dedos, barriga, quadris.

Conversamos sobre a chuva do dia anterior e como isso atrapalhou a futilidade de nossas rotinas, mas em minha mente não consigo deixar de imaginar que gosto teria morder aquelas pernas apetitosas.

E agora não consigo deixar de ponderar:

Quando foi que ela se descobriu lésbica? O que foi que os homens todos deixaram de fazer para perder essa jóia dos domínios de nosso reino?

É só isso. Estou chateado e ponderando a respeito... Queria tanto morder aquelas pernas...

domingo, 12 de janeiro de 2020

Normal

Um remédio para dor de cabeça tem para mim uma eficiência assustadora. Eu olho para a cartelinha de comprimidos e então, horrorizado com a idéia de colocar sabe-se lá que substância dentro do meu cérebro, já começo a melhorar.

Continental

As duas moças no banco de trás do ônibus eram um barato. "Um barato", que expressão... será que estou velho? Outro dia chamei alguém de "nó cego" e ninguém entendeu. Falaram que era uma expressão de vovô, que nunca tinham visto alguém usar isso desde a TV colorida. Enfim, mas as duas eram um barato, isso eram. Falavam de relacionamento. Uma delas estava com problemas de namoro e a outra ia aconselhando.

- Ih, mas é assim, é assim mesmo! Você quer sair, muda de planos. Sai do trabalho, dá uma ligadinha e fala um oi, fala que tá indo ver sei lá o quê, pronto desliga, tá avisado, sabe... É isso, é trabalhoso, mas é assim!

- Meu, eu não vou conseguir. Avisar qualquer mudança de plano todo dia? Eu não faço isso nem com a minha mãe! Não dá. Sei lá. Acho que é melhor assim: a gente namora de fim de semana e fica solteiro durante a semana. Não dá. Dar satisfação sempre? Nunca fiz isso na vida!

Como sensibilizei com ela. Quase virei-me para de repente dar um abraço nela, em sinal de identificação com a causa. E também em sinal de que eu reparara no quão bonita era a moça.

Impasses

Eu não entendo os acadêmicos do mundo, e ainda assim gosto tanto de estudar.

Eu não entendo a poesia das saudades, e ainda assim sinto tantas faltas.

Eu não entendo a poesia dos amores, e ainda assim choro tantos sonhos.

Eu não entendo o amor das mães, e ainda assim adoto tantas vidas.

Eu não entendo a solidão, e ainda assim não sei onde estou.

sábado, 11 de janeiro de 2020

Cláudia

Ela chora a soluços largos. Profundos. Parece um dinossauro tossindo, de tão graves e fortes que são os solavancos. Se não é poética a descrição, acredite então na sua precisão.

De seus olhos não caem lágrimas. Desmoronavam parques cheios de gente. Mãos dadas. Bebês no colo. Famílias na praia ensolarada. Sono num ombro quente no banco do avião. Risadas cúmplices na mesa do bar. Tudo isso desmoronava barulhosamente, batendo no pé da cama, escorrendo para o chão, vazando para o inferno.

Para o inferno, que é de onde tudo isso veio. Do inferno surgem essas ilusões impossíveis que nos cegam para a verdade.

Entre um soluço e outro ela teve esse lampejo. Ele não era, afinal, a pessoa para realizar todos esses sonhos, mas só agora ela entendia.

Pensou sobre essas ilusões tantas.

Não é curioso que, como tudo que vem do inferno, as ilusões deliradas sejam tão prazerosas e irresistíveis antes que a realidade recupere o fôlego e se imponha?

Chorou uma vida a menos a cada soluço.

É que entender... entender conforta.

O que vi

Uma das maiores barreiras a impedir as pessoas de chegarem a um conhecimento científico do mundo é o quăo fracas elas se fazem diante das próprias fraquezas. Rendem-se aos próprios anseios, acorrentam-se ŕs mais infantis ilusőes.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

TicTac

O cansaço me digere
Eu deixo,
eu deixo ele me engolir
Levar minha raiva
Meus anseios
Meus sonhos
Meus pensamentos
Cansaço, sono
Latente, latente e não vai
Bêbado
Sonhando sonhos de um mundo em que não há sonhos
Apertado a mim
Mas digerido, pouco a pouco
Pouco a pouco tudo se vai na digestão do tempo
Minhas saudades
Meus sonhos
O que restará?
De tão longe, de tão longe, algo vem pra cá?
Do que eu era, algo vai voltar a ser?
Do que eu seria, algo vai sobreviver?

