terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Fubini

Era uma aula de cálculo, a professora estava demonstrando a viabilidade de se identificar um plano tangente a uma determinada função lá em um determinado ponto. Eu bufava pensamentos em outras reclusões pra longe dali. Vidas tangentes a funções estranhas, era nisso que eu pensava, até onde se pode verbalizar. Desejos que se jogavam lá no longe mas que vinham se arrastando atrás de mim sempre e sempre, como aquelas latinhas do carro dos recém-casados. Não me abandonam, seguem barulhando o tempo todo.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Pradópolis

É que o tempo da noite, deslisando sobre o sono, corre mais rápido.

É que a urgência do amor, transpirando saudades, morde mais forte.

Yara andou por entre postes e calçadas ignorando o medo da escuridão e dos escuros, medos esses sempre tão seus, tão incontornáveis.

Não avisou a mãe. Não pediu ao pai. Não acordou o cachorro.

Chinelos. Frio. Passos firmes.

Algumas poucas considerações lógicas pulsavam em sua mente, reféns de mil emoções explosivas.

Chegou em frente à casa. Era o quarto da frente, a janela de cima.

- Ei, ei! - murmurou alto, para ele ouvir.

A incredulidade abriu a janela.

- Eu vou! Amanhã eu vou sim! Espere lá na rodoviária, que eu vou sim!

E voltou para casa. Sem acordar o cachorro, o pai, a mãe ou o vizinho. E sem conseguir fazer dormir suas imaginações mais ousadas.

Confissão


































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domingo, 29 de dezembro de 2019

Minha poesia

Há por aí poetas de rimas e flores. Poetas de dicionários longos e exóticos. Poetas de arquiteturas elaboradas nos sons e até no cheiro das palavras. Eu sou rude. Porco e tosco. E defendo, nessa tosquice toda pobre, que assim minha poesia é mais bela. Mais bela porque, fazendo questão de não ter nenhuma aparência que preste, não pode por nenhum momento ser tomada por mais do que aquilo que realmente é. Mais bela porque sua aparência não é em momento algum etérea. Quando amo, choro e digo que amo e é assim que é amar. Quem, por aí, tomado por toda a dor estomacal, peitoral, visceral de uma paixão bem doída, pára para escrever coisas belas? Poetas das belas poesias tinham tempo para não amar. Eu não tenho. Meu peito dói sempre. Não sei parar de amar. Não sei parar de viver para pensar com calma no que escrever. Escrevo só a palavra que vem à mente e não tenho coragem de censurá-la. Não tenho culhões de proibí-la. Belos e comoventes são os presentes românticos que meus amigos comedores dão às menininhas estúpidas e inocentes que sempre os tomam como os caras mais certinhos do mundo. Eu sou sempre deixado de lado como uma pessoa pouco séria e incapaz de me entregar tanto como eles. Acontece que na verdade não sou é capaz de deixar de me entregar, por um segundo sequer, à vida, que me tenta com piadas e sorrisos e devaneios nos pensamentos que me encantam. Os sedutores de plantão, como esses meus amigos comedores, esses sim, furtam-se à vida para elaborar, com calma mecânica, quais velas escolher, qual música colocar, quais frases dizer, numa espontaneidade detalhadamente elaborada, porque se algo nestas almas é espontâneo é o ímpeto ao planejamento, a incapacidade de se dar à vida tal como são naquele segundo. Detesto cada vez mais os poetas belos, e fico com uns poucos exemplos de poetas realmente sublimes, que conseguiam conservar toda sua rudez de cuspir palavras e ainda assim atingirem um patamar transcendente de beleza. Eu sou belo na intenção de ser transparente, e faço questão de não querer beleza nenhuma além disso. Eu amo quando sinto que amo. Eu falo quando sinto que há palavras para serem ditas, e pouco me importa se esse meu julgamento calha de acertar ou não.

sábado, 28 de dezembro de 2019

As alianças

Faz tempo e ainda dói lembrar. Isso significa que isso ainda me fere? Ou lembrar de coisas assim é sempre dolorido, mesmo depois de superarmos tudo que há pra superar? Até onde devemos superar um fato para nos fazermos fortes sem ainda nos tornarmos frios?

