terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Suzi

As leituras de livros profundos desperta em mim um sentimento de amplidão contrariado pelas limitações cúbicas deste quarto. Penso na barba mal feita do meu pai quando o vi. Penso no filósofo palestrante sugerindo que eu solte minha raiva dos meus velhos traumas. A atenção dos meus pais? Os namoros que deram errado? A cachorrinha que morreu? Suzi, pobre Suzi. Viveu tantos anos. Eu tinha esse sentimento profundo de amizade por ela. Dos membros da família era o que mais me compreendia. Eu jogado no chão da sala com um livro no colo e ela se aproximava. Apoiava a cabeça na minha perna e ali ficava. Com o tempo, comovido com tanta atenção, desatei a falar. Contava para a Suzi o que tinha acontecido comigo. Falava para ela do meu dia. Meus problemas na escola. Minhas dúvidas sobre o futuro. Os livros interessantes que eu havia lido. A Suzi ali, me olhando com um profundo desespero de quem gostaria muito de entender todas aquelas palavras. Nessa devota vontade de compreensão era como se, efetivamente, ela as entendesse.

A barba mal feita do meu pai. Por que pensei nisso? Medo, tenho medo de me tornar como ele. Esse abandono de si. Esse sentimento de que no fim das contas as coisas não se ajeitaram como deveriam. Eu tinha a Suzi para me ouvir. Quem meu pai tem? Fui socorrê-lo achando que estava tendo acessos suicidas e fiquei com raiva por julgá-lo um velho fracassado que havia desistido de tudo. Depois vi que não era nada disso e fiquei tomado de raiva por achá-lo um velho fresco que reclama demais quando está tudo bem na verdade. Eu vou socorrê-lo. Dirijo as centenas de quilômetros, à noite, sem saber se o encontrarei vivo ou desistido de si, só para dormir ao lado dele e dizer que vai ficar tudo bem. Quem vem aqui dormir do meu lado para me dizer que vai ficar tudo bem? Suzi, onde está a Suzi?

O mundo desistiu de me tranquilizar. Lia sobre a conquista espacial e as descobertas científicas, o controle do átomo, a manipulação do DNA, e achava que iria ficar tudo bem. Ainda que minha vida tivesse lá seus tropeços, no fundo no fundo ficaria tudo bem. Talvez não comigo mas ao menos com a humanidade como um todo. E assim qualquer excesso de dor que eu tivesse com relação à minha própria vida seria um egoísmo a ser vencido. Mas agora o Trump ganhou. O Brasil foi tomado por ladrões. A Síria foi devastada. Tudo bem que nunca paramos de destruir países e fabricar famintos e mortos de todas as idades. Mas quando perdem o pudor de fazer isso com uma nação que estava inteirinha então uma nova barreira foi rompida. Não são os mesmos mortos de sempre. E a comoção não atinge os níveis devidos.

A leitura de livros profundos me desconecta desse instante. Já foi uma desconexão boa. Sentir pertencer aos milênios. A uma espécie que evoluiu para criar a escrita, a poesia e dominar o aço e o elétron. Mas agora esses livros todos, e a internet, e tudo o mais, me mostra que estamos jogando tudo no lixo. É noite e temo pelo pior. Mas não sei para onde dirigir. Não sei a quem ajudar. Suzi, cadê você?

sábado, 17 de dezembro de 2016

José Alfredo

Nasceu em uma cidade de Goiás cujo nome não interessa a ninguém. De pequeno fez como o pai: carregou coisas. Coisas para dentro da Kombi, coisas para fora a Kombi. Achava a televisão uma coisa maravilhosa mas dormia rapidamente depois da janta. Exaustão. Mudou-se de cidade quando os negócios escassearam por ali. Já havia viajado com seu pai em mudanças para locais mais longe e sabia que existiam outras possibilidades. Aprendeu a sobrepor tijolos, cimentos, tijolos, cimentos. Emparedou a vida alheia tentando dar asas à sua. Casou-se com a bênção da igreja e a desconfiança de parentes que não achavam direito Deus autorizar essa mistura com as gentes pretas. Colocou os filhos na escola sob protestos dos mesmos. “A vovó falou que você ia trabalhar com o vovô… quero ir trabalhar com você, não quero ir à escola!”. Viu muitos amigos fraquejarem diante da vida. Bebidas. Crimes mais leves, mais pesados. Injustiças. Mas manteve seu rumo. Navegou pela vida em direção a tardes de cadeira de balanço e sopas de mandioquinha trazidas pelo filho. Aos fins de tarde costumava sentar-se à calçada para apreciar o por do sol e comentar com um ou outro que por ali passavam: “Ói lá Deus levando o Sol embora. Amanhã ele traz de novo. Eita serviço que não acaba nunca.”

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

E seu pai?

Meu pai andou carpindo uma horta lá... fez bolhas nas mãos mas sumiu algumas bolhas da alma.

Fofocas de WhatsApp

Um ator nu com sua esposa. Um aluno da escola passando por uma situação constrangedora por ter tido uma diarreia em momento altamente inconveniente. E, em instantes, essas coisas ganham o bairro. A cidade. O estado. O país. Outros lugares do mundo inclusive. O milagre da internet.
A tecnologia serve para potencializar o que é humano. E não somos criaturas compartimentadas. Em nossa alma o bem habita não apenas lado a lado com o mal. Estão misturados. São duas fragrâncias oriundas do mesmo líquido. Nossa inocência está misturada com nossa malícia. Nossa vontade de honrar misturada à nossa tentação de sacanear.
Graças à internet nossos lapsos explodem por toda parte em segundos. A humanidade que havia se tornado um gigante lar de anônimos voltou a ser o vilarejo das fofocas.

Era uma casa muito engraçada

- A casa ainda está alugada?
- Ainda.
- E por que? Você está indo lá?
- Não... O plano deu errado.
- Que pena. Achei que você estivesse mais lá do que aqui.
- Não. Banquei o aluguel de uma casa vazia. Fico pensando no que isso pode significar.
- Significa que está jogando dinheiro fora.
- Não só isso. Mas tenho pago por espaços vazios. Preciso começar a valorizar os espaços cheios.

Funcionou

Pelo visto a questão com o OLW, Open Live Writer, é que de tempos em tempos é necessário deletar a conta e criá-la de novo, ao menos no caso dos serviços do blogger, para que os servidores do Google liberem uma nova senha de acesso. Afinal eu não tenho mais que digitar minha própria senha no cadastro do blog. O OLW acessa os servidores do google e solicita um acesso. Bom… exceso de tecnicidades à parte, fico contente que tenha funcionado.

domingo, 7 de agosto de 2016

Milton Cruz, O Homem de Lata

MiltonCriuz

Esta tarde fui à Avenida Paulista encontrar alguns amigos. Aos domingos, esta importante avenida se transforma no palco de diversas bandas e é também local de trabalho para diversos vendedores. Dentre eles, Milton Cruz. Eu não pude resistir e parei para ver sua réplica do 14-bis - o avião com que Alberto Santos Dumont voou em Paris em 1906. Cruz estava sorridente e cheio de piadinhas. "Custa R$50 com o tanque vazio. Com tanque cheio aí já é R$80!"

Ele constrói modelos de carros e motocicletas também. "Se não encontrar aqui, traga uma foto que eu posso construir o modelo pra você. Ele me contou algumas piadas também. "O japonês quando chegou no Brasil viu uma fila, e perguntou o que era... Falaram que era fila para Catarata. Daí o japonês falou 'eita, num pego fila não! Vô catá lata na rua mesmo". A piada, observo com sinceridade, não era nem de longe tão boa quanto a gargalhada que vinha logo em seguida, cheia de vida e simpatia.

Todos os modelos são construídos com latas de óleo que iriam parar no lixo.

Algumas pessoas o questionam... "Por que você não faz carros modernos?" E ele responde: "Porque os modernos a gente vê na rua! Acho mais produtivo eu trazer um pouco do passado de volta à vida, não acha?"

TratorMiltonCruz

FordMiltonCruz

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Professor gente boa

Aprendizado é um processo individual. O professor não ensina. É o aluno quem aprende. Cabe ao professor, tão somente, lançar o desafio. Provocar. Oferecer as armas para esse combate íntimo e secreto que cada estudante trava - ou não - consigo mesmo. E entendendo assim o processo de ensino fica clara a tragédia que é quando um professor resolver ser "gente boa". O papel de um professor é ser odiado. Não por ser filho da puta e tratar mal os alunos. O professor deve ser odiado principalmente quando tem carisma porque vai usar esse carisma de modo traiçoeiro. Caso não se esqueça de sua missão de professor vai, invariavelmente, empurrar os alunos para fora de suas zonas de conforto mental. Agora, o que eles farão uma vez tendo cruzado a linha, aí já é problema deles.

Feridas

Andava sem mancar. Mas doía a cada passo. Fingia estar tudo bem. Até o dia em que deu um puta grito. Mandou o mundo à merda. E andou torto, tosco, feio, estranho. Mas adaptou seus movimentos até que a dor amenizasse. Até que a dor passasse.

Vivia sem gritar. Sem xingar. Sem olhar feio. Fingia estar tudo bem. Até o dia em que chorou e gritou e disse o quanto sofria. Mandou o mundo à merda. E foi tachado de revoltado, de estranho, de exagerado. Mas adaptou seus sentimentos até que a dor amenizasse. Até que a dor passasse.

quarta-feira, 20 de julho de 2016

Medo do chefe

Eu cresci em um universo cheio de intersecção de importâncias. Lá no clube, nos churrascos de fim de tarde aos sábados, os presidentes de grandes empresas dividiam o balcão e os pedaços de picanha com os faxineiros e o pessoal de "serviços gerais" lá da marina. Quando criança eu passava as férias de meio do ano no interior de São Paulo. Até chegarmos ao sítio do meu pai passávamos, de carro, por inúmeros desconhecidos ao longo do caminho. Independentemente de quem fosse, se gente andando a pé ou de carro, cumprimentávamos. Um aceno com a mão. Com a cabeça. Por isso tudo é que eu acho muito estranho esse medo que as pessoas da cidade têm dos chefes. O chefe visita pouco o local de trabalho e conversa pouco com as pessoas. Porque tem sempre assuntos para resolver. Está sempre com diversas preocupações. Mas, eu juro, por trás desse véu de mistério e suspense é só um ser humano como qualquer outro.

Turning points

E então ele foi para a entrevista. Não sabia se era apenas uma distração para aquele dia cheio de monotonias ou se seria o início de uma nova vida cheia de novos tons.

terça-feira, 19 de julho de 2016

O espanhol

Aprendi a fazer estes artesanatos desde sempre, sei lá. Sou ariano. Tenho que me mexer. Tenho que fazer alguma coisa. E cresci num lugar que não era como aqui, não. O inverno era frio. Seis meses em casa! E aí, o que fazia? Era montar brinquedinhos com arame, pedaços de madeira, lixa uma coisa aqui, corta lá... Um carrinho, um boneco, várias coisas. E eu sempre fui assim meio hippie. Meu negócio é andar por aí.

Já tem muitos anos que vim para o Brasil. Já foi melhor. As pessoas já compraram mais dessas coisas. Artesanatos. Enfeites. Hoje só querem saber de aplicativos no celular.

Uma vez sofri um acidente de moto. Olha só, aqui na minha cabeça. Eu estava voltando para casa no meio da madrugada. Uma Harley Davidson. E eu ia chutando mesmo, rasgando. Queria curtir, sabe? A cidade à noite, tudo livre. Mas tinha um bêbado vindo. Cruzou meu caminho. Ele quem furou o vermelho. Mas e daí? Bateu... Voei. Saí voando no ar, quiquei no chão. Bati com a cabeça numa guia. Voei para a vidraça de uma loja de carros. Quebrei a vidraça. Quebrei ainda o pára-brisas de um carro. Me acharam lá dentro do carro. Eu não lembro de nada disso, é claro. Mas foi o que me contaram.