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Espelhos

A pior coisa que pode acontecer quando se quer guardar um segredo é conseguí-lo. Pois foi o que aconteceu. Guardei um segredo sem saber que com isso eu guardava uma parte de mim para fora do mundo. Uma parte de mim que agora não está no mundo, não faz parte desta realidade. Não existe, embora exista. Não importa, embora importe. Não se enxerga mas está lá. Então não tenho a quem culpar se não a mim mesmo por toda essa invisibilidadde. Quando as pessoas não entendem o que se passa comigo isso é tão somente reflexo deste meu sucesso de Pirro: o segredo continua bem guardado, ninguém nem desconfia. Foi assim que virei dois. O que existe e o virtual. O material e a sombra. O concreto e o abstrato. Dois em uma dualidade que é em parte dona do mundo e em parte amasmorrada sem luz sem água sem visita, sozinha na solidão fria do isolamento indiferente. Porque é esse o peso de não ser sabido. É esse o peso de pensar sem eco. É esse o peso de amar sem voz. De doer sem lágrima. De gritar sem som. De respirar sem ar. De existir sem corpo. De viver sem você.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Outubro

- Sabe cara, é estranhíssima essa situação, por um lado você totalmente convicto de que agiu corretamente, mas ao mesmo tempo meio mutilado, sabe que a deixou mal, ou então parte de você com raiva dela, porque ela falou coisas que agora você quer revidar de formas muito melhores pra não deixar barato.

- É uma bosta... Mas não tem como ser diferente, não é?

- Não, não tem mesmo. É sempre assim.

- Ela disse que há coisas mal resolvidas no meu passado. Disse que a Melina está querendo me manipular, que é a Melina que fica fuçando no Orkut dela e tal, disse que descobriu alguma mentira nas coisas que eu já falei pra ela e que por isso perdeu a confiança em mim, mas não quis dizer que mentira foi essa.

- Nossa, isso é bem sério!

- É mesmo! Mas sabe, eu não tenho a menor idéia de qual mentira pode ser essa, e é muito, mas muitíssimo provável, que esta mentira seja alguma invenção da mente doentia dela, que fica caçando coisas. Pra mim, ainda que houvesse mentira, o problema continua sendo esse... O que ela está se metendo no meu passado? Cada um tem um passado diferente e o que importa é o daqui pra frente.

- Mas sua mentira foi um evento do presente, pertencente já à história de vocês dois.

- Boa, isso é verdade. Quer dizer, é verdade se eu menti, e eu acho que não. Acho que é coisa da mente doentia dela, como já disse. Mas tá, a mentira é um evento do presente... E por que, no presente, ela foi fuçar no meu passado?

- E se ela tem que ter uma postura de indiferença com relação ao seu passado, no sentido de que não deve fazer de qualquer coisa um verdadeiro cavalo de batalha, por que você não pode ter a mesma postura consigo mesmo e ser indiferente ao seu passado, deste modo falando livremente dele justamente porque não importa mais nada?

- Sei lá, ou fraqueza, talvez eu não quisesse que esse passado tenha acontecido, talvez eu tenha mudado a ponto de repreender certas coisas em mim, não ao nível do arrependimento, da crise de consciência, mas não quero mais que coisas do passado invadam o presente me definindo, aí decido esconder as coisas, é uma explicação plausível, não é?

- Humana demais, talvez.

- Sabe, falar que há algo de errado com meu passado, algo não resolvido em mim... Ela me manipulou, no fundo foi ela quem me manipulou. Eu sempre fui muito claro sobre tudo nessa história, mas ela nunca me deu ouvidos e acabou levando a história até um ponto insustentável.

- Como assim?

- Desde o começo eu falei explicitamente que não queria nada sério. E quando vai ver, a gente já está namorando! Quando viajei pra praia com ela, falei pra ela que minha vida estava mudando com o trabalho, que eu teria pouco tempo pra ela, que não nos veríamos sempre. E daí passamos a nos ver todos os finais de semana.