Ela estava comigo no shopping, e entramos em uma loja de produtos asiáticos diversos. Loja de mulher. Na vitrine do balcão, várias alianças. Uma a agradou demais, demais. Uma com duas argolas, em que a argola de fora girava.

"Olha, aliança de giro-giro!", dizia com uma alegria infantil, olhos brilhando.

Eu tinha apenas minha primeira bolsa na faculdade, para pesquisa. Meros duzentos e oitenta reais por mês. Dava pro ônibus, pra comer, e já faltava.

Mas eu não guardava moedas. Tinha uma caixinha, envolta com fitas durex, e nela colocava minhas moedas.

Levei a caixinha na loja. Lá tinha dinheiro suficiente, os quase noventa reais. Tudo em moedas. Eu já tinha levado as moedas separadas, pra facilitar a contagem.

Mas, para minha surpresa, aquilo não foi apenas uma negociação. A dona da loja ficou impressionada. Ao ver a cena, ela teve a certeza de que eu era muito, muito pobre, e que aquele era o único meio de pagar as alianças, e achou aquilo a coisa mais romântica que já tinha visto. Correu e foi buscar a filmadora.

Comprei as alianças. As alianças e uma caixinha de madeira para enfeitar a surpresa.

E no dia em que eu estava com as alianças no bolso, na casa dela, ela me contou: não havia deixado de amar o ex-namorado e iria voltar pra ele.

Cristina

Acabei de abrir o blog da Cristina. É um blog secreto, poucos amigos têm o endereço, e lá ela escreve por um pseudônimo. E não é que lá me vejo às vezes? E não é que lá acabei de me ver? Fico pensando o quando de mim vai com ela; se tanto quanto dela não sai de mim. Fico pensando se mutilei esse amor ao ter uma vida que o fizesse tão secreto e incoerente, ou se é só por isso que ele sobreviveu até aqui.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Aperto

E se eu cruzar o Atlântico todo a nado, correr por Portugal e através da Espanha, for aos trapos e restos até o coração da França, agarra-la aos braços com minhas últimas forças e com um resto de voz, olhando-a fundo nos olhos, explicar: tô com saudade!?

Weber e os chatos

Sempre achei Weber um chato. Talvez porque Política como Vocação, numa tradução qualquer para o português, tenha sido a primeira coisa que fui obrigado a ler no curso de Ciências Sociais. Eu tinha acabado de sair do cursinho. Estava totalmente por fora de política, de geopolítica, discursos políticos ou acadêmicos não faziam parte da minha realidade. Para mim, enunciados com mais de cinco linhas eram longos e uma redação completa era forçosamente limitada a trinta linhas. Não cabe muita formalidade aí. E de repente as páginas e páginas de Weber.

Tentei me convencer por muito tempo da validade do seu trabalho, mas em mil aspectos fico com o pé atras. Tudo bem que ele tinha idéias válidas de serem expostas para discussão, e etc, mas não vou conseguir deixar de achá-lo um péssimo escritor. Qual o problema em tentar ser sucinto e agradável? Ainda mais se estamos discutindo os problemas do mundo, da sociedade, que são tão complexos, então obviamente há muito o que discutir, e o que quer que tenhamos dito, maior ainda será a réplica, especialmente se tivermos tido alguma idéia relevante. Neste caso, alongar demais já a primeira exposição só colabora para deixar o processo todo mais lento. O mundo talvez tenha uma certa urgência com relação ao caminhar intelectual da humanidade. Especialmente numa era de armas nucleares e manipulação genética. Há tempo a perder com prolixidade?