Estava tão destruído que acharam que não tinha mais jeito. Mas estavam me mantendo vivo porque aí o convênio paga, o seguro dá aquela ajuda. Coisa de médico. Só que eu acabei acordando. Cinco dias de coma. Daí abri os olhos e foi um deus nos acuda. Lembro de estar na maca, tentando entender o que acontecia, e aí os médicos se assustaram. Foi aí que começaram a cuidar de mim pra valer. Foram meses esperando os ossos se juntarem de novo. Perna esticada. Pinos. Gesso. Tudo o que você pode imaginar. Depois andei mais seis meses de moto pra ter certeza que tinha superado os medos. E aí nunca mais subi em nenhuma.

E vivo assim. Já vivi em vários países da Europa. Mas lá não tá muito boa a coisa também. Aqui no Brasil é bom. Muito bom. Gosto do clima. Gosto das pessoas. Mas o país tá uma merda. Ninguém quer saber de nada, sabe? O povo... é incrível. Por muito menos, anos atrás, estaria todo mundo na rua. Estaria todo mundo na rua de verdade. Não como foi nos últimos anos. Sai um dia na rua, e aí chega. Aí é hora de assistir tudo na TV de novo. Não entendo. Temos muita comunicação hoje. Mas pouca gente quer se informar de verdade. Ou então vai ver que bati com a cabeça forte demais. Por isso não entendo nada.

Inteligente, competente e arrogante

Eu a conheci anos atrás. Na faculdade. Ela logo se destacou e foi fazer um curso interno de especialização. Coisa de gente que vai para  NASA. Que aparece em noticiários com grandes descobertas. Tempos depois a encontrei onde menos esperava. Na marina. Estava, como eu, andando de barco. Tirou a carteira de Arrais. Fiquei contente. Mas, tempos depois, em um almoço com outras pessoas das águas, fiquei surpreso ao ouvir o que falavam dela.
-O que? Aquela menina? Deus me livre, ninguém mais quer saber dela não. Super arrogante. Tudo o que você pode imaginar ela sabia mais que os outros. Todo mundo em volta dela estava sempre errado. Nariz empinado demais!
Sua nova carreira, nem preciso dizer, naufragou.

segunda-feira, 18 de julho de 2016

Diálogo comigo mesmo

-Por que você resolveu conversar consigo mesmo?
-Porque estava longe. Porque vejo que estou aceitando ficar longe de mim. Todos estão.
-Mas essa distância, na verdade, tem um quê de saudável!
-Saudável? Está maluco?
-Não é maluquice não. Lembra-se de quando seu professor de sociologia, já há catorze anos, disse que quando os indivíduos olhavam realmente par dentro deles tudo o que encontravam era um vazio?
-Ele estava se referindo à nossa necessidade de conexão com os outros e não literalmente à ideia de que ninguém tem nada dentro de si. Um diálogo comigo mesmo ainda pode ser rico desde que eu não me isole, efetivamente, do resto do mundo. Não é esse o objetivo. É mais o de explorar coerentemente os muitos "eus" que habitam em mim.
-Há uma certa arrogância nessa sua ideia.
-Nessa nossa ideia, você quis dizer.
-Minha não. Se você tem muitos eus assuma-os por completo. Não fique se reduzindo a um só novamente toda vez que isso lhe for vantajoso. Seja coerente. E tenha mais coragem.

Vida nômade

"If you could live a nomadic life, would you? Where would you go? How would you decide? What would life be like without a 'home base'"?

Nossos enviados especiais colheram respostas de diversas pessoas e selecionaram as principais. Aqui estão elas:

Pessoa 1: Não tenho condições de pensar nisso. Não hoje. Quer dizer... talvez já tenha sido um sonho em algum momento, aquela coisa de adolescente. Mas hoje eu tenho família. Meu trabalho é aqui. Essa coisa de pegar a grana e sair vivendo de vento por aí, curtindo a vida e deixando as responsabilidades depois.... Só se eu ganhasse na loteria. De qualquer modo, eu gostaria de conhecer as principais cidades do mundo. Mas já me contento em ir como turista.

Pessoa 2: Acredito que este seja o único jeito de viajar. Não acredito na praticidade enlatada do turismo. Viajar significa se entrelaçar aos diferentes lugares. Como fazer isso sem viver alguns meses em uma certa região? Eu gostaria de ir para diversas cidades do mundo. Mas nada de clichês. Quero conhecer cidades pequenas que estão fora do circuito turístico. Cidade turística, afinal, serve só pra isso: turismo.

Pessoa 3: Já vivemos todos uma vida nômade. Não é isso o que significa dizer que estamos aqui de passagem? Por isso, não tenho um apego forte ao local em que estou. O chão em que piso é minha casa. Onde eu puder carregar um livro e qualquer coisa para fazer barulho... um tambor ou uma flauta... então haverá teatro, haverá alegria. Encontrarei alguns amigos para dançar. Por que não? As pessoas se prendem a uma casa. Se prendem às contas do mês. E depois ficam usando o pouco tempo livre que sobra para falar mal dessas coisas todas.

A vizinha gritando com os filhos

Acho que já escrevi sobre isso. Posso estar repetindo o tema mas o incômodo é genuinamente novo. Porque, mais um dia, lá está ela, a vizinha, professora, adulta, gritando com os filhos. Gritos e gritos e mais gritos. Berros de trincar a jugular. Infâncias destroçadas. Triste. Fico profundamente triste.

Os livros do fim do mundo

Eu estava em um aeroporto nas imediações de Paris naquela época dos atentados. Tentei não ficar neurótico com a onda de preocupação que se seguiu. Não queria assistir os noticiários, ouvir o rádio ou mexer nos aplicativos de notícia do meu celular. Não queria nem mesmo ver as manchetes dos jornais na livraria. Fui para a seção de ficção descansar minha mente com a abstração de realidades imaginárias.
Um título então me saltou aos olhos. "A Sombra do Juízo Final" Como já acontecera com inúmeros outros livros, adiantei-me a amaldiçoá-lo mentalmente pensando tratar-se de um besteirol religioso qualquer. Lá fui eu dialogando comigo mesmo. "Afe, que jeito de ganhar dinheiro. Alimentando a ignorância alheia. Eu deveria deixar de lado meus princípios de honestidade e partir em busca desses níqueis também." Mas ao tomar o livro em mãos para um exame mais detalhado fui surpreendido pelo seu conteúdo. Não se tratava de uma obra religiosa. Tratava-se de um trabalho de ficção. A história se passava em um futuro não muito distante. Dois grandes vulcões da Terra haviam entrado em erupção lançando milhões de toneladas de detritos na atmosfera e diminuindo a entrada de luz do Sol em todo o globo.
Efeitos climáticos se seguiram. Com um inicial resfriamento em algumas regiões seguido de um acúmulo generalizado de calor devido a um efeito estufa. Mas o efeito mais importante foi a deterioração de produtividade nas grandes plantações da Terra, prejudicando o suprimento de alimentos. Guerras de todas as espécies começaram a irromper. Êxodos urbanos inimagináveis se seguiram. O livro retrata não o fim absoluto da humanidade mas, ao menos, a completa destruição da civilização moderna. Me chamou a atenção esse final e confesso que, ali mesmo, de pé na livraria, adiantei-me às páginas finais em busca de um final feliz. Não o encontrei. Não se tratava de um trabalho aos moldes de filmes de Hollywood. Achei isso positivo.
Já no avião, seguindo meu roteiro para a Estônia, qual não foi minha surpresa ao encontrar uma entrevista do autor na revista de bordo? Fiquei feliz ao ver que algum trabalho literário diferenciado tem chamado a atenção da mídia de alguma maneira. E creio que o autor teve uma certa sorte. Agora, depois dos atentados, certamente uma matéria assim não teria lugar. Afinal os editores se preocupam em alimentar um pouco de otimismo também. Deixo aqui um trecho da entrevista:
- Alguns críticos dizem que o seu texto é apenas uma descrição cataclísmica, desprovida de moral maior, e portanto seria uma literatura de menor valor. O que você tem a dizer a eles?
- Em primeiro lugar não cabe a mim julgar o peso de minha literatura. Uma vez pronto, acredito, o texto não é mais meu. Deve ser julgado pelo que ali está escrito e não pelo que eu possa ter a acrescentar. Mas este julgamento refletirá, invariavelmente, algo de quem está a julgar. O que posso dizer então, para não parecer que me esquivei da pergunta, entra aqui como uma opinião de leitor. Ou como a opinião de um idealizador do trabalho. O livro descreve uma verdadeira calamidade planetária, mas o foco é a reação da humanidade perante esta calamidade. Quem quer que tenha deixado de perceber isso, ao meu ver, fez um julgamento precipitado do texto. Porque isso está bastante explícito e enfatizado. Ou talvez simplesmente não leram o livro inteiro. Em termos de moral, de lição do texto, faço ressalva similar. Enxergar uma moral ou não em uma história reflete o grau de alerta do leitor e quanto a isso não posso esperar muito de boa parte dos críticos. Lembre-se que o grande cataclisma da história é a explosão de dois super-vulcões. Mas nenhum deles, de fato, causa diretamente um grande dano à humanidade. Dali em diante o suprimento de alimentos começa a entrar em declínio devido à diminuição da luz solar. E dali em diante é a humanidade que começa a se destruir a si própria. Para alguns essa pode ser uma descrição fantástica de um futuro improvável ou impossível. Para outros pode soar como um alerta quanto ao limites do comportamento humano. Ao segundo grupo posso fornecer material de discussão. Ao primeiro, enquanto escritor, não tenho nada para dizer.
- Minha próxima pergunta diz respeito a outro consenso entre muitos críticos, de que sua visão da humanidade é excessivamente ou particularmente pessimista. Pelo que você diz quanto aos próprios críticos e leitores insensíveis, posso assumir que esse pessimismo existe?
- Não me sinto um pessimista. Mas tenho profunda preocupação em ser o mais realista possível. Se eu achasse que o livro não conseguiria dialogar com ninguém eu simplesmente não o escreveria. Ou não me preocupararia em dar entrevistas agora. Deixaria o livro publicado na esperança de que a posteridade soubesse aproveitá-lo mas não me incomodaria em dialogar com o mundo agora. Há pessoas com uma profunda percepção e sensibilidade para questões importantes. Pessoas que vão muitíssimo além de mim nesses quesitos e com quem tenho muito a aprender. Mas a ignorância e a indiferença são também realidades fortes dentre os humanos. Não posso fingir que esses traços não existem. São tristes aspectos encontrados em qualquer grupo de seres humanos. Dentre pobres. Dentre militares. Dentre críticos literários. Dentre escritores. Dentre políticos. Dentre bilionários. Dentre médicos. Dentre padres. Todos os grupos possuem, em maior ou menor grau, sua parcela de seres humanos empáticos e aquela contrapartida de indiferentes insensíveis. Não acho que isso seja pessismo.
- Mas estritamente quanto ao rumo da história em seu livro pode-se dizer que você foi pessimista, não é?
- A história, em si, pode ser dita pessimista. A civilização empreende sua própria destruição em um caos sem fim devido à situação extrema a que foi exposta. Espero que os leitores entendam que não estou aqui "entregando o ouro" da leitura porque este nem é o ponto principal do livro. Tenho outros trabalhos rumo à publicação em breve e este é um traço comum a todas as histórias. Mas meu ato de publicar o livro e a minha postura enquanto escritor, enquanto ser humano, não é pessimista.
- Como assim? Poderia explicar melhor? E poderia também falar mais sobre o projeto de livros futuros?
- Claro. Primeiramente quanto à questão do pessimismo. Meu ato de escrever é um alerta. Estou apontando o problema da coordenação da sociedade como um todo diante de sérias questões. Não é um ato pessimista apontar um problema embora as pessoas rasas façam esta confusão com frequencia. Se estou pilotando um avião e o motor pifa de uma vez eu não sou um pessimista por dizer "o motor parou" ou mesmo "vamos cair". Pessimismo e otimismo decorrem do que faço diante dessas informações. Posso tomar medidas para procurar um bom local para pouso de emergência. Tentar prosseguir para outra pista ou mesmo retornar ao aeroporto de onde sair, ou ainda preparar os passageiros para um pouso forçado em condições difíceis. Ou mesmo voar o avião com um motor só se isso for possível, sei lá. Então aquela declaração inicial de que as coisas não iam bem foi tão somente uma constatação realista e, se dali em diante todas as minhas atitudes mostraram uma crença embutida de que no fundo tudo iria acabar bem, não faz sentido dizer que fui pessimista. Pessimista seria dizer "o motor parou" e então cruzar os braços e deixar o avião cair onde quer que fosse. Pessimismo envolve desistência. Pessimismo é uma atitude de indiferença. É neste sentido que não me considero pessimista enqanto autor mesmo que não esteja preocupado em defender que minhas histórias não são pessimistas. Elas são. Eu sou como o piloto que diz "estamos caindo". Se bem que não sou piloto. Sou um dos passageiros. Ou talvez esse seja outro erro... Na sociedade somos todos passageiros mas também com responsabilidades de piloto, mesmo quando não somos presidentes ou empresários ou generais, enfim...
- E quanto aos projetos futuros?
- São outras ideias na mesma linha. Este livro já traz em algum lugar da capa a menção à "série apocalipse". Há outros livros a caminho. Outras desgraças que colocam a civilização em risco. Um grande meteoro. Uma guerra nuclear. Uma invasão alienígena. Uma tempestade solar sem precedentes. Uma grande epidemia. São temas que aparecem em outras histórias. Em filmes e livros. Mas em todos os meus livros, de um jeito ou de outro, a civilização chega ao fim. Esta é a diferença. Os heróis não são suficientes. Mas, é preciso deixar claro, até para evitar a gafe dos críticos mais preguiçosos, que em nenhum desses livros o fim da civilização se dará pela calamidade inicial em si. Em A Sombra do Juízo Final não são os vulcões que fazem a humanidade acabar. E não é a falta de alimentos, no final, a principal causa de mortalidade. Há uma ferrenha guerra por comida e os poderosos tomam a iniciativa de matar aqueles que querem se apoderar de suas reservas de alimentos. A civilização provê, no fim, o próprio caos que a engolirá.
- Este é seu alerta de emergência, no fim das contas? Crê que nossa civilização caminha para isso?
- Sim, apenas não estou decidido quanto à palavra "caminha". Temos em nossa estrutura cultural a latência da auto-destruição. Porque não tratamos a questão de frente. Estamos preocupados com o dia de hoje. Com a produção industrial. Com os impostos. Com as próximas chuvas e com algum escândalo político. No caminhar do dia-a-dia vamos cultivando posturas políticas, ou favorecendo certas ignorãncias, que podem se condensar em algo mais intenso quando sob circunstâncias extremas. É parte da visão que tenho da nossa sociedade. Nossa cultura atual não diz respeito apenas ao que estamos vivendo agora. Ela carrega uma espécie de latência quanto ao comportamento que teríamos em situações diferentes. Um exemplo leve disso é o que vemos em países que guinam rapidamente da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita. Observamos, subitamente, emergir julgamentos políticos que pensavamos estar abandonados ou esquecidos. E eles surgem com intensidade. Vozes que estavam adormecidas. Ideias latentes que de repente irrompem. Então este é meu grito de emergência. A metáfora do avião não é uma escolha aleatória. Estamos, literalmente, em uma grande nava espacial. Um rochedo esférico flutuando pelo espaço. Mas aqui não há aeromoça. Não há um speech inicial de segurança. Então o que faremos no caso de uma emergência não está combinado. Será um cada um por si baseado em iniciativas próprias oriundas de posturas intelectuais, ideológicas e mesmo espirituais que já estão aí, apenas expostas a um contexto diferente. Dito de um outro modo... estamos tão preocupados com alguns aspectos imediatos da nossa sociedade, que também não estão resolvidos, que não atentamos para o potencial adormecido de nossa sociedade. O Holocausto já estava presente na sociedade alemã, como um potencial, antes de a Segunda Guerra eclodir.