- Talvez ela não se sentisse segura.

- Exatamente, não se sentia. Ela não se sentia segura porque eu era transparente com ela. Se desse um jeito de vê-la todo final de semana pra fazer uma média, mandasse mensagenzinhas todos os dias cheias de declarações e tal, daí pra frente pouco importaria se eu comesse uma puta por dia. Mas não, eu só tinha minha mente voltada pra ela, e queria poder me dedicar às minhas coisas com o mesmo afinco que faço em tempos de solteirice, não gosto da idéia de alguém estar tomando meus pensamentos no meio do dia, não gosto da idéia de falar horas com ela no telefone ao longo do dia ao invés de andar pensando em outras coisas, outras quaisquer que sejam, porque tudo o que eu quero é esse tempo pra mim. Ela me acusou de não conseguir organizar a minha vida. Em parte tem razão, dou vários tiros no pé, é verdade. Mas é mentira que eu não consigo tempo pros meus amigos, pra minha casa, e pro meu trabalho e minhas aulas. A verdade é que nesse meio tempo em que ela esteve na minha vida, aí sim as coisas se bagunçaram. E se bagunçaram porque ela entrou com os pés na porta querendo tomar pra ela mais do que eu estava disposto a oferecer. E erramos os dois ao achar que havia como acomodar essa discrepância fodida de quereres que não se batem.

- Não precisa dizer que só tinha a mente voltada pra ela. Pouquíssimas pessoas passam repetidas vezes na vida por essa experiência de ter a mente tomada única e exclusivamente por uma pessoa. E mesmo nesses casos extremos é idealístico demais dizer que nunca passa por essa mente apaixonada considerações paralelas desta ou daquela vez que uma pessoa encantadora aparece surgida detrás de uma novidade qualquer.

- Tá, não quero dizer que meu coração é o lugar mais vazio do mundo, pois a verdade é longe disso, mas o fato é que fui fiel a ela esse tempo todo, e sem esforço algum, com naturalidade, e é foda pra mim, mas muito foda mesmo, saber que ela paga um pau ferrado pro Gustavo, por exemplo, pela forma apaixonada e cheia de atenção que ela o viu tentar reatar com a namorada. O que ela não sabe é que enquanto ele tentava reatar com a namorada comprando toneladas de flores e chocolates, comia uma por dia a semana inteira, ou puta ou uma coitada qualquer lá do serviço dele, e aí tudo passa a se justificar. Se eu comesse sei lá quem durante a semana, chegaria aos fins de semana certamente muito mais atencioso também, pois precisaria dar um jeito de jogar minha culpa pra baixo do tapete produzindo na outra pessoa qualquer sentimento de alegria cuja aparência se sobrepusesse à consciência dos meus erros.

- Calma, calma, não precisa também sair punindo os outros, julgando quem é ou não é mais culpado ou sei lá o que. Deixe seu amigo viver a vida dele como ele bem entende e você procure viver a sua como bem lhe convenha, é nisso que tem que se concentrar. De que adianta se comparar aos demais quando há tantas e tantas formas de vidas diferentes aí e não temos como saber, realmente, qual delas produz a pessoa mais feliz? Concentre-se na visão privilegiada que tem da sua própria vida e faça o melhor que pode fazer para si.

- Mas é isso que estou fazendo. Não estava bem nesse relacionamento que foi pra onde eu não queria ir, e saí dele. Essa discussão sobre o Gustavo é paralela, é só pra enriquecer a ironia que encontramos no mundo.

- Ah, as ironias do mundo. No fundo, confesse, você gosta disso, não é?

- Das ironias? Ô se gosto!

- Não não, não fique só nas ironias. Não é só delas que gosta. Gosta dessa vida bagunçada que te permite encontrá-las, não é?

- Ah sim, isso também.

- Sabe, às vezes você fica cheio de problemas com suas confusões, ou relacionamentos com as mulheres, ou suas confusões na sua casa, seu irmão distante, seu pai, enfim, uma série de coisas. Mas você criou um espaço no meio disso tudo, que por estranho que seja, você protege com um afindo assustador.

- Tá, acho que até faz algum sentido, se é o que estou pensando. Mas que tipo de espaço você quer dizer?