Tudo bem, no tempo de Weber essas coisas ainda não existiam. Perdoemos Weber: seus leitores viviam num mundo muito mais chato em que, por contraste, provavelmente seus textos eram muito atrativos.

Mas hoje temos que considerar não só o problema de tempo, mas também o prejuízo todo do desinteresse provocado pela chatice. Ser legal e sucinto tem seus méritos. E ser legal não implica em ser superficial ou não-original ou não-relevante.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Escrever

Pensar é um fluxo. Escrever é um fluxo. Mas pensando as idéias desaparecem ao nascer. É como a água no Sol, que é destruída pelo calor absurdo quase que no exato momento em que é criada. Escrevendo não. Escrevendo as idéias adotam contornos, contrastes.

Enquanto pensamos, temos as palavras pelo pescoço, tiradas com violência da memória, da imaginação, e lançadas com descaso ao esquecimento, ao mundo sombrio e úmido das coisas já pensadas, onde elas passarão toda a eternidade.

Quando escrevemos, o destino das palavras é diferente. Quando escrevemos, tomamos as palavras com cuidado desde seu nascimento, atentando à sua forma, seus detalhes. E então elas amadurecem, e ao se materializarem no mundo, adquirem a força de nos confrontar. Nos olham nos olhos e dizem que não nos pertencem mais. E têm razão.

Diferentes

Terminei com ela. Terminei porque eu não aguentava mais a falta de humor da vida dela, a falta de brilho na experimentação das pequenas coisas. Terminei com ela porque ela era perfeita demais de um jeito que para mim beirava o artificial. Eu não a sentia orgânica demais. Ela me parecia simplesmente bem sucedida demais na tarefa de encaixar a vida em esquadros. Irônico ser eu engenheiro e ela ter feito Letras, não acha?

Ou será uma falha minha? Ou será que estou escondendo meus defeitos? Tantas são as infantilidades que tenho que se chocavam de frente com o jeito dela, que tive que esconder de imediato para que a relação, para início de conversa, pudesse ter começado! Minha completa falta de disciplina com o cotidiano. Minha aleatoriedade total no planejamento e execução da minha vida até aqui. Meu jeito de não saber o que vai acontecer nas próximas semanas. Minha mania de não me importar com o calendário das pessoas ao meu redor. Eu não sei quais são os próximos aniversários. Não sei quais viagens estão sendo combinadas. Eu não sei o que está se passando e não me importo. Estou mergulhado num grande agora, e agora o que faço é escrever à noite. Quando estiver em um outro agora, em que as pessoas estejam se telefonando para ir viajar, então vejo se faço minhas malas ou não. Não há o que pensar antes disso. Dinheiro, irresponsabilidade com o dinheiro. Talvez eu tenha mais de três mil reais nas minhas prateleiras só em livros ainda não lidos, sem contar um outro tanto que acabei lendo às custas de um tempo que comi das minhas aulas na faculdade, de meus compromissos com a família, enfim.

A liberdade de ser eu mesmo não deve implicar numa total falta de necessidade de melhorar. Tenho que melhorar. Tenho meus pontos. Mas terminei com ela. Terminei com ela porque a gente não sorria. De início, ela me fez sentir um total desespero por colocar minha vida mais nos trilhos para que eu ficasse à altura dela, para que eu pudesse merecê-la e tê-la. Depois, com a maior aproximação, apenas passei a sentir uma desvontade completa por essas melhoras: para ter uma vida tão sem graça, simplesmente não valeria a pena mudar tanto.

Estou viciado no caos da minha vida? Estou viciado na ludicidade da minha desorganização?

- Vocês têm muito a acrescentar um ao outro ainda, se conseguirem passar por cima dessas barreiras!

As pessoas são diferentes, são diferentes! Eu não preciso me ajustar a ela, afinal. Se está tão difícil encontrar felicidade ao lado dela, devo deixá-la livre para procurar no mundo algo de que ela realmente goste, e eu procurarei no mundo algo que eu gosto!