Saudades de Aberdeen

Lembrei da cidade por acaso. Fui tomar café lá na escola e falei com o professor de inglês. Eu achava que ele era brasileiro. E que essa coisa de falar inglês com os alunos fosse um mero exagero de professor dedicado. "Só falamos em inglês e pronto!". Mas não. Ele é um gringo original. E me contou coisas da Escócia. E me lembrei daqueles poucos dias há cerca de quatro anos. O passeio nas ruas noturnas. As paisagens frias. A antiga igreja medieval, de estilo gótico, transformada em um bar-balada. De sua porta ampla de madeira saiam luzes coloridas. Jovens bebiam e conversavam. Conversas amistosas. E o sotaque. Adoro aquele sotaque. E a ajuda na noite fria. E o bar de videokê. Em que cantei com desconhecidos. Beatles! Quem diria, eu cantando Beatles em um barzinho de quinta categoria rodeado por escoceses felizes. Saudades de Aberdeen.

Raiva

Não pai, eu não quero saber dos seus problemas. Não quero saber se o leite vai ferver, se a lâmpada queimou, se vai perder a casa e se as contas estão vencidas. Você por vinte anos não ouviu os meus problemas. E agora estou aqui, cheio deles de novo, e você não vai ouvir. De novo. Foda-se. Vamos falar qualquer inutilidade. Pra constar que conversamos. Falar do vento. Do gato que engordou. Falar de quantos litros por quilômetros o carro está fazendo. Assuntos de hoje. Assuntos isentos. Assuntos que não interessam a nada. Porque dos seus problemas eu não quero saber. Porque esse tempo todo que eu quis saber deles, de nada adiantou.

sexta-feira, 15 de julho de 2016

O mentiroso

A babá soube que o menino havia mentido. Foi interrogá-lo diretamente.
- Você mentiu?
Fez que não, decidido. Apenas cinco anos e já mostrava uma determinação sólida em suas trapaças.
- Olha, eu vou perguntar de novo, e se você mentiu é melhor me contar! Porque mais cedo ou mais tarde eu vou ficar sabendo mesmo.
- E como você vai ficar sabendo? - perguntou o menino, tomado de curiosidade.
A babá explicou.
- Sabe aquela escadaria na entrada do colégio? Ela detecta mentirosos. Se você estiver mentindo, o terceiro degrau vai se quebrar e você vai despencar em um abismo!
O menino ficou pálido, completamente quieto e compenetrado. Até que chegaram em frente à escola. A babá, agora em tom grave, se dirigiu a ele.
- Vou perguntar mais uma vez... Você mentiu?
Engoliu em seco, olhou nos olhos dela e não chegou a emitir um único som. Apenas balançou a cabeça. Em negativa.
Posicionou-se diante da escadaria de madeira e parou por um momento. Olhou para a babá. Movimentou o primeiro pé e começou a subir. Primeiro degrau. Segundo degrau. Hesitou. Terceiro degrau. Prosseguiu. Nada aconteceu. Quarto degrau. Terminou de subir até o topo e então, exultante, voltou-se para a babá:
- Acho que tá quebrada!

História adaptada das "Piccole storie senza morale"

Famoso pra cachorro

Brugues é uma cidade super charmosa da Bélgica. Uma Veneza de água doce. Uma cidade medieval e moderna ao mesmo tempo, repleta de turistas e com as melhores batatas fritas do mundo. Passear por seus canais é dar um banho de descanso ao espírito. Nesse pequeno paraíso há um morador especial. Um cachorro que mora em uma das casas com vista para o canal. Na janela da casa há uma almofada para ele apoiar as patas. Ele fica lá, patas apoiadas, observando o movimento dos barquinhos cheios de turistas. E enquanto ele está absorto na tarefa de observar torna-se ele próprio a atração turística mais observada desse doce passeio.

Lição do dia

https://youtu.be/rr4tX-hfs7c

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Leitores

O que você está lendo? O que tem na página 47? Lê pra mim? Gosto de saber o que você está lendo. É ao mesmo tempo um pouco do que está entrando na sua mente e do que está saindo da sua curiosidade. Porque as almas são assim como o Sol que não pode ser olhado direto. É só nas sombras, em um eclipse, que o observamos em seus contornos. E a leitura habita nos contornos da alma.

Tarja preta

É comum dizer que o poder corrompe. Só não dizem, explicitamente, o que é que ele corrompe. Porque varia. Por vezes corrompe a integridade da pessoa. É este o sentido mais comum do ditado popular. Mas, noutras ocasiões, corrompe a própria sanidade. O esforço mental feito para apagar da consciência as lembranças de cada injustiça cometida terminarão por corroer também tudo o mais que deveria ser lembrado e a imagem do mundo se tornará uma confusa mistura de imaginações e memórias e delírios. O poder corrompe. Corrompe e corrói.

quarta-feira, 13 de julho de 2016

Medo das fotos

Medo. Era o lançamento de um livro. Eu tinha que ir. Minha amiga estava lá. Mas tantas máquinas, tantas! E eu não podia mandar aqueles fotógrafos todos pararem. Tem que avisar. Primeiro uma foto. Depois a outra. E se eu sair gorda? E se eu parecer velha? E se minha cara aparecer torta? O que vão falar?
Não consigo me livrar deste medo. Não consigo deixar de me assustar com isso. Fazer uma cara feia em um certo momento não é problema. Porque nossas caras aparecem e somem. Mas as fotos ficam aí para sempre denunciando aquele momento terrível para a eternidade.
Quero perder este medo. Sair nas fotos mostrando a língua. Fazendo careta. Sair nas fotos livre como minha alma se sente. Livre como gosto de ser quando ninguém está olhando.

Sem presentes. Sem parabéns

Eu queria comprar um presente de dia dos pais pra ele. Fiquei pensando um dia. Dois. Fui a uma loja. Fui a outra. Aí estava no carro, pensando em ideias alternativas, e lembrei que ele não é meu pai. E lembrei que meu pai está em outra cidade. E lembrei que meu pai não consegue evitar ficar enciumado e triste de ver como eu gosto dessa outra família que me acolheu. Neste dia dos pais, ficaram ambos sem presentes.

terça-feira, 12 de julho de 2016

Da nudez

Para se banhar o corpo é imprescindível que, primeiro, livre-se das vestimentas.
O mesmo ocorre com a alma.
Apenas sem nossas proteções é possível acessar a sujeira do dia-a-dia e remove-la.
Apenas sem nossas falsas aparências, adereços estéticos, é possível banhar a matéria da nossa existência. E também o núcleo de nossa essência.
Para que os corpos se misturem é imprescindível que, primeiro, se façam nus.
O mesmo ocorre com as almas.
Quais roupas há por cima de sua alma?
Como é, desnuda, vulnerável, sua alma?
Revele-se. Para si. Para o outro.
Livre-se do pudor dessas vestes.

Odeio meu trabalho mas ele paga minhas contas

Não gosto de ter que acordar cedo todos os dias.
Sem vontade.
Com sensação de querer ficar na cama.
Sair é ruim.
Ver aquelas pessoas.
Não gosto delas.
Irresponsáveis.
Falsas.
É um ambiente ruim.
Elas não entendem das músicas que eu entendo.
Elas não gostam de cachorro. Eu amo.
E elas não fazem o que deveriam. As planilhas. As ligações. Tudo fica para depois. Tudo é transferido para o outro. Tudo é tratado com desdém. Um lugar onde ninguém está a fim de nada. Um lugar onde eu não estou a fim de nada.
Mas como vou sair deste lugar?
Tenho minhas contas para pagar. Se eu sair, e meu carro novo? Troquei de carro agora.
E a casa? Estou pagando as prestações ainda. E eu moro com meu irmão. E ele está desempregado. Não dá para ter esse luxo de sair do emprego.
Preciso manter minha vida.
Preciso continuar abrindo mão da vida para manter minha vida.

segunda-feira, 11 de julho de 2016

Perguntas

Eu me divorciei quando minha mulher ainda estava grávida. Brigamos. Eu não conseguia conviver com o ciúme doentio dela. Ela não conseguia conversar comigo. Não queria saber de procurar ajuda. Acabamos nos separando. Mas ela já estava grávida. E nasceu o Ênio. Eu amo o Ênio. Minha família ama o Ênio. Minhas filhas. Meu filho. Até minha primeira ex-mulher o ama. Quem não ama um bebê lindo e sorridente?

