sábado, 25 de novembro de 2017

Minha primeira demissão

No fundo no fundo, ainda que com aspirações exóticas e revolucionárias, sou um careta bem estático. Aqui estamos no terceiro milênio de um mundo fervendo a internet e à liquefação baumanniana da existência e eu consigo a proeza olímpica de me formar em uma boa universidade e permanecer cinco anos em uma mesma empresa cheia de velhos e que paga pouco. Sou uma espécie exótica em extinção. Mas minha proeza olímpica não alcançou proporções guinnescas porque recebi cartão vermelho: fui demitido. Em tempos de crise isso deveria me levar ao desespero total. Talvez até leve, já que do futuro ninguém sabe direito, mas confesso que até aqui a experiência está sendo bem interessante. Ser demitido, pra mim, foi assim:
Voltei a falar com outras pessoas da empresa. O pessoal do RH, do setor de benefícios. Gente simpática. No dia de fazer a tal da homologação, preenchimento chato de papéis na presença do pessoal do sindicato, pude conhecer muita gente interessante, velhos e jovens, dos mais diversos setores da empresa, que também estavam tomando um burocrático pé na bunda. Histórias das mais diversas. As realizações de uns, os sonhos de outros. Só gente dessas com quem dá prazer conversar por horas. Será que não demitem ninguém chato? Será por isso que tem tanta gente chata ainda empregada por aí? Fiquei, confesso, aliviado por ter sido demitido. Algo de legal deve existir em mim.

sexta-feira, 24 de novembro de 2017

Sem volta

Chegou a hora de voltar para casa. E eu sabia que a casa não estaria mais lá.
As paredes, eu encontraria.
O telhado, eu encontraria.
A calçada com seus conhecidos desníveis, eu encontraria.
A padaria estaria no mesmo lugar.
Mas não era mais minha casa.
Não era mais o lugar em que eu contaria os minutos para te ver.
Não era mais o lugar em que eu escreveria poemas para você.
Não era mais o lugar em que eu sonharia passeios com teus sorrisos.
Não era mais o lugar em que eu aprenderia músicas para seus ouvidos.
E pensei: por que voltar?
Por que voltar se a volta, por fim, é impossível?
Aprendo assim, a tropeços, que a vida não tem volta.
Hora de olhar para frente. Descobrir o que nasce dessa penumbra estranha.
Dessa espeça dor em que você me mergulhou.
Hora de aprender novos sonhos.
Hora de plantar novas dores.
Mais um passo. E outro. E outro.

quinta-feira, 23 de novembro de 2017

As últimas horas

Mais duas horas e já poderei acordar. Mas nem durmo direito, fico acordando o tempo todo. Escuto as pessoas no corredor. Às vezes conversam animadas. Às vezes empurram carrinhos barulhentos. Macas. Escuto pela janela o barulho de compressores de ar automaticamente ligando e desligando. Ligando e desligando. Numa metáfora mecânica horrível para as outras "máquinas" que estão no prédio. Humanos ligando e desligando. Ligando e desligando. Até não ligar mais. Não há cortina na janela. O vento às vezes entra e às vezes desiste. Uso como travesseiro minha jaqueta de andar na moto, toda contorcida sobre si mesma. Não tenho direito a uma cama. Só a este sofá reto e desconfortável. Meu tio acorda. A comadre já está cheia de urina. Ele mal consegue se mover. Olha para mim com vergonha de dizer que mal consegue se mover. Levo a comadre ao banheiro, jogo todo aquele xixi na privada, a limpo com um pouco de água corrente para evitar a formação de odor mais forte e levo de volta para ele. Volto a me deitar. Mais esta noite. Logo amanhece. Mais algumas horas. As últimas horas.