Se eu estivesse com a Sá ainda, e tivesse feito o que fiz hoje, dado um brinquedo de presente pro filho recém nascido da Mi, e mais cinquenta reais em dinheiro pra própria mãe, o que teria acontecido? Uma crise de ciúmes, críticas sobre como sou capaz de gastar um dinheiro que não tenho comprando um presente para uma mera amiga enquanto me recuso a gastar o mesmo dinheiro com a gente, com um motel hoje ou com um passeio ou simplesmente economizando porque, afinal, é um dinheiro que não tenho.

Isso é meu jeito apenas, ou são meus erros? Não sei o que a sabedoria dos antigos diriam a respeito, agora me foge o humor com que os comediantes emoldurariam essas verdades... Só sei que é o que estou vivendo. Terminei com ela, mas a esperança é que eu venha a reatar comigo.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Aeroclube

Horas e tantas horas ali, sentado com os pés na grama. Mãos no bolso. Mãos sobre as coxas. Braços cruzados. Olhando e olhando e olhando mais e mais. Os aviõezinhos vinham e iam e ficavam. Ficavam ali tão perto, no pátio, refletindo o sol. Balançando quando vento era um pouquinho mais. E ele ali, tão poucos anos e tantas imaginações sem fim. Aquelas asas impossíveis todas tão perto e ele ali, tão longe sonhando!

Ventre

Vermelho, verde, azul... São diversos véus.

Ele senta e olha. A música, as cordas, os tambores, o quadril, o umbigo, a textura lisa da pele.

O olho no olho.

Muitas mulheres dançam a dança do ventre, mas a verdadeira dançarina mais que dança. Enfeitiça. Tira a alma do homem e embrulha naqueles véus todos e joga fora e deixa o que sobrou ali bobo, olhando, desligado, hipnotizado.

Ondulando ela se faz serpente e vai se esgueirando pelas suas entranhas mais desguarnecidas e morde fundo. E você morre, feliz. Feliz.

domingo, 22 de dezembro de 2019

O mar

Ela nunca tinha voado, muito menos voado para longe. Mas foi. Christiano, ricaço simplório desses que só é rico por ter dinheiro, mais nada, cansou de ver dia após dia a menina vendo os aviőezinhos todos partirem pra longe, longe do oeste dos cafezais e soja.

- Quer ir junto?

- Eu?

- Sua măe deixa?

- Deixa, deixa sim!

E lá de cima foram voando e vendo as cidadezinhas pipocando do horizonte no meio de matos, tudo enroscado em estradinhas tortas.

Até que, de repente, a menina emudeceu. Deixou a boca abrir um pouco, esse verdadeiro cair o queixo. O aviăo, um Minuano, mal conseguia sustentar no ar tamanho assombro. Ali na frente, de horizonte a horizonte, o azul do mar, a maior lagoa que ela já tinha visto.

E de repente seus olhos năo sabiam pra onde olhar. E sentiu poesias que jamais havia experimentado. Reuniu forças e disse tudo o que as palavras sabem dizer:

- Como é bonito, o mar!

domingo, 15 de dezembro de 2019

Aperto

Quantos pais a gente ganha na vida? Um, o pai que nos fez, nos fabricou, este é certo. Há mais, entretanto? Há pais que nos são colocados na vida por eles próprios. Adoções não burocráticas, não planejadas. Afeto e preocupação que nos tomam que nos moldam e que nos definem com muita força. Podemos ficar órfãos tambem destes pais? E, tendo eles se tornado pais sem contudo nos ter feito nascer, poderia ser que ficaríamos deles órfãos sem que tenham que morrer, como é costumeiro à modalidade tradicional de orfandade? Pergunto isso por estar longe de um pai assim. Estou londe de muitos pais. Estou sentindo como se os tivesse matado de minha vida, ainda que não quisesse, que jamais tenha querido. Doloso esse crime invisível? Culposo apenas? Não sei. A gente perde partes da vida e não sabe mais como reconstruir. Mas é fundamental que se reconstrua. Como? Como? Como reconstruir? Como?