- Uma espécie de solidão móvel que você carrega em torno de si para mundos diferentes para olhar as coisas de um ponto de vista privilegiado e depois retornar em segurança ao calor do seu quarto e meditar a respeito. Você acorda e diz pra uma parte de si olha, vou ali fora olhar o mundo e já volto, tudo bem? E essa outra parte não vai junto não. Fica em casa, esperando o retorno. Tua crise aí com essa moça foi essa mesma, ela queria as duas metades, tá certa ela. Estranha essa sua relação de se reservar tanto, não acha?

- Ruim na medida em que faz mal pra mim ou pros outros. Neste caso, começou a fazer mal demais pra ela e eu não consegui fazer isso parar sem que não fizesse mal pra mim também, daí resolvi parar.

- E vai ser assim pra sempre? Se for assim, talvez você acabe se isolando de todo mundo, porque no fundo o que você está fazendo é impedir que as pessoas tenham acesso a uma parte de você, que mais cedo ou mais tarde, você deveria dividir com alguém.

- Por que diabos eu teria que dividir com alguém essa metade do meu íntimo?

- Porque se não essa metade nunca vai existir. Só existe o que é compartilhado. Talvez alguém tenha pintado quadros melhores que os de Monet ou Van Gogh, e os pintou em isolamento e jogou as telas no rio ao lado. Talvez alguém tenha feito músicas mais fantásticas que as de Mozart, Vivaldi, Beethoven, mas perdeu as partituras. E daí? Talvez alguém tenha feito a melhor piada da história, e morreu de rir ao contá-la pra si mesmo, e pro resto do mundo, que não soube dos detalhes, a coisa toda não teve a menor graça, pois só tiveram que carregar o corpo e nada mais.

- Você está perdendo o foco.

- Como assim?

- Minha vida é vivida por mim. Sou espectador o tempo todo. Se ninguém mais vê minha vida, que usem esse tempo vendo as próprias vidas. Se não estou dividindo algo porque acho que esse algo é melhor vivido a sós comigo, então que respeitem isso e, se quiserem sei lá porque ter acesso a isso, que façam por merecer, que não estraguem a coisa toda, né? Você convida pra entrar na sua quem acha que a visita vai valer a pena, de alguma forma. E se, uma vez lá dentro, a visita começar a destruir tudo, então você a expulsa, não é?

- E sua intimidade é assim?

- É, é uma boa descrição.

- Você me parece frio.

- E você me parece permissivo demais, ou talvez desorganizado em seus princípios. Ou talvez você me pareça apenas decidido a me contrariar. No fundo você age como eu. Pode não pensar explicitamente como eu penso, mas aí é só falta de auto-conhecimento da sua parte, e não, em última instância, divergência entre a gente.

- Manipulação barata.

- Conversa dos diabos.

- Nem me diga.

- Sabe, mulheres, mulheres.... Eu as amo, sabia? Cada uma de um jeito, mas eu amo as mulheres.

- Como era mesmo a frase que você leu naquele livrinho lá?

- Que livrinho? Como você quer que eu responsa uma pergunta tão vaga?

- Aquele lá se como a gente se engana inconscientemente e tal, que falava sobre amar muito também, como era?

- Ah certo, lembrei. A frase era assim. Amar igualmente a todos equivale a não amar ninguém. Algo assim.

- Então. Sai por aí amando todas as mulheres, e agora fica nessas.

- Não é por aí. Há o detalhe. O igualmente. Eu não amo igualmente todas.

- Mas também não ama completamente nenhuma.

- Não misture as coisas, pelo amor de deus, não é disso que eu estava falando, quando digo sobre amar as mulheres... Sabe, as coisas precisam ficar mais quietinhas em seus próprios conceitos ao invés de sairem fugindo por aí pra outras discussões com funções deturpadas.

- Não fique bravo.

- Estou bravo, estou puto com tudo isso. Você fugindo dos contextos em que as coisas são compreensíveis. Pessoas se apaixonando por mim quando não deveriam, pessoas não se apaixonando por mim quando deveriam, meu gato besta querendo pular da janela enquanto eu escrevo...

- Então você ama alguém, não é?

- Amo, amo sim. Não, não sou correspondido. Não, não sou tão mal resolvido como parece. Eu deixaria essa moça desse último caso tomar o lugar dela, era só ela não ter tido tanta sede, não ter feito as coisas de um jeito que sufocou minha vida. Que me bagunçou, que me fez sair do meu próprio controle.