quarta-feira, 22 de novembro de 2017

Oceanos

”Não entendo as pessoas que vão todas como gado ver esses filmes da moda. Ou as músicas da moda. E nem sabem o que estão ouvindo. Escutam a ZAZ cantando a música que fala do SOS, a garrafa jogada ao mar, e pensam que é coisa dela. Não é. Os artistas dizem que é uma "homenagem". Só se for uma homenagem à incapacidade deles de criar coisas novas. Não sei o que acontece na nossa época. Temos recursos infinitos para a criatividade e uma criatividade infinitamente morta. Eu gosto dos cinemas pequenos. Dos filmes e músicas antigos. Aqui está, tome. Uma lista de cantores que gosto. Não conte a mais ninguém que eu te dei essa lista. Vão me matar. São, para os outros, um monte de coisas velhas e ultrapassadas. Para mim é o que ainda presta. Porque foi feito com coração livre em uma época em que a criatividade existia. De atual gosto só das músicas idiotas. As paródias, sátiras, bem estúpidas. São felizes e são livres também. Não acho que precisamos ser eruditos o tempo todo. Essa arrogância é estupidez. A vida precisa de alegria e a alegria, quando é um valor em si, não se importa de ser erudita ou boba. Que seja boba, então. Acordo cantando essas paródias imbecis. E sigo feliz olhando um mundo que se pretende sério e culto mas que não é mais livre. Não que todos devam pensar como eu. Mas seguem todos uma mesma maré. Somos correntezas diferentes. Mares diferentes.”

terça-feira, 21 de novembro de 2017

Fisiologia política

Vendo o que acontece em São Paulo só posso concluir uma coisa: empatia e ética são funções orgânicas que, nos políticos, dependem de água para funcionar direito.

segunda-feira, 20 de novembro de 2017

De saída

Olho o criado mudo ao lado da cama. Olho pela janela as árvores, a disposição das folhas. Sinto o cheiro que vem da cozinha. Último dia aqui. Me despeço da poeira do chão. Da torneira do banheiro. Me despeço da fechadura dos fundos. Mala nas mãos. Olho os céus. Olho o horizonte. Estou de partida. Sigo viagem. Olho as pessoas nas ruas. As crianças brincando ao redor das casas. Os cachorros tão mergulhados no presente quanto sou alheio a ele. Permaneço alheio. Estou em outro lugar. Estou em um futuro que nunca alcanço. E, não obstante, sigo viagem. Adeus.

domingo, 19 de novembro de 2017

Certeza inabalável

Jeferson é meu melhor amigo. E ele tem uma grande consideração por mim. Quando ele dizia aos amigos que sabia o endereço do bar e as pessoas duvidaram, inseguras, ele foi enfático:
-Aposto os rins do Adoniran que é lá mesmo, podem ir!

sábado, 18 de novembro de 2017

Notas de trabalho

Escrever sobre política, sobre experiências de vida, sobre o destino, sobre o tempo, sobre romances, sobre o amor, sobre ciência... Escrever e escrever mais. Escrever até acumular os textos, os conhecimentos, a minha experiência de vida. Escrever e escrever. E de nada valerão as letras ali jogadas, sem ninguém ler. E eis que alguém lê: obrigado.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Moto e medo

As palavras são até parecidas. A primeira e a última letra. Realidades próximas. Eu amaria andar de moto. Mas os motoristas não amam a vida: pouco amam a própria e nada amam a dos outros. Imagina que delícia, andar de moto à noite, na chuva. Tem tudo para ser uma experiência quase mística não fosse a enorme possibilidade de se tornar uma passagem só de ida ao misticismo definitivo. O mundo é cheio dessas coisas. Paixões encantadoras e perigosas. Acordos de paz impossíveis.

quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Óbito

De que importa se te presenteei meu tempo
Quem quer saber para onde foram minhas atenções
Se nem teus braços a querem
Vazio
Folha em branco
Recolho-me aos rascunhos errados que fiz de você
Abraço-os saudoso de quem sonhei
A dor do fim é a dor de uma morte
Morte de uma imaginação que se descobre falsa