sábado, 14 de dezembro de 2019

Consolação

Perguntei aos céus porque é que eu era o escolhido naquela noite para sofrer. Uma nuvem cuspiu em mim e os degraus da calçada me golpearam ao chão. Hesitei. Malditos sejam. Acho que os deuses que me ajudariam foram para Paris, lá há mais o que fazer, sempre há. Sempre teremos Paris? Minha vida não é um filme. Um anjo desvia de mim na calçada e esbraveja xingamentos pelo incômodo que causo. Durmo, esqueço.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

Diário

E daí que se viva uma vida diferente? Quantas vidas há para serem vividas, afinal? É uma manifestação estranha disso que nos faz humanos, essa vontade de existir dentro de vidas que já existiram, que estão a existir ao nosso redor. Qual o erro de ser único? Qual o erro de tentar o que nunca foi tentado?

Minha vida é simples. Não estou tentando erger o prédio mais alto.

Não estou tentando conquistar o maior dos impérios.

Não estou tentando fazer funcionar um evento impossível.

Estou tentando, contudo, destruir uma muralha invisível. Estou desafiando o conceito de uma vida bem sucedida. Compro menos. Minha casa não fica maior. Não tenho carro. Não busco salários maiores.

E quanta vida encontro!

E ninguém vê, ninguém vê...

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Incidente

Eles dizem para começar a história pelo começo. Para dizer o que vem primeiro, logo de cara. Prender a atenção do leitor. E se eu não sei? E seu eu não sei o começo? E se eu só lembro do gosto maldito de vinho barato vazando pelo canto da boca, de uma náusea fudida e da dor enorme de ser espancado até não poder mais? É esse o começo? Isso não se parece com início de nada, mas é o meu começo. Porque eu não lembro de nada antes disso. Nada. Quebraram minhas costelas e minhas memórias.

Acordei e parecia não haver mais dor. Morto?

Não, não estava morto. Qualquer pequeno movimento lembrava que as dores ainda estavam ali. Abrir os olhos era possível. Exagerar na reação muscular e ativar também qualquer parte da testa, bem, isso não. Isso iria doer demais.

Paredes brancas. Lençóis brancos. Hospital.

Esse é o começo da minha história. Aquele breve flash que tenho de ser espancado, sem nem lembrar para onde ia, o que fazia. E depois esse liso teciso branco cobrindo boa parte do meu corpo. A parede branca ofuscando minha visão. E toda minha tentativa por redescobrir minha vida, a partir daí.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Bravo

Eu já levei você pra voar! Eu me desdobro de todas as formas ao menor sinal de demanda de sua parte... Eu sou totalmente solícito, não sou? Eu estava disponível para ser companhia nos eventos em que ninguém mais iria. Eu aceito qualquer pedido de ajuda a qualquer momento. Eu sou seu vassalo, não sou? E você não enxerga, não vê, não entende o que há por trás disso. É assim tão invisível? Ou será que assim tão entregue o sentimento passa a ser qualquer coisa de outra espécie e sou eu quem erro no julgamento? Talvez, talvez. Talvez o mundo não tenha sido feito para entregas assim.

Alegre

Que calma serena, dias desses. Hoje. Oscilo. Me morro na exaustão da minha ansiedade. Me enterro na clausura da minha calma. Nunca o mesmo, quase como se nunca eu mesmo.

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Primeira página

Pedófilo? Excêntrico cheio de plásticas? Freak?

E agora, agora que está morto, agora que seu corpo foi reduzido a uns quilos de carne apodrecente, agora lhe voltam novamente toda a atenção cuja ausência o matou.

Bem disse o piadista: Michael Jackson morreu por que parou de viver. É o Michael que comove o mundo agora ou é a morte em si? A morte inesperada, repentina, sem aviso nem motivo?