- Drummond tinha razão com o Quadrilha, né?

- Ô!

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Chrise

Ah que merda, que grande merda! Eu queria ficar sozinho? Eu queria ficar com ela? Eu não aceito a impaciência dela? Eu sou pouco decidido para lidar com minhas vontades e ...

... e três meses depois, não sei ainda como concluir este parágrafo. Merda.

(a bem da verdade... Onze anos se passaram e agora sei perfeitamente que não sabia de nada do que estava se passando)

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Independência

Ah, o prazer de mandar a outra pessoa ir à merda!

De pensar, sem o menor peso na consciência... Com um grande afluxo de prazer, na verdade: foda-se!

Estou mudando. Minha benevolência desmedida, minha condescendência irrestrita, sofrem um intenso processo de erosão ao atritarem com os erros do mundo. Longe de se danificarem, a mudança de forma que assim sofrem as tornam mais robustas. Minha benevolência está lá, porém agora protegida por pontas agudas contra quem quer que se aproxime de forma indevida.

Não suporto excessos de manhas. Quando é questão de meiguice, puro adicional no estilo, tudo bem. Fica até bonitinho, feminino. Mas mulheres idiotas que tentam forjar uma exagerada postura de vítima, ou aumentar por meio de manifestações toscas as falhas de julgamento de todo pequeno ciúme... que vão à merda. Não me torço por isso. Não tenho paciência pra isso.

Estive quinta passada um pouco mais ausente. Muito trabalho, depois trânsito porque o corredor de ônibus da Rebouças anda a 1,5 km/h em horários importantes, e porque eu estava à voltas com grandes inspirações em minhas leituras, coisas produtivas para o meu trabalho. Estava, contra todos os esforços em contrário a que esta cidade se presta, em meus momentos de alta produtividade intelectual.

Dia seguinte, lá vem a chata:

- Sumiu ontem, nem uma mensagenzinha... Tava com a outra, é?

- Tava... Ela é ciumenta tipo você, daí pega mal ficar mandando mensagens na frente dela.

Não desminto nenhuma suspeita imbecil. Confirmo todas. Que morram as pessoas desequilibradas vitimadas pelos assombros de seus próprios fantasmas mal cuidados.

E eu, do meu canto, com um inegável afluxo de prazer, fico pensando:

- Foda-se!

domingo, 5 de janeiro de 2020

Perigo

Eu quero me deixar apaixonar. Eu quero amar como se você fosse uma virgem de 12 anos e fossemos nós dois inteiros inocência e sonhos.

Sei que não é.

Sei que não vai ser.

E, ainda assim, quero me apaixonar.

E quero apaixonar você, seu coração, sua alma. Não para te perder pra sempre pra mim. Não para arrancar você de suas histórias e desandar sua vida. Mas para esgotar esse sentimento até o último sopro.

Intenso.

Sei que é perigoso.

Sei que ainda me machuco.

Não importa, não importa!

Eu te abraço, e é doce, é bom.

Eu te olho nos olhos.

Envolvente.

Quero mais, que mal há?

Que mal há em querer abraçar sua alma?

Que mal há em querer olhar seus sonhos?

Perdoe se estou errado, julgando mal... Mas creio que há tanta coisa em você que anda adormecida. Quero acordá-las, só isso. Acordá-las e deixá-las felizes e conviantes novamente. Depois que sigam, sorrindo, para onde quiserem.

E que não parem mais de sorrir.

(7/jul/2009 1:58)

sábado, 4 de janeiro de 2020

Mente desempregada

Não vou admitir por aí que estou sem trabalho. Vou aproveitar a crise e dizer que fui passado para uma posição inferior. Só se insistirem muito é que explico: nesta nova posição, não recebo. Mas, por outro lado, também não preciso fazer trabalho nenhum. Logo, é mais tranquila que a anterior...

Mas preciso de um emprego novo, ocupar minha mente. É estranho isso: ter a mente totalmente livre para fazer o que quiser significa ficar sem fazer nada. A vida tem dessas contradições curiosas, aos montes!