A Rita vive em outra cidade. Rio Claro. Vou para lá aos finais de semana buscá-lo. Brinco com ele. Depois o levo de volta. Às vezes ele chora. Parte meu coração. E sinto que dói para a Rita também. Ciúmes é uma coisa difícil de controlar. Ver o filhinho chorando porque quer ficar com o pai, deve ser difícil pra ela.

E no meio dessa confusão toda eu me entendi com ela. Convivemos suficientemente bem. Às vezes, em feriados prolongados, eu trago a Rita pra casa também. Assim podemos ficar todos juntos com o Ênio. Minha família, claro, não concorda. Ela aprontou outras coisas depois do divórcio. Tentou arrancar mais e mais dinheiro de mim e mentiu algumas vezes pro juiz. Tentou impedir que eu visse o Ênio. Mas eu me entendi com ela. Sinto sim uma raiva interior, até um desprezo, mas de que adiantaria brigar e brigar e brigar sem parar? Não é exatamente um perdão. É pelo Ênio. Porque hoje temos um convívio pacífico. Já tem um bom tempo que não discuto com a Rita. Não falo mal dela. Sei que isso diminui também os episódios em que ela vá falar mal de mim para o Ênio.

E ainda assim, no meio de tudo isso, outro dia o Ênio, agora com pouco mais de quatro anos, veio até mim e perguntou, visivelmente curioso:

- Papai, a gente também é uma família?

Aforismo 77

Uma crença em algo que está correto é um conhecimento. Uma crença em algo que está errado é um engano. Não há meio termo.

quarta-feira, 8 de junho de 2016

O Fera

Eu era um estranho chegando ali. Mas o Fera, a quem eu nem havia sido apresentado ainda, pulava alegre como se chegasse um velho amigo. Um cobertor e duas blusas. É o que eu tinha. Falei do frio. Entreguei o cobertor e as blusas ao Rafael. E o Fera pulava e pulava, feliz.

Tinham um canto na calçada. Não os expulsavam dali porque estavam em frente a um estabelecimento abandonado. Tempos de crise. E, naquele canto escuro, não eram uma presença marcante o suficiente para espantar a clientela da farmácia ao lado.

Mas o Fera não sabia de nada disso. Seus pulsos, giros, rabo abanando, eram indistinguíveis de qualquer outra realidade mais afortunada.

- Esse aqui é o Fera… Fica junto comigo até nessa friaca doida!

Rafael dobrou as blusas com o esmero de um alfaiate de alta costura. Mais uma vez, agradeceu. E ficaram ali, ele e o Fera. Sorrindo e brincando um com o outro.

Despedi-me e fui embora, aquecido.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

Repente

Me disseram que repente
    Não pode ser só leitura
Tem que ter de fundo um ritmo
    E tem que ter candura
E no final de cada frase
    Não basta acertar a crase
É preciso encher de rima
    De baixo até em cima
......
E me disseram que o assunto
    Tem que ser coisa bonita
Não vale falar de boi
    E nem da vida da cabrita
Mas se tu falar de avião
    Desde que o vôo seja bão
Diga lá o que quisé,
Voá é mió que se ir a pé!

Os idiotas

É preciso admitir novamente: existem os idiotas!
Muitos avanços foram feitos nessa era de respeito político. Mas há exageros. As pessoas hesitam em apontar ao interlocutor e dizer diretamente: "Idiota!".
Claro que não deve ser um ataque gratuito e vazio. Mas, desde que se justifique o porque da idiotice, reconheçamos, oferece-se ao idiota a chance de entender a origem de sua condição e, assim, sair dela.
Claro que estou puto. Chamei um idiota de tal e fui veementemente repreendido.
Mas o que eu mais quero desse mundo é que, quando achem que estou eu mesmo cometendo uma idiotice, que me chamem logo de idiota e se expliquem!

Uma das maiores idiotices cometidas pelos idiotas é a negação da própria existência.

Argumentos

Eu estava no ônibus e ouvi conversarem sobre política. Estavam alguns bancos para trás de modo que eu não vi rostos. Mas ouvi algumas frases. E fiquei contente ao perceber que números eram citados. Taxa de desemprego. Hoje e há dez anos. Taxa de alfabetização. Índices de qualidade de vida. E números eram mencionados, casualmente, com duas casas decimais. Queria que toda a população tivesse esse grau de informação. Inclusive eu.

2016

Na mesa à minha frente, três mulheres. Aparentam em torno dos vinte e cinco anos. Conversam sobre como é viável ir fazer um curso na Europa. A passagem aérea e o dinheiro para seis meses de curso lá. Que curso? Qualquer curso:
- Em seis meses dá pra achar alguém lá pra casar... aí, casou lá, tá feita!

Três desejos

Quero morar fora por pelo menos um ano. Porque vou conhecer pessoas diferentes. Porque serei obrigado a caminhar mais. Porque verei paisagens diferentes. Porque algo inusitado vai acontecer. Não me interessam as fotos nos pontos turísticos. Não quero saber das camisetas-troféu. Quero uma viagem que me permita descobrir outros lugares de mim mesmo. Um processo, no fundo, egoísta.

Quero ter coragem de ignorar a opinião dos outros. Viver de acordo com meus princípios, meus sonhos malucos. E quero conseguir desenvolver uma blindagem à opinião alheia. Porque o que há de mais nocivo no olhar do outro é a capacidade de produzir desânimo. Não quero desistir de minhas aspirações mais estranhas.

Quero escrever sobre as pessoas que mudam de vida. Porque é fascinante. Porque é a chave para entender muitos mistérios. Compreender o anseio de mudança passa por compreender a origem dos nossos sonhos, das nossas motivações. Até a ciência econômica iria se beneficiar dessas reflexões em sua face mais profunda.

Políticos

Sei que ele parecia culto e bem intencionado. E sei que ele o tratou muito bem. Sei que ele reservou um tempo absurdo do dia dele para lhe dar atenção. Mas, sem querer ser mal educado, afirmo categoricamente: isso de nada importa! A única coisa que interessa, em um político, é em quais papéis ele assina e em quais não assina. O resto é fachada. Boa pinta. Está fazendo "política" no senso mais pejorativo e degradante da palavra. Eu sei que é uma companhia agradável. Mas ali, dentro das paredes daquele gabinete, o que ele fez nos últimos anos é deplorável. Execrável. Não importa o quanto a companhia dele seja agradável.

A pior parte

Não, eu não sei se o namoro de vocês vai continuar. Sim, sim. Ele falou comigo. Eu sei que vocês não estão bem. Quero que continuem juntos mas não posso prometer nada. Não, você não está me incomodando, podemos continuar a conversa sem problemas. Não, eu não sei nem mesmo sobre a minha vida, quanto mais sobre a dele. Quanto mais sobre a sua. Acho que o tempo trará as respostas e essa é a pior parte. Não dá para acelerar o tempo. Não dá para abreviar a resposta.

As escolhas implícitas

A cada hora
A cada minuto
A cada segundo
A cada milésimo
Vai pensar no que?
Vai olhar para onde?
Escolhas
Tristezas do passado
Sonhos de futuro
Tijolos de tristeza
Tijolos de alegria
A construção do Eu
A arquitetura do espírito

domingo, 29 de maio de 2016

InstaLife

A gente publica as fotos esperando os contornos dos corações seja preenchidos de vermelho.
Maravilha esse Instagram.
Podíamos fazer os mesmos com os sorrisos e com a vida.
Mostrar mais sorrisos por aí esperando que os corações todos se preencham.

Ignorante

Não posso me considerar um ser humano digno de tanta riqueza existencial até que eu aprenda a distinguir devidamente maias, astecas e incas.

Réus

A conversa estava normal, tal qual esperado, até que ela, casualmente, confessou: "escrevo poesias, mas só vão ler depois que eu morrer!". Como podem as palavras restarem ali fechadas, mudas? É um paradoxo, é uma violência. E, ainda assim, o mesmo sucede a todos os espíritos seja em poesia escrita ou pensada. Diga, ó Deus, que se há um crime do qual toda a humanidade é culpada então é este: nos mantemos em cárcere privado, não é?

A consciência política

Eu acho que todos os nossos problemas se reduzem, em última análise, a um amplo problema de educação. Aqui com Temer. Nos EUA com Trump. Sem falar em Felicianos e Malafaias e Bolsonaros. Show de horrores. Falta às pessoas uma consciência existencial maior. Podemos não ter respostas completas e definitivas, mas já temos respostas profundas o suficiente para questões como "Quem somos?" e "De onde viemos" para rechaçarmos posturas retrógradas diante de outros seres humanos e de decisões políticas apoiadas em bobagens. Mas falta educação política. Falta consciência de que a sociedade está em nossas mãos e de que não devemos usar este poder apenas em benefício próprio. Devemos nos importar também com os outros. Como mudar para um mundo em que exista essa consciência?

sexta-feira, 27 de maio de 2016

Mudanças

Cortar o cabelo. Mudar a cama de lugar. Comprar uma camisa de cor diferente. Ir a um restaurante em que ainda não fui. Mudar de casa. Pedir demissão. Trocar de emprego. Trocar de cidade. Trocar de sonhos. Trocar de vida. Trocar de reclamações. Trocar de exclamações. Provar diferentes interjeições. Mudar olhares. Mudar as preces. Deixar de me secar com precisão cirúrgica depois do banho. Trocar de espírito.

Efeitos

Agora a família tem WhatsApp. Não conseguimos mais nos ver. Moramos em bairros diferentes. Em cidades diferentes. Em países diferentes. Mas, finalmente, podemos dar bom dia e boa noite em tempo real. Contar dos causos do dia. Dizer que vimos um cachorro bonito ou contar que a janta não está assim tão boa. Só espero que esta tecnologia maravilhosa não nos acostume à distância. Com sorte terá o efeito contrário: nos deixará mais ansiosos pela proximidade completa.

Não aprendi dizer adeus

Nem sei contar os anos. Vim aqui tantas vezes. Fiz deste lugar minha casa. Vi pessoas daqui chegarem. Partirem. Partirem até mesmo da vida. E agora é minha vez de ir, mas não desta vida. Vou para um outro lugar. Desemprego ou um novo emprego. Ainda não sei. Mas é hora de caminhar. Finalmente estou cortando o cordão umbilical. Embora a idade já seja avançada posso dizer, num certo sentido, que é agora que estou me tornando adulto. Sendo, finalmente, jogado ao precipício. Tudo para ver se aprendi a voar.

Vida nos sebos


Eu descia a Vieira de Morais a pé. Mochila nas costas com computador, máquina fotográfica, kindle. Essas coisas que levo sempre por aí. Restaurantes. Lojas de chocolate. Petshops, as mães levando filhos e filhas para comprar brinquedos para os cachorrinhos. Cenas de um país em crise.

Até que vi aquela imagem inconfundível. Uma pilha de livros à porta. Um sebo. Entrei.

Explorei o que pude. Romances. História. Livros de viagens. Livros antigos. E então...

A trilha sonora. O som inconfundível de um violão sete cordas acompanhando. Perguntei qual era o CD que estava tocando. "Homenagem a Toco Preto", de Agnaldo Luz, Luizinho 7 cordas & Regional". Resolvi comprá-lo. E então o responsável pelo sebo olhou para mim e disse:

- Não vendo!