Obama matou uma mosca durante uma entrevista.

Sobre o que era a entrevista?

O que os EUA decidiriam com relação a guerras, economia, saúde?

Qual era o assunto em pauta?

Quem sabe? Obama matou uma mosca, das grandes, e ela posou às câmeras todas, ali ao chão, mortinha.

Quem se importa com a vida, afinal? Eu não, eu não ligo. Acho que nem as pessoas. Apenas custam a admitir isso: o importante é o que se desvencilha dos trilhos da normalidade e sai por aí traçando trajetos próprios.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Agradecimento

Pois é. Cá estava dado às minhas coisas, minhas leituras, meu chocolate quente com chuva. Quando sou surpreendido por este agradecimento, vindo sei lá de onde, trazido pela internet talvez vindo daqui mesmo. Porque são paradoxais todas as coisas que me cercam, eu sei. Porque é inexata essa existência louca sem documentos ou históricos ou tempo contínuo.

Agradecia a tal mensagem à liberdade que eu proporciono. Ao resgate que sou.

Sim, é isso que sou: um resgate. Sou um resgate à liberdade de ser por prazer, pelo prazer de ser. É esta a natureza secreta, escondida lá na intimidade daquele que resgato. Não é existência dada a materialismos. A grandes posses, a paredes belas e estofados viçosos. Ou a viagens caras e almoços exorbitantes. Contanta-se tanto com existir e simplesmente existir, vendo o mundo. Vê o mundo pelas frestas amplas dos livros. E gosta.

E por que precisa de tanta libertação assim? Por que tanto me agradece? Porque a vida tem essa força inexorável de afogar a individualidade no que ela tem de mais original. No mundo de hoje chama-se de individualidade os lampejos de labaredas que vomitam restos de tudo o que é reprimido. Isso já não é mais individualidade: é o resto dela. Eu permito talhar no meio do cotidiano um caminho muito mais livre. Aquele em que se pode ser autêntico sem que seja por protesto.

O simples prazer de ser...

Tantas e tantas pessoas já conheci que jamais saberão o que é isso. Tantas e tantas pessoas que associam o cumprir do cotidiano com uma espécie estranha de prazer, enquanto engavetam sonhos e doutrinam as risadas. Risos não deveriam ceder tão facilmente. Que tem a ver um elevado gosto estético com o prazer do riso descompromissado? Aprender a ver os méritos dos grandes artistas é uma coisa. Diminuir o prazer de presenciar a vida em marcha, ainda que sem grandes feitos no momento, é outra.

Saio do teatro municipal. Pego o trem. Desço na periferia. Violeiros desdentados tocam num bar de esquina. Uma das violas com uma corda a menos, inclusive. Não existe um nome para a bizarra combinação de afinações entre as cordas. Entre as vozes.

Onde vi mais pessoas felizes? No municipal ou nesse bar de esquina?

No bar de esquina dançavam, sorriam, gargalhavam, pulavam. No municipal forçavam-se a apreciar a suposta supremacia artística de algo que não entendiam por completo. Empoleiravam-se sobre as migalhas da própria ignorância felizes por sentirem-se pertencentes a uma classe esteticamente superior ao resto.

Por isso o agradecimento tão enfático que recebi desta pessoa que me é muito muito chegada. Eu liberto disso. Eu não tenho medida estética. Eu não tenho pretenssão eztética. Só gosto de ser. Só gosto de sentir o sabor macio de desenterrar pensamentos ainda vivos debaixo dos escombros toscos dessa realidade que desaba o tempo todo em cima da gente. Gosto de ser. E de inspirar que sejam.

domingo, 8 de dezembro de 2019

Fim

Ontem terminei mais um relacionamento. Mais um, pois é. Como estou? Essa sensação de meia molhada de chuva descendo pela garganta à força, e olha que fui eu quem terminei hein, por ela nós estaríamos juntos até sabe-se lá quando. Mas terminar também é difícil, não importa o que digam. Será que a conversa derradeira nunca vai ser amigável? Sei lá, de repente os dois entendem ao mesmo tempo que não vai rolar, que não tem como dar certo, e se descobrem querendo conversar em direção a um mesmo objetivo. Seria possível?

