As leituras de livros profundos desperta em mim um sentimento de amplidão contrariado pelas limitações cúbicas deste quarto. Penso na barba mal feita do meu pai quando o vi. Penso no filósofo palestrante sugerindo que eu solte minha raiva dos meus velhos traumas. A atenção dos meus pais? Os namoros que deram errado? A cachorrinha que morreu? Suzi, pobre Suzi. Viveu tantos anos. Eu tinha esse sentimento profundo de amizade por ela. Dos membros da família era o que mais me compreendia. Eu jogado no chão da sala com um livro no colo e ela se aproximava. Apoiava a cabeça na minha perna e ali ficava. Com o tempo, comovido com tanta atenção, desatei a falar. Contava para a Suzi o que tinha acontecido comigo. Falava para ela do meu dia. Meus problemas na escola. Minhas dúvidas sobre o futuro. Os livros interessantes que eu havia lido. A Suzi ali, me olhando com um profundo desespero de quem gostaria muito de entender todas aquelas palavras. Nessa devota vontade de compreensão era como se, efetivamente, ela as entendesse.
A barba mal feita do meu pai. Por que pensei nisso? Medo, tenho medo de me tornar como ele. Esse abandono de si. Esse sentimento de que no fim das contas as coisas não se ajeitaram como deveriam. Eu tinha a Suzi para me ouvir. Quem meu pai tem? Fui socorrê-lo achando que estava tendo acessos suicidas e fiquei com raiva por julgá-lo um velho fracassado que havia desistido de tudo. Depois vi que não era nada disso e fiquei tomado de raiva por achá-lo um velho fresco que reclama demais quando está tudo bem na verdade. Eu vou socorrê-lo. Dirijo as centenas de quilômetros, à noite, sem saber se o encontrarei vivo ou desistido de si, só para dormir ao lado dele e dizer que vai ficar tudo bem. Quem vem aqui dormir do meu lado para me dizer que vai ficar tudo bem? Suzi, onde está a Suzi?
O mundo desistiu de me tranquilizar. Lia sobre a conquista espacial e as descobertas científicas, o controle do átomo, a manipulação do DNA, e achava que iria ficar tudo bem. Ainda que minha vida tivesse lá seus tropeços, no fundo no fundo ficaria tudo bem. Talvez não comigo mas ao menos com a humanidade como um todo. E assim qualquer excesso de dor que eu tivesse com relação à minha própria vida seria um egoísmo a ser vencido. Mas agora o Trump ganhou. O Brasil foi tomado por ladrões. A Síria foi devastada. Tudo bem que nunca paramos de destruir países e fabricar famintos e mortos de todas as idades. Mas quando perdem o pudor de fazer isso com uma nação que estava inteirinha então uma nova barreira foi rompida. Não são os mesmos mortos de sempre. E a comoção não atinge os níveis devidos.
A leitura de livros profundos me desconecta desse instante. Já foi uma desconexão boa. Sentir pertencer aos milênios. A uma espécie que evoluiu para criar a escrita, a poesia e dominar o aço e o elétron. Mas agora esses livros todos, e a internet, e tudo o mais, me mostra que estamos jogando tudo no lixo. É noite e temo pelo pior. Mas não sei para onde dirigir. Não sei a quem ajudar. Suzi, cadê você?