Achei muito simpático da parte dele. Porque eu sou desse tipo de pessoa que acha que os outros estão brincando e sendo simpáticos. Só que ele estava falando sério. Muito sério!

Ele sugeriu que eu voltasse outro dia. Talvez uma semana depois.

- Mas eu não moro por aqui, e não passo sempre por aqui!

Um outro cliente perguntou onde eu morava. Contei. Logo mais outros clientes se juntaram em um lobby pela minha causa.

- Vende o CD pra ele! Veio de tão longe!

Começaram a zoar.

- Veio a pé... é um peregrino da música... fez promessa!

Rindo, o dono do sebo me vendeu o CD. Algo arrependido de se distanciar de tão boa música, mas contente pelo que se passara ali.

Sebo é vida.

Vulnerável

Descobri na prática o que todo brasileiro já sabe. Posso ser roubado. De repente eu chego em casa e minha televisão não é mais minha. Saiu por aí sem dar notícias. Meu computador se foi. E com ele meus textos, ideias, meus arquivos baixados. Músicas e filmes que eram tão meus. Felizmente meus livros sobreviveram. Ou infelizmente: me dou conta, no meio de um alívio até então reconfortante, que os ladrões não se interessam a mínima pelos meus títulos. Já tem um tempo mas, desde então, vivo com medo. Quero colocar trancas em tudo. Quero levar minhas coisas comigo. Neurótico. Não deixo nada em casa. O carregador do celular. A máquina fotográfica. Vai tudo comigo. Como se não pudessem me roubar na rua. Como se, no caso de roubo, fizesse sentido poder dar um último adeus.

Cadernos velhos

- Achei quatro cadernos lá em casa. Cadernos velhos.
- E o que tem neles?
- São diários.
- Diários! Você tem diários guardados! Vai deixar eu ler algum dia?
- Não. Eu li um pouco. Acho que não quero ler mais. Estou em dúvida sobre jogá-los fora ou não.
- Como assim? Mas são seus cadernos, sua história! E quatro... quatro! Você escreveu em todas as folhas né? Você não é de fazer desenhos... sair pulando linhas... escreveu em todos os cantos, não é?
- Sim...
- E por que quer jogá-los fora?
- Quanto tempo perdido, sabe... Fico lá... apaixonado por esta ou aquela menina, todo carente, todo mergulhado em existencialismos... Acho que é um passado um tanto quanto patético. Tempo jogado fora. Eu poderia ter feito outras coisas.
- E jogar o caderno fora muda isso, de algum jeito?
- Não quero cultuar esse passado de modo algum. Não quero mergulhar nunca mais nessas tristezas. Deveria ter sido muito mais prático com meus sentimentos. E fico me perguntando se não sou assim ainda... E então não quero mais ser. Não quero ser assim nunca mais. Eu que vá fazer algo da vida. Escrever um livro. Viajar para algum lugar. Conhecer alguém. Viver de verdade. Olho aqueles cadernos e, agora velho, imagino ali em algum quarto um menino com caneta na mão. Escrevendo e escrevendo e escrevendo. Que coisa mais patética.

segunda-feira, 23 de maio de 2016

Arqueiro

Quando pratiquei tiro com arco aprendi o seguinte: não devemos olhar para o oponente. Nosso tiro é unicamente nosso. Olhar o oponente em nada irá ajudar, pelo contrário. Irá causar distração. Irá tirar a capacidade de a mente focar completamente em meu próprio tiro. Vou ter pensamentos sobre o que o meu oponente está fazendo e vou me distrair. O mesmo vale, acredito, para a música. E para a vida.

domingo, 22 de maio de 2016

Mistérios

Não sei se vai dar tempo de entender tudo. Eu, nessa idade em que estou, já quase morri algumas vezes. Pela bala de uma arma. Pelo ônibus desgovernado. Pela picada do escorpião que vi de última hora. Por aquela febre inacreditável que quase explodiu o termômetro. Não sei se vai dar tempo de entender tudo. Entender, por exemplo, essas reuniões familiares em que pessoas tão diferentes passam o final de semana juntas. Discutindo. Discordando sobre tudo. Teimando. Irritando-se mutuamente. E, no fundo no fundo, amando-se de um modo profundamente incondicional.

Que se exploda

Eu gostaria de me importar mais com política. Brigar pela volta do Ministério da Cultura. Explicar a diversos amigos meus porque eles estão sendo idiotas a tirar conclusões sobre pessoas e sobre políticas com base em piadinhas da internet. Gostaria de ridicularizá-los tal e qual eles ridicularizam pessoas e instituições que não conhecem, a fim de fazê-los provar do próprio veneno.

Mas no fundo, sinceramente, eu quero que se exploda.

E eu acho que sou simplesmente humano. É o que a humanidade está fazendo. Cuidando da própria vida e o resto que se exploda.

No fundo é assim que teremos sucesso.

No fundo é isso que vai garantir a explosão de tudo.

sábado, 21 de maio de 2016

Máquina desregulada

Acho que essas ondas alternadas de frio e calor lembram diretamente um sistema dinâmico em processo de desestabilizá-lo. Não iremos descambar diretamente para uma super e contínua onda de frio ou calor. O aquecimento global está ocorrendo mas o que veremos é uma oscilação com amplitudes progressivamente maiores de frio e calor. A média aumenta mas o mais importante para o planeta será a maior violência das alternâncias de estação.

Prompt 01

It was broken, but she was determined to fix all her hopes. One could not say it would be easy. It wasn't only herself. The city was a chaos. The country politics was a mess. The whole mankind, it semmed, was loosing grips from the proper course of history. So it wasn't just for her daily dreams. She was a part of the whole. Her doughter was having problems. But carbon dioxide was rising and no one else was doing a thing. She should be looking for a better job, but people kept dying from poverty and hunger in half of the country and no one really cared.

sexta-feira, 20 de maio de 2016

Perfis

Tem gente inacreditável no mundo. Gente que foi repórter da Globo por muitos anos. Depois decidiu mudar para a aviação. Abandonou tudo e virou piloto. Aí decidiu ir morar nos Estados Unidos e ter a filha lá para dar a ela dupla cidadania. Aí trouxe um monte de aviões dos EUA para o lado de baixo do Equador. Aí finalmente os anos se acumularam e não se deu por vencido: dá instrução de voo em simuladores em uma escola ao lado de Congonhas.

Designorantes

 

Cuidado aí, sabidão

Com suas arrogantes indiretas

Que de minhas palavras tortas

Saem muitas ideias retas

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Futuro

Jovem. Não tem dez anos ainda. Um doce, menino do bem. Coração puro. Mas os amiguinhos o convenceram a atirar um saco de lixo do terceiro andar da escola. Por sorte não acertou em ninguém lá embaixo. Os "amiguinhos" usaram nada mais do que pressão psicológia. "Você NÃO É HOMEM de jogar esse lixo lá embaixo, é?" Desafio aceito. Ao chegar em casa, depois da suspensão na escola, a mãe lhe daria uma enorme lição sobre princípios e a importância de resistir à pressão dos outros. Acho que mais adultos deveriam ter passado por uma experiência dessas...

Guilherme

- Boa tarde amigo, com licença? Teria aí dois reais? Um real? Pra me ajudar...
- ...
- É pra comprar uma marmita, compro ali na frente...
- ...
- Custa quinze reais, lá eles fazem uma boa a quinze reais.
- ...
- Achar lugar pra dormir na rua é foda, sabe? E não dá pra dormir sempre no mesmo lugar.
- ...
- Tem os skinheads.
- ...
- Sim, uma vez chegaram a jogar gasolina em mim. Eu fugi, saí correndo mas cheguei a levar uns chute.
- ...
- Não, sou do sul. Tinha minhas crianças, mas aí não deu pra ficar aqui. Ficaram com minha mulher. Minha ex-mulher. Pelo menos consegui um canto pra elas, sabe?
- ...
- Um barraco. Dei dois mil no terreno. É pouca coisa, mas é um espaço que conquistei. Na verdade foi de assentamento. Mas hoje tem um lugar lá. Um barraco de madeira. Mas coloquei uns móveis lá pra eles. As crianças tão lá.
- ...
- Treze anos. Ela tinha treze anos quando eu engravidei ela da primeira vez. Daí depois a gente teve mais dois. São três filho, sabe? Num dá pra ficar aqui na rua com eles não. Lá é melhor...
- ...
- Tenho vinte. Hoje tenho vinte...
- ...
- Tô com um ferimento na perna também. Precisa de uns remédios, sabe? Anti-inflamatório. As feridas ficam estourando. Daí infecciona. Porque não tem onde tomar banho.
- ...
- Noite fria é foda, mas esses dias tá de boa.
- ...
- Água? Pode ser um refri? Sabe, né? Tem uma glicose, já dá um grau melhor nas energia. Daí a gente vai levando...
- ...
- Obrigado, deus te abençoe!

quarta-feira, 18 de maio de 2016

Crise

Demissão. Eu me ofereci. Me demitam, me demitam! Feliz. De repente, feliz. Documentos para o RH. E a moça do outro lado da escrivaninha com aquela cara de velório. E eu ansioso: onde eu assino? Onde eu assino? É a crise. Crise.

Substância

Quanto menos leio, menos sou eu. Entrar nos pensamentos alheios. Mas assim também o fazemos ao viajar. Entrar nos olhares. Os cheiros dos lugares. Os sons que nos abraçam nas caminhadas e em nossas distrações. As infinitas variações dos copos de café. Quanto menos viajo, menos existo.

terça-feira, 17 de maio de 2016

Resumo

Ele estudou eletrônica mas queria mesmo é ter o próprio negócio. Dizia que vendendo poucos pastéis por hora era possível ter uma renda melhor que de assalariado. A mãe se desesperada. Mas, divorciada, não tinha profundo controle sobre o filho mais velho. Que comprou uma bicicleta das mais caras quando terminou o primeiro grau e depois se presenteou com um carro e uma moto ao terminar o colégio. Em boa parte com o dinheiro da mãe. Abriu uma loja de peixes ornamentais. Teve problemas com o sócio. Conheceu uma jovem determinada e impulsiva como ele. Casaram-se. Morou na casa dos fundos por um tempo. Teve uma filha. Mudou-se para o interior. Construiu uma casa perto da casa dos sogros. Voltou a ser empregado mas assim que pode comprou a pequena empresa de eletrônica. Teve uma segunda filha. Está cansado dessa vida de indústria e multímetros e cheiro de ferro de solda. Comprou um terreno enorme e está montando um canil.

Pai

Meu pai era todo diferentão. Ele não era assim de falar com as pessoas, sabe? Sei lá, tinha o mundo dele. Nessas, até que o véio fez muita coisa. Fez coisa pá caráio. Mas arranjou muita treta também. Porque brigava com a família, com os amigos. Na verdade as pessoas é que brigavam com ele, porque ele não fazia por mal. Enfiava um objetivo na cabeça e saía reto, direto. Nessas, comprava máquinas pra fazer motores, peças. E se os negócios não davam certo ele continuava com o objetivo fixo na cabeça. E acabou vendendo casa, carro, a chácara. Foi tudo. O véio era foda. E ele era mergulhado no mundo dele. Lembro de uma vez... A gente tava no carro. Ele ia guiando e minha irmã tava contando de uma prova de inglês. Ela tinha tirado nove. Porra meu, nove! Nunca tinha tirado uma nota assim. Daí ela falou, né: pai, fiz prova de inglês, tirei nove! E o véio lá, olhando pra frente. Mão no volante. Guiando... Pai! Ela insistiu. Tirei uma nota nove, na prova de inglês! E ele olhando pra frente. Olhava pros lados pra fazer a curva. Daí eu virei pra mana e falei, quer ver só? E falei pro velho, olha, aquele giclê ficou torto, não ficou bom não. E na hora o véio, olhando pra frente, falou, o giclê vai ter que mexer de novo! Olhei pra mana... Eu não disse? Assim só que o véio fala. Não tá nem aí pro resto não. E a gente cresceu assim. Acostumado que a gente ficava no nosso mundo e ele ficava no mundo dele.

quinta-feira, 5 de maio de 2016

Só avisando

...que qualquer hora dessas volto a escrever.  Espero!

segunda-feira, 18 de janeiro de 2016

Foto #186

183

Podia ser uma história de Nelson Rodrigues

Eles dizem se amar. Mas há alguns anos decidiram que não haveria nada sério entre eles. Encontram-se causalmente. Riem, se beijam e conversam. Aos olhos do mundo moderno é, sem dúvida, um relacionamento perfeito. Nenhum grande sofrimento. Mas ela tem um namorado. E ele tem uma namorada. Com seus pares oficiais dividem ainda mais: dividem tudo de ruim que há na vida. Dividem o mau humor. Dividem os xingamentos. Dividem o peso metálico das pequenas irritações cotidianas.