- Oi Gabi, tudo bom? Precisamos conversar...

- Pois é Carlos, eu tava mesmo te procurando, tinha umas coisas pra te falar também.

- Sério? O que é?

- Ah, sei lá, fala você primeiro.

- Não, pode falar você...

- Olha, sei lá, é que meu assunto é meio sério, sabe?

- O meu também Gabi, e não quero esperar mais pra falar disso, mas você está me deixando preocupado, aconteceu algo?

- Não Carlos! Não aconteceu nada! Quer dizer, aconteceu e não aconteceu, sabe? Mas tenho uma coisa pra falar que não pode esperar.

- Olha, meu assunto é sobre a gente, sabe. Então, se você tem algum outro problema sério aí, sei lá, a gente pode conversar disso depois, primeiro me diga o que aconteceu!

- Mas meu assunto também é sobre a gente!

- Sério?

- É!

E os dois se olham, curiosos...

- Sabe, Carlos... Faz um tempo que eu me sinto meio incomodada, entende?

- Entendo.

- Entende?

- É, entendo. Eu também me sinto um pouco incomodado, sei lá, parece que as coisas estão engripadas, não estão combinando bem.

- Pois é, exatamente! Tô sentindo a mesma coisa!

- Está?

- Estou! Olha, não acha que era melhor a gente por um ponto final nessa história?

- Sabe, eu acho sim. Eu tava pensando nisso vindo pra cá. Afinal, nós temos tantas coisas boas pra dividir um com o outro, e temos que achar a melhor forma de nos colocarmos um na vida do outro.

- Isso! E o que eu tava vendo, o que anda acontecendo é que sermos um casal não é essa melhor forma.

- Nossa Gabi, tirou as palavras da minha boca! Se continuarmos juntos, vamos acabar nos odiando!

- Pois é, e não tem porque nos odiarmos, se conseguirmos ser bons amigos. Se isso exigir que não fiquemos mais juntos, tudo bem.

- Tudo bem, as coisas têm que seguir seu caminho, não é? A vida não pode ficar parada insistindo numa idéia que já provou não funcionar.

- Ai Carlinhos, como você me entende!

- Pois é, pelo menos isso a gente tem de bom, né? A gente consegue conversar como se um já soubesse o que o outro pensa.

- Se as pessoas conseguissem se entender assim por aí, já pensou?

Os dois se olham, sorrindo.

- Querido, me dá um abraço?

Os dois se abraçam.

- Nunca pensei que fosse achar no mundo uma mulher com sua sobriedade. Meus amigos jamais acreditariam se eu contasse.

- Bobagem... Eu é que nunca pensei que encontraria um homem capaz de falar com tanto desembaraço sobre essas decisões difíceis.

- Oh, querida!

- Ai, querido!

- Me beija?!

E os dois se beijam. Se deitam. Se amam. Se misturam indissoluvelmente, unidos pela mesma certeza sobre todas as diferenças que existem.

sábado, 7 de dezembro de 2019

Miragens

Anos atrás, olhei adiante e vi meu futuro. Hoje, pés no futuro sólido e palpável, olho para trás e vejo meu passado. Tenho a sensação de que, em nenhum dos momentos, a visão está realmente nítida. Quantas coisas mentimos a nós mesmos, como se já não bastasse a avalanche de enganos naturais de jultamento que jamais perceberemos!

Minto para mim sobre a natureza do tempo. Minto para mim sobre minhas limitações pessoais. Minto para mim sobre o tamanho dos meus sonhos. Minto para mim sobre meu julgamento sobre as outras pessoas. Minto para mim quanto a minha preocupação com o mundo. Minto para mim quanto ao tamanho do meu caráter.