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Corifeu

De que tamanho são os medos? Com que força é preciso que as vilências quebrem nossas mentirosas coragens para se ponham, nus, todos os medos a mostra? Para alguns, é a arma na cabeça. Para outros é a simples notícia na tevê. Para outros é o assalto sorrateiro. De si mesmo. Ou do vizinho. Ou de alguém de quem se ouviu falar.

Para ela, bastaram três pirralhos de bicicleta. Disseram estar armados. E com que força ela constestaria tamanha afronta? Suas mãos cederam antes que seus medos se soubessem ali. Um reflexo mecânico. Como quando a gente acha no chão os chinelos, logo pela manhã, e logo depois nem se lembra bem como foi que acordou. Os músculos despertam antes da mente. As mãos entregaram a mochila e o celular antes que o pavor se permitisse existir. Mas ele se permitiu. E ela não andou mais por aquelas ruas. E se escondia atrás da porta trancada, no apartamento. E palpitava de suores quando passos soavam atrás dos seus em qualquer calçada que fosse.

Pobre menina. Assim tão jovem e foram lhe roubar a mochila, o celular e a vida.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Plágio

Um bom escritor possui não só seu próprio espírito mas também o espírito de seus amigos. Nietzsche que disse isso, quem pensou isso. Ou então algum amigo dele, vai saber!

Contrastes

O que faz de um livro um bom livro? Penso em qualidades objetivas, riqueza de vocabulário por exemplo. Não é um bom critério. Há tantos bons exemplos de livros ricos no vocabulário e pobres no poder de cativar, não é mesmo. Profundidade das idéias? Eloquência? O mesmo problema.

Um bom livro é... bem, um bom livro é um livro que não se consegue soltar. É isso. Sei que estou apenas mudando o problema de lugar, mas é por aí sim. Você larga o prato de comida do lado. Larga os cadernos da escola. Larga a coleira do cachorro e ele sai andando por ai. Larga a roupa suja acumulando. Mas não larga a leitura. Aquela leitura deliciosa. Às vezes, os contrastes: o assunto em si é repugnante, assustador, repulsivo. E não obstante a leitura é ótima, imperdível. Como Bill Buford em Entre os Vândalos (Among the Thugs). Excelente livro!

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Motivos

De que diabos adianta planejar o que escrever? Não, não adianta. E não é questão de disciplina, de cumprir a agenda. Planejo, enumero tópicos. Meus capítulos empoeirados de uma empreitada incerta. Meus ensaios sobre temas meritórios. Meus artigos arrebatadores sobre contendas emocionantes. E de repente nada, nada disso vem com mais força à ponta dos meus dedos agora do que esse próprio assombro sobre o mistério da motivação. A motivação instantânea contra essa das agendas. A agenda é uma espécie de espectro de nossa alma que foge do passado e vem nos perseguir no presente. E nós, humanos, sempre que atravessamos as barreiras do tempo, somos excessivamente cruéis. Quer seja com os outros ou para com nosso próprio eu. E fico aqui, rindo desse fato. Os e-mails por serem respondidos, assim, passam a aguardar mais um dia. Julgam que sou relapso. Que fujo. Mentira. Desapareço justamente por esse desespero de estar presente. Intenciono todos os dias por elaborar uma resposta memorável aos e-mails que esperam por resposta em minha caixinha virtual de mensagens. E isso nunca acontece. Até que virá o dia sem preocupações. Estarei pensando em outra coisa. E uma centelha, uma fagulhazinha miserável de inspiração, irá me atingir vinda sei lá eu de onde. E escreverei um e-mail gigante. Não são assim também as outras inspirações da vida?

A escrita é uma manifestação do espírito e é por isso que os destinos de nossa inspiração são assim tão indomáveis. Matamos esse nosso espírito ao tentar domá-lo, e sempre o fazemos em maior ou menor grau. Acontece que domar por um caminho é o mesmo que proibir veementemente todos os demais caminhos possíveis.

Não é assim também com o amor? Tentar domá-lo é altamente contraproducente. E a tentativa de fazer o amor andar por um caminho é o mesmo que impedí-lo de andar por todos os outros. O que pode fazer um enorme sentido lógico em determinadas circunstâncias. Mas quem garante que essa manobra ousada atenderá aos caóticos designios da inspiração amorosa?