Atratores estranhos

A ignorância é auto-catalítica. Quanto mais ignorante, mais refratário se é às coisas que reduziriam a ignorância.

O último dia

Já há cinco anos era esse vai e vem da UTI. Às vezes ele lembrava quem era. Só às vezes. Na maioria dos dias não reconhecia os netos. Os filhos. A esposa.
- Sou eu, lembra? Sua mulher! - dizia ela com um brilho condescendente e doce nos olhos.
E ele olhava de volta. Um silêncio consternado. Quase em estado de choque. Parecia nem mesmo saber que era casado.
Agora todos em volta do caixão. Todos pensam que é melhor assim. Mas todos sentem a perda. A confirmação de algo que veio se perdendo gradualmente com o tempo. Sim: acabou o sofrimento. Mas agora a certeza de que ele não vai mais voltar, de que não reconhecerá ninguém mais nem mesmo por um segundo sequer... A dor de uma certeza se impondo para além de qualquer esperança.

Finalidade

A areia do mar já foi uma montanha. Que se ergueu por força tectônicas. E que foi erodida pelo vento. Pela chuva. Os átomos que estão em uma planta hoje, ou adubando a terra, ou constituindo esse lanche que está aqui ao lado num pratinho, já podem ter pertencido ao fígado de um tiranossauro. Ciclos. Mas o que são as pessoas nesses ciclos? O que são nossas coisas? Essa mesa vai apodrecer. Quem vai saber que existi? As grandes coisas. As grandes descobertas. Quem descobriu a roda, quem descobriu a matemática, quem afinou a música... Essas pessoas podem não ser lembradas mas suas obras permanecem. Pra que serve este café? Pra me manter acordado em uma noite inútil. Não vou mudar a fome mundial. A poluição global. O nível dos oceanos. O déficit de educação do meu país. Essas palavras, agora digitais, apodrecerão num lapso instantâneo qualquer. E ainda assim eu aqui, sozinho, sinto qualquer prazer. Essa descoberta estranha de que a existência é o convívio de dois modos distintos: uma ligação com o futuro e um desfrute do presente.

Existir

Eu escrevia e escrevia e escrevia. Mas nem por isso sentia existir. Escrevia como quem canta em um quarto fechado. Escrevia como quem pedala apenas uma bicicleta ergométrica. Sem sair do lugar. Escrevia e escrevia e escrevia. Até que ela disse:
-Se precisar de uma leitora, estou disponível.
Senti voltar a existir.

Paulistas expatriados

Muita gente queria que o Brasil fosse separado. E é uma gente burra. Dentre outras coisas, porque não percebe que o Brasil já está separado: os paulistas e o resto. Paulistando andando pelo Brasil não é a mesma coisa que um brasileiro andando pelo Brasil. Paulistando anandao pelo Brasil é algo como um aristocrata inglês descobrindo tribos na Polinésia. Ou ao menos é assim que ele se sente. E tem em si o que de pior havia nos conquistadores das navegações. Quer comer toda mulher gostosa que vê, gostaria de jogar à fogueira todas as barangas. Desrespeita todos os costumes locais e julga todas as diferenças como um erro grosseiro. Como é que pode estacionarem o carro assim? Vinte minutos pra fazer um pastel? Afe, que música escrota, vamos procurar um barzinho decente! Reclama dos problemas econômicos do país. Mas continua pagando trinta reais numa promoção de hamburger fast food com guaraná últra açucarado. E acha caro cobrarem cinco reais por meio litro de suco natural à beira da praia. Ou por uma comida caseira que lhe é servida em mãos. Que, aliás, demorou porque estavam preparando com capricho. Que, aliás, é perda de tempo. Como esperar que os paulistas se misturem com o resto do país. Perda de tempo.

Relógio biológico

Tem um galo aqui no vizinho. Isso que dá eu resolver morar tão longe. Tem um galo que não sabe a hora certa de cantar. Uma e trinta e quatro da madrugada e o bicho lá se esgoelando. Criatura maluca!

Rotina

A gente sempre brincou que minha filha era preguiçosa. As crianças iam correr e ela cansava primeiro. Ficava ofegante. Mas normal, eu também não sou nenhum atleta, né? Aí uma vez fui com ela fazer alguns exames. Descobrimos um problema no coração. Uma pele num músculo, uma válvula, eu não sei explicar. Não entendo nada disso. Mas entendo que coração é sério. E falamos com um monte de médicos. Fizemos um monte de exames. E a gente estava desesperado. Sabe, ela vinha ficando mais e mais cansada, por isso tínhamos ido fazer os exames. E a coisa estava de um jeito que, se ela não operasse logo, ia acabar ficando tão cansada que ia dormir e não ia acordar mais. Porra cara, minha filha! Dez anos a menina! Cê tem que ver os desenhos dela, ela faz um gibi, um gibi inteiro... Ela conta as histórias, sabe? E falei com os melhores médicos que achei. Fui falar com o melhor da cidade. Uma grana. Dois carros embora, dane-se. Era minha menina. O cara explicou tudo. Como iriam fazer. Disse que só era uma operação perigosa em caso de outras fraquesas. Gente idosa, ou outras doenças concomitantes. Sempre há um risco, mas ele estava confiante. Daí no dia da operação, putz... Era pra demorar três horas. E seis horas e eu lá, sentado naquela cadeira. Levantava. Água. Sentava. TV. Celular, olhava pra parede, não sabia onde me enfiar. Ele tinha dito, explicado tudo. Ele falou: "Faço isso há vinte anos. Não saio da sala de operações até o final do trabalho, não adianta. Ficar dando notícias para a família no meio do trabalho só atrapalha. Então eu não vou sair até terminar, e peço para não se preocupar com isso, é o meu modo de trabalhar." Mas porra, minha menina tava lá dentro, depois daquela porta, de peito aberto. De peito aberto, imagina? Passaram a faca e estavam mexendo no coração dela. Eu queria entrar e mandar fechar logo e me devolverem ela. Eu não dormia mas não era sono. Nem sei falar como eu estava. Aí a porta abriu. Aí o cara sai de lá olhando pra mim e o filho da puta fala, todo sério, "Tivemos alguma dificuldade, alguns contratempos", e daí depois manda: "mas deu tudo certo, ela está anestesiada, estão terminando de fazer os pontos e logo ela vai correr com fôlego!". Porra, meu... Caralho! Eu não sabia se xingava o cara ou se abraçava ele. Chorei ali em pé, soluçando. Ele quase me matou de susto, que papo é esse de "tivemos dificuldades"? Mas depois falou que conseguiu, ele conseguiu! Eu sempre sofri por ser um pai distante, ficar meses fora de casa. Mas valeu para juntar cada centavo que usei pra pagar esse cara, essa operação. Eu estava tremendo, respirando rápido, chorava e ria, soluçava e gaguejava porque tinha achado que podia ter dado tudo errado mas não podia dar nada errado. Aí o cara continua, com a maior normalidade do mundo, de quem faz até três ou quatro dessas operações por dia: "logo vão terminar de fazer os pontos e levá-la ao quarto, eu vou indo pois tenho outra e estou um pouco atrasado, abraço, tchau".

Ideias da madrugada

Quando percebi que não iria dormir resolvi escrever alguma coisa. A cozinha. A cozinha é um bom ambiente. Nada de escritório. Formal demais. A cozinha é um ambiente vivo. E a madrugada, com seus silêncios, exalta a falta de todas as vozes que ao dia ecoam ali. Vou escrever um livro para erumar o mundo.  Argumentos para as pessoas parerem de se odiarem com base em ideias simples e prontas. Um livro para divertir o mundo. Histórias capazes de fazer o leitor rir ainda que sozinho em seu quarto. Ainda que com medo do avião prestes a decolar. Um livro para mudar o mundo. Ensinar os princípios de história, física e matemática de um modo tão estimulante que a mente leitora será, ao final, capaz de criar coisas novas. Coisas ainda nunca sonhadas, nunca pensadas. Investigar a natureza escondida da existência. Se bem que, neste silêncio todo, só aqui com o barulhinho dos teclados e o barulho distante de um ou outro carro perdido na madrugada, já tá dando um soninho bom...

Insônia

Águas e alagamentos. Sol e aridez. Café e leite. Café com leite. Livros velhos. Literatura de cordel.Pernas. Mordidas. Cheiros. Lembranças. Calçadas. Desconhecidos. Frevo. Fervo. O homem foi até a Lua e voltou triste, lá não haviam souvenirs, nem parques para passear, uma tristeza. Um filhote de gatinho perdido na noite. A mãe foi atropelada. Miau, miau. Potinhos velhos de margarina com leite já azedando. Humanos preocupados. Um mendigo que tem tortos os poucos dentes que lhe restam. Um trocado, uma ajuda? Não, nada. E noventa reais mais tarde num restaurante onde todos saem quase vomitando de tanto comer. Empanturrados. Humanidade podre. Jesus volta como mendigo para testar quem tem um coração bom. Li uma historia assim em um Gibi quando era criança. Comerciantes que atendem de má vontade. E reclamam da crise. Água numa parte do país. Seca em outra parte. Dinheiro em uns bolsos. Pobreza em calças furadas. Calor em alguns corações. Invejas de outras vidas. Inveja da minha vida. Preso demais em mim mesmo. Solto demais em mim mesmo. Onde estou? Como vim parar aqui? Embarque. Desembarque. Embarque. Desembarque. O que enxergam essas pessoas com olhar de raios X? Raios A, B, C... Raios letrados. Raios poéticos. Raios rimados. Raios. Que sono! Raios!

Parabéns

É hoje. Seu aniversário. Há anos nos falamos pela última vez. Nunca fomos mais que um talvez. Mas eu lembro. Sempre lembro. Parabéns.

Nomes

Eu tinha pressa. Deveria solicitar à funcionária apropriada que inserisse as informações no sistema. Aproxime-me da sala dela. Ela estava de costas para mim e eu podia ver, na tela de seu computador, um filme. Ela tinha fones no ouvido. E estava com a cabeça caída de lado. Ou era uma posição de extremo relaxamento ou então havia, de fato, dormido diante da distração. Eu não tinha acesso direto: dado o caráter restrito daquele departamento, a porta permanecia trancada e a tal funcionária deveria liberar meu acesso apertando um botão. Toquei a campainha. Nada. Bati na porta. Nada. Falei em tom razoavelmente mais elevado. Ô moça, oi! Nada. Intensifiquei minhas atitudes tanto quanto possível evitando, apenas, o limiar a partir do qual eu seria identificado como vândalo ameaçador. Nada. Até que uma outra moça, funcionária da sala ao lado, apareceu. Liberou meu acesso e acordou sua colega. Já sentado de frente à ela, sendo atendido, fui forçado a conter o riso ao ver o nome em seu crachá: Sonilda.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2016

Invisível

Vi uma mendiga na porta da padaria.
Vi um fazendeiro à minha frente.
Fila do caixa.
Café da manhã.
Pão na chapa
Café com leite
Um suco de manga
Um doce
Uma sobremesa
Um chocolatinho
Um dois vinte trinta reais
Fazendeiro sai
Mendiga fala
Oi teria um troc...
Fazendeiro segue andando
Não olha ao lado
Olha para frente
Não olha para dentro
Não olha para o céu
Não olha para nada
Segue andando movido pela inércia de toneladas de cultura escrota
Mendiga fala
Afe, o que foi que eu lhe fiz?
O que foi que ela fez?
O que foi que ele fez?
Negou moeda
Seu direito
Negou olhar
Negou ouvidos
Negou humanidade
Amor
Atenção
Não há mesquinhez maior
Do que se negar a dar
Aquilo que, ao dar, não se perde
Entendo que há lógica profunda
Nas coisas do acaso
Que a aridez de todas as terras de fora
Começou na aridez de todas as coisas de dentro

terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Rio de Janeiro Falso

Não há corcovado.
Mas há um Cristo lá em cima no horizonte.
Não há Copacabana
Mas há um lago. Famílias passeiam no fim da tarde.
Não há Guanabara.
Mas há um horizonte.
Que continua lindo.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

Foto #185

228

Calçadas

Faz tempo já. Quanto? Quarenta? Sessenta anos? Qualquer coisa assim. Não tinha essas músicas de hoje em dia. Não tinha todo mundo com esses telefones na mão. E ninguém tinha carro, moto. Os passeios eram aqui na cidade mesmo. E as pessoas saiam para namorar. Tinha a calçada de quem ainda não tinha ninguém. Os rapazes ficavam encostados ao muro, conversando. As meninas passavam com as amigas, de mãos dadas. Trocavam olhares. Cruzar o olhar uma segunda vez já era uma grande conquista, conquistada com grande euforia e ansiedade. Mas tem tempo já. Hoje os tempos são outros.

Tudo ao mesmo tempo

Acordo. Ligar o gás para a água esquentar. Achar a toalha. A toalha está misturada com a dos outros. Maldita empregada. Achar minha roupa. Minha roupa está dobrada, passada. Bendita empregada. Leite com nescafé com nescau. Água. Banho. Roupas, pentear cabelo. Barba. Tênis. Chaves do carro. Fechar as janelas. E se chove? Agenda do dia. Telefone. Baterias carregadas? E o carregador? Elevador. Carro. Trânsito. Café da manhã. A mensagem dela. O que ela quis dizer? Pão na chapa. Como está meu pai? Operou? Chego atrasado. Relatórios. Planilhas. Calor. Controle remoto do ar condicionado. Pés cansados. Lesões por Esforços Repetitivos, ginástica laboral. Meus amigos se reuniram, eu não fui. Recebo fotos pelo WhatsApp. O David Bowie morreu. Eu por minha vez já vivi 41% da minha vida caso o meu destino se atenha às médias. Números. Formatação. Os livros que não estou lendo hoje. O Windows quer atualizar. Justo agora? Acabou o café. Almoço. Nota fiscal com CNPJ da empresa. Como está minha mãe? Faz tempo que não ligo para ela. O El Niño está babunçando as chuvas da região. Tem fazendeiro perdendo tudo. Os turistas jogando garrafas nas praias. E o novo contrato? E minha irmã? Preciso fazer alguns cursos... Quais escolas tem o melhor preço? Ainda não recebi meu cronograma para o mês que vem. Preciso saber as datas, comprar as passagens. Parei de tocar. As aulas de música. Minhas distrações. Preciso correr. O Dráusio Varella diz que faz bem ao coração, ao corpo. Se eu não começar logo a correr, talvez já tenha vivido 67% da minha vida. Será que desliguei o gás depois do banho? Ajudar lá no galpão, empurrar as coisas, carregar caixas. Enviar os relatórios. Não conferi todos os números. Qual restaurante tem a melhor pizza? Quero dormir. Oito horas de sono. Dráusio, o que é melhor? Correr ou manter o sono em dia? Uma coisa por vez. Terminar as planilhas. Ligar para minha mãe. Falar com o meu pai. Atualizar o Windows de novo. Carregar o celular. Abastecer o carro. Comprar filtros de café. Pedir a nota com CNPJ. Uma coisa de cada vez, uma coisa de cada vez!

domingo, 10 de janeiro de 2016

Choro

Era início da noite. Hora das mães darem às crianças comidas gostosas e broncas por modos inapropriados ou escolhas erradas de cardápio. Mas minha mãe chorava sentada na beirada da cama. O quarto escuro. A noite já escura demais. Não digo que chorava copiosamente porque nunca entendi essa expressão. Quem quer copiar um choro? E porque justamente um choro intenso inspiraria essa idéia de cópia, como inferiu minha curiosa ignorância acerca do uso dessa problemática expresão. Fiquei ali em pé naquele chão de tacos de madeiras. As ranhuras cheias de poeiras e pulgas escondidas que meu pai matava quando fugiam do calor para se alimentarem de nossas entranhas. Olhei minha mãe e a via soluçar de olhos cerrados. Essa expressão eu entendo. Chorar triste assim vai serrando mesmo. Primeiro os olhos, desce pelo nariz e chega fundo na alma. Uma trinca que se abre. O choro é o terremoto na tectônica da alma.

Eu tinha nove anos. Meu pai, com seus quarenta e cinco, havia decidido ir embora e assim o fez. Pegou aquele fusca amarelo, colocou em tudo o que era espaço livre suas malas velhas e sacolinhas de mercado cheias das coisas que lhe assegurariam não precisar retornar. Meias. Sapatos tênis e chinelos. Os desodorantes baratinhos de usar no dia-a-dia e aqueles perfurmes um pouco mais caros, de jogar por cima para disfarçar a pobreza dos outros cheiros. As camisas e calças. Bermudas. Livros. O que coube. Uma luminária de lâmpada fluorescente. Uma caixa de ferramenta que o possibilitaria ser útil diante de qualquer emergência doméstica que nunca acontecia. Ele só não tinha uma ferramenta de consertar o choro da minha mãe, que largou ali chorando como a gente joga no canto uma lâmpada que não tem mais jeito. Fique lá ela com seus defeitos que vamos arranjar outra coisa.

Eu não entendi nada disso na época, é claro. Meu pai estava indo para o carro mas ele sempre ia para o carro. Todo dia saia com aquele fusca barulhento que precisava de aceleradas exageradas para não morrer na marcha lenta. Todo dia ele voltava. Quando carregava o carro em exagero era para viagens. Demorava mais, mas voltava também. O que havia de errado?

Ele tinha pressa e pediu para meu irmão ajudar no carregamento das sacolas, malas e caixas. Ainda hoje meu irmão o olha como um agressor que o mutilou. E eu entendo. Porque é de uso comum dizermos "meu pai". E esse "meu" é uma posse. Meu irmão foi obrigado a levar ao carro algo que era posse dele. Foi roubado. Meu pai se transfigurou ali em um assantante que roubou a si próprio do lar ao qual pertencia. Das pessoas que o possuiam. Esse é o dilema insolúvel das separações: ele se pertencia também e, dono de si, bem podia se levar a qualquer canto a qualquer hora.

Sem entender nada disso, até porque as décadas ainda não tinham transcorrido, eu olhava minha mãe se transformar lentamente em lágrimas e soluços. Eu precisava falar algo. Ou fazer alguma coisa. Buscar uma almofada. Fazer um chá. Oferecer benflogin ou biotônico fontoura. Essas coisas todas que os adultos me faziam para induzir melhoras e reforços. Eu não sabia fazer nada disso. Não mexia no fogão e não alcançava o armário dos remédios. Só sobrou falar. Balbuciei incentivos como pude. Mãe, falei, você é como uma formiguinha.

Ela ficou me olhando, um pouco sem saber se devia continuar a chorar. Porque o enigma daquela declaração desconexa roubava suas atenções. O que, embora eu ainda não soubesse, já era um lucro e uma das grandes vantagens das declarações sem sentido imediato. Prossegui tentando dar um sentido àquilo. A formiguinha, expliquei, é muito pequenininha, mas carrega coisas bem pesadas quando precisa. E vai muito longe. E nunca chora. Já viu, mamãe, formiguinha chorando? Eu nunca vi, e já olhei bem de perto.

E aí ela chorou mais. E eu achei que tinha feito tudo errado. Mas ela me abraçou forte, bem forte. E aí eu comecei a aprender que existem vários tipos de choro.

Momento decisivo

O vagão de trem ficou mais de uma hora parado. Ela estava sem dormir, emendando o trabalho da noite anterior com a aula de fotografia de hoje. Iríamos para Paranapiacaba. De repente, começou o desespero. Ela precisava sair dali. As mãos esfriaram, tremendo. Formigação no rosto. Voltamos. Saímos do trem ainda algumas estações antes do destino, pois ela não aguentava mais ficar no trem. Chamamos os pais dela. E chamamos também resgate. Ninguém entendia o que estava acontecendo.

Aí as mãos dela começaram a se contrair novamente, ela começou a reclamar de mais formigação no rosto. Não conseguia falar as palavras direito. Pediu ajuda desesperadamente. Fui acompanhá-la a uma sala próxima, onde havia sombra e alguns banquinhos. Ela se apoiou em mim. Os passos começaram a se enganar quanto a direção correta a seguir. Ela anunciou:

-Acho que vou desmaiar.

E eu apenas disse:

-Pode desmaiar!

Foi como se tirassem as pilhas um brinquedo. Ela desabou na hora. A segurei antes que viesse ao chão e dois seguranças se aproximaram para ajudar.
Em pouco tempo o pai chegou de carro, com a irmã, e a levaram para um hospital.
Fizeram todos os exames possíveis. Coração. Possibilidade de ter havido um AVC. Tudo foi considerado.

A conclusão é de que ela foi vítima de uma epidemia moderna: estresse. Recomendação: trabalhar menos.

sábado, 9 de janeiro de 2016

Inércia

Quinze dias. Só os dois ali, de prontidão. Prontidão contra o que? Não aparecia um crime. Um visitante. Uma emergência. Uma surpresa.
Até que o colega confessa ao outro, em um enorme ato de sinceridade e auto-conhecimento:
-Sabe no que eu estou pensando?
-No que?
-Em nada. Em absolutamente nada!

Geopolítica

Quando eu estava na primeira guerra mundial, não sabia de que lado lutar. Acordava, abria o guarda roupa e escolhia das fardas a mais bem passada. E aí ia para o lado do exército de farda igual. Curioso... Pensando agora, nessa retrospectiva figurinística, quem realmente decidia de que lado da guerra eu ia lutar era minha mulher. Farda tal mais bem passada, luto com os franceses. Farda outra mais bem passada, engomada, luto com os alemães. Não falo francês nem alemão, e isso pouco importava. A gente dava tiro, e tiro é tudo igual não importa em que língua. Ainda hoje fico sem entender como é que os alemães foram perder a guerra se de todos os exércitos que se meteram a besta nessa de brigar eram eles os que tinham as fardas sempre mais bem passadas e engomadas!

Foto #184

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sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

Curas

Eu pensava em ir para fora. Fora do país. Ainda penso, na verdade. Mas o tempo está passando, eu não sou mais jovem. Quase sessenta já. E um coração precisando de tratamentos. E um filho pequeno. Quero cuidar dele. Minha filha mais velha diz que eu preciso acertar com ele assim como acertei com ela. E isso tem feito mais bem ao meu coração do que qualquer remédio.

Foto #183

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Claustrofobia social

Trabalho com pessoas ao redor e gosto de pessoas. Mas venho descobrindo uma característica que eu não esperava em mim. Ou que, ao menos, eu não esperava ser assim tão intensa: preciso ficar sozinho. Adeus telefone, comunicações internéticas, pessoas ao redor batendo papo sobre o que quer que seja. Quero ficar em algum lugar sem pessoas nos metros próximos. Em algum lugar em que eu escute meus pensamentos do começo ao fim. Em algum lugar em que não me digam nem idiotices e nem coisas profundas. Porque quero me aprofundar em mim mesmo e para se aprofundar nas profundezas dos outros é sempre preciso cruzar as bordas. Sair à tona. Não quero isso. Não agora. Me sinto fechado. Fechado de mim mesmo, isolado de onde estou. Claustrofobia social.

Aprendi a separar

A mesa estava cheia. Cheia de gente. Cheia de comida. Os garçons apareciam sempre. As risadas apareciam sempre. A ordem do dia era a discontração. Piadas. Brincadeiras. Todos se despedindo do Gustavo. Iria, naquela noite, retornar para sua cidade natal. Mil e quinhentos quilômetros ao sul. Depois de três meses naquela pequena cidade, isolado de tudo o que conhecia até então, nada mais justo. Diante de mim estava Isabel. Sorridente moça dos longos cabelos, esposa de Lucas, a quem fora acompanhar. Que, de repente, resolvei se dirigir à mim puxando assunto e iniciando um monólogo:
-Comecei a ler um livro muito interessante, sabe? Um livro sobre as mulheres alemãs envolvidas com o holocausto, na época da segunda guerra, do nazismo. Sim, porque costumam falar sempre dos homens, e de certo modo eles escondem muita coisa. É um assunto bem tabu pra eles, não é? Mas eu me interesso muito por isso, acho bem interessante, porque acontecia muita coisa horrível. E é difícil imaginar, né? E eu mesma, olha, eu vejo muita coisa horrível. Eu sou assistente social. Eu me formei nessa área, agora estou trabalhando na prefeitura de uma cidade aqui perto. E a gente vê muita coisa horrível. Não é como nesse livro não. A gente não vive um holocausto como no tempo do nazismo, mas vive muita coisa que não dá para entender. A cidade em que atuo já foi uma das mais violentas do país. Ninguém sabe se o que melhorou foi a segurança ou as estatísticas apenas. Outro dia invadiram um apartamento a mão armada e uma grávida, assustada, pulou do segundo andar. Numa rua em que passo todo dia já me acostumei a ouvir tiros. Fiquei tranquila quando soube que os traficantes me conheciam e deixavam eu trabalhar, que nunca mexeriam comigo. Mas fiquei desesperada quando um deles veio me falar que tinha um traficante vindo de fora vender droga ali, e que ele não tinha ido com minha cara e que ia me matar. Daí tentaram me tranquilizar dizendo que já tinham matado ele e eu fiquei uma semana sem dormir. Porque no começo era assim, eu perdia o sono. E contava para o Lucas e ele ficava desesperado falando pra eu parar com isso. Porque era sempre histórias de crianças estupradas pelo pai, pelo tio. Mulher apanhando em casa. Bêbado atirando em bêbado. Velhos abandonados sem ninguém ir visitar por meses. Nem telefonar. Nem atender telefonemas. E eu chegava sempre com essas histórias e isso tudo pesava muito para o Lucas, para a minha família, para os meus amigos. Mas é muito difícil, viu? Com o tempo eu tive que aprender a separar...

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

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Saudade

Saudade dói. É isso. Essa observação que eu preciso fazer agora. Porque dói. Quero falar com você. Saber como foi seu dia. Ouvir sua voz. Sua risada. Dói.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Foto #181

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Memória

-É melhor você cuidar da sua memória, você não lembra mais nem o que me contou ou não contou na semana passada!
-Sou um engenheiro, lembro de fórmulas genéricas e esqueço os detalhes.... minha memória teve um treinamento meio zoado para áreas não-engenheirísticas. Lembro que é legal te contar coisas, e essa é a fórmula geral. Lembrar do conteúdo de cada história contada não é lá tão relevante porque não altera a fórmula: É sempre legal te contar coisas.

A escuridão que ilumina

Era ano novo e eu estava em uma grande fazenda nas gerais minas do coração brasileiro. Acampar em um belo gramado com um rio limpo correndo ao lado, era esta a proposta. Mas na noite do dia trinta e um fortes ventos e chuvas atrapalharam o conforto daquela noite. Além das poças e sustos, providenciaram também falta de energia elétrica. E agora?

Todos se reuniram na grande casa central. Cômodos amplos, pé direito alto. Cheiro de história. Por conta da nebulosidade que trouxera a chuva não havia luz nem da lua nem das estrelas. Escuridão total. Consideraram acender velas mas, de tanto tempo que não se as usava, custavam a encontrar as poucas que deveriam ter sobrado. Alguém de espírito aventureiro foi o primeiro a propor: deixa assim! Vamos ficar no escuro mesmo! Foi o início de uma noite mágica.

Não haviam rostos. Não havia beleza nem feiura. Não haviam olhares tímidos ou indiscretos. Não haviam branquices nem negruras disputando fosse o que fosse. Foi o encontro de vozes. De histórias. De risadas e ouvidos. De murmuros e espíritos.

Foi a escuridão, densa e impenetrável, que veio provar a todos o quão cegos eram os olhos quando pensavam enxergar.

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

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. . . que saudade!

Dos direitos

Cada vez mais eu me convenço de que seguir a risca todas as normas para "agir corretamente" é nada mais nada menos do que um modo perfeito de deixar de existir. Nossa existência consiste em perturbar normas, expectativas e regras.

Morreu no morro

Era meu colega de sala. Não era um desses com quem sempre converso. Mas já havíamos trocados sorrisos e breves ajudas várias vezes. Já dividimos cerveja na mesa do bar. Já comentamos sobre mulheres bonitas e bons empregos. Sonhos de futuros bem sucedidos.

Eu soube ontem. Notícia pela internet. Quando vi a foto dele, não acreditei. Sabia que a situação no morro era terrível. Aqueles morros de tempos em tempos tem problemas de segurança extremos. Talvez ele não tenha se cuidado. Talvez estivesse no lugar errado na hora errada, uma fatalidade. O fato é que está morto. E suas fotos, sempre sorridentes, multiplicam-se na rede, enchem-se de comentários emocionados. Mais uma jovem vítima dos morros. Mais uma morte besta, inexplicável, inaceitável.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

Foto #179

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Morte a dois

Deito-me ao lado dela antes de dormir. A televisão está ligada tal qual ela gosta. Resolvo anotar algumas coisas em meu caderninho. Duas ou três palavras para que as ideias não se esqueçam.
-Quer que eu ligue a luminária?
-Não precisa, respondo.
Afinal, para tão poucas palavras a claridade do televisor já é suficiente.
E então escuto o click. A luz da pequena luminária de cabeceira modificando toda a tonalidade do quarto.
Ali, naquele triste instante, eu sabia que não teria como vivermos juntos.

Gosto musical


Tem quem pense que eu sou roqueiro. Eu mesmo já o pensei. E se ainda o penso não é mais com relação ao gosto musical. É quanto a filosofia de vida. Modo de existir. Postura existencial. Mas, roqueiramente confesso, nem sei se o rótulo é correto. Não sei qual é o consenso adotado por aí em torno da palavra "roqueiro". Só que não me importo, e é precisamente nisso que me acho roqueiro. Retornando ao assunto das músicas, o que eu descubro são contrastes.

Posso escutar um Heavy Metal. Angra, talvez. Mas no modo em que mais gosto de utilizar minha playsit, que é o aleatório, não tem como suspeitar do que vem depois. Pode ser um pesado "That I never had", de Ozzy Osbourne, sem levantar suspeitas nenhuma quanto à minha roqueirice. Mas pode ser também um incrível violão e voz de Michael Hedges, uma profunda trilha sonora de Danny Elfman de qualquer um dos filmes que ele musicou, uma versão de Eleanor Rigby no melhor estilo chorinho (de Hamilton de Holanda), a Suíte da Noite Estrelada, no incrível piano de Elisa Meyer Ferreira ou um chorinho tocado pelo Choro das 3 com a família toda... A família e a família extendida, por assim dizer, o que inclui amigos, outros compositores, etc... E depois vem Bluette, de Dave Brubeck. Teatro Mágico. Boi Pirilampo. Corrs. Móveis Coloniais de Acajú. Fica mais um pouco amor, de Adoniran Barbosa. Sher, o doce klezmer de Giora Fiedman. Jamiroquai. O som tradicionalíssimo de Ibrahim Ferrer. O groove arranhado de Betty Davis. O som reflexivo de Coldplay. E escuto coisas pops ou bregas ou raras ou velhas ou clássicas ou tradicionais. Brahms, Língua de Trapo, Madredeus, Caetano, Eddie Danniels, Gospel, Vivaldi... Paula Fernandes, Lorde, Sia, Duke Ellington, Chiquinha Gonzaga, Irene Portela, Silvio Caldas, Altamiro Carrilho, Ceumar...

Então qual é o sentido de eu me dizer roqueiro por ouvir Angra, Aerosmith, Guns n' Roses, Evanescence, Ozzy, Gammaray, Helloween, Blind Guardian, Bruce Dickinson, Iron Maiden, Nightwish e Savatage?

Acabo descobrindo que, no fundo, o que eu não gosto é de um crachá no peito, camisa de força da alma... E, seja o estilo qual for, não aguento um dia inteiro do mesmo som. Que os dias tenham tantos sons quanto o espírito tem humores. Gosto de varandas. De calçadas largas. Não gosto de janelas fechadas. Não gosto da claustrofobia do estilo.

Relendo, vi que esse texto não explicou absolutamente nada sobre o que se propunha, meu gosto musical. E vi também que assim basta.

domingo, 3 de janeiro de 2016

Agroboy

Sua profição: herdeiro. Sempre teve conforto. Não precisou acordar cedo como os pais. Carregar peso. Dominar os segredos do machado, da pá, dos baldes de água e dos arames farpados. Estudou nas capitais. Morou fora do país aprendendo os idiomas dos endinheirados. E hoje suas lavouras estão morrendo. Ele reclama. Culpa do sol. Culpa da chuva. Foram embora. Deixaram-no apenas com seu dinheiro e suas iniciativas. Com nada.

Foto #178

SetimoAndar

Mudanças

O meu irmão é gay. E, cara, quando ele contou para minha família, foi muito difícil. Na boa? Tem gente que fala que essas coisas são escolhas... Que o cara decide ser gay, que é vagabundagem, vadiagem... Se fosse isso, eu te falo, ninguém ia escolher ser gay. E digo mais! Ninguém ia escolher ser preto, pobre, mulher... Porque é mais difícil! Todo mundo ia escolher ser branco, hétero, homem, rico. Porque aí a vida é bem fácil em tudo o que é canto do mundo e ponto final! Mas daí um belo dia meu irmão vira por meu pai e conta que é gay...

Olha, deu um tilt na cabeça do véio. Não foi fácil. Acho que ele pensou em enfiar um berro na goela e puxar o gatilho. E mais de uma vez. Parou com o emprego dele, não conseguia mais trabalhar. Nunca mais voltou pra área dele. Era técnico. Acabou indo pro comércio. Mas deu a volta por cima. E foi tentando entender. Se esforçando. Leu tudo o que podia. E viu que não ia poder ignorar aquilo.

Hoje ele se juntou com a minha mãe e criaram um grupo de apoio. Não para gays, mas para pais com filhos gays. Dão apoio. Contam suas histórias. Dão esclarecimentos. Para pais mais novos é mais fácil. Existe já uma cultura de normalidade. Mas para pais mais velhos muitas vezes é dificílimo! Pensa num pai de quase setenta anos, militar e religioso! Daí o filho vira e fala que é gay! Teve caso de pai prendendo filho em casa, berrando "só sai daí quando parar com essas suas manias!". Teve pai pensando em suicídio também. Enfim, tem de tudo. Uma vez minha mãe abrigou por alguns dias um jovem que tinha contado para a família que era gay. O pai estava transtornado atrás do moleque. Se encontrasse, enchia o moleque de porrada. Daí, pensa... alguém escolhe essas coisas por sem-vergonhice?