Vivo em minha mente, e aí tomo o cuidado de ser alguém invejável. Outros não sabem, não acessam a minha mente, não conhecem meus pensamentos. Minto sobre eles todos. Faço em minha mente com que saibam.

Minto sobre a admiração que recebo do mundo. Minto a mim mesmo sobre os outros e sobre mim.

E não digam que essa mentira destrói a verdade. Não, não me venham com essa superficialidade pobre. Essas mentiras todas são o alicerce das minhas verdades. É aí que vivo. É esta a casa cujos tapetes e paredes quero em ordem.

Mentira.

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Corporativo

- Mas e o Tiago, hein?

- Sei lá, tá numas de pegar coroa?

- Sério é? Logo ele que sempre foi tão de namorar e tal.

- Pois é rapaz. Acho que desencanou, viu. Agora tá indo atrás de coroa!

- Mas coroa da onde?

- Ah, dá internet, né?

- E coroa lá sabe mexer em computador?

- Coroa tipo um pouco mais velha, não as embalsamadas.

- Ah bom né! Mas ele tá namorando alguma?

- Não não, parece que não tem essa de namoro.

- Tá o que? Só comendo então?

- É, tá só comendo, mas o Tiago é foda. Meteu na cabeça que tá atrás de envolvimento sentimental, tá cheio das teorias!

- Teorias? Que teorias? Lá vem o Tiago com as viagens dele...

- Teorias! Chegou me dizendo que essas mulheres, na casa dos quarenta, solteiras e tal... Parecem estar cheias de amor pra dar e tudo mais, mas na verdade estão é tentando se esconder de si mesmas, se recusando a amar e tal.

- Ué, mas ele tá ou não tá comendo?

- Tá, tá, pelo que ele contou, tá sim. Aliás, ou ele tá inventando coisa, ou acho que vou entrar na dele viu... Pegar as menininhas de vinte da nossa idade parece que não tá com nada... Ele só me contou loucuras com essas quarentonas que andou pegando!

- Pô, se for assim, eu vou também... Tem uma lá no serviço, ah, aquela eu acho que até rola viu! Na verdade, ela já deu em cima de mim, mas na época eu afastei, por que era novo no serviço, e por ela ser mais velha e tal...

- É, mas ó aí, é a teoria do Tiago, certinha! As mulheres de quarenta, solteiras, vão até atrás! E muito mais que as menininhas de vinte... Elas precisam se sentir amadas. Em parte pra apagar a dor de alguma rejeição passada, do casamento que não deu certo, essas coisas.

- Não rolando namoro, pra mim tá bom.

- Não, pelo que sei, é só sexo.

- E o Tiago, onde tá hein?

- Comendo a Silmara, que conheceu nessa quinta...

quinta-feira, 5 de dezembro de 2019

Jeitinho

Não é que eu achei um jeito de te amar?

É não te amando. Não amando você, consegui finalmente amar alguém em paz.

Amo você. Queito, aqui no meu canto. Em paz.

Sempre que dá, sempre que possível, te amo.

Amo você quando precisa de alguém pra conversar.

Amo você quando precisa de um favor, bobo que seja.

Amo você quando visito sua família.

Amo você quando escuto suas histórias.

Amo você quando dividimos qualquer risada.

Amo você quando você não sabe que estou te amando.

E assim sem saber que te amo, me deixa te amar.

Amo você enquanto você, sem ser roubada de sua vida,

Não me ama.

E, não me amando,

Me deixa livre pra te amar em paz.

Te amar pra sempre.

Outsider

Eu não pertenço a nada. É minha tragédia. É o resumo da minha vida. E é meu mérito também. Mas não porque seja um mérito em si. Antes por ser apenas uma característica primitiva, irremovível, inerente à minha pessoa, tão fundamental que tudo de ruim e de bom que me aconteça pode ser, de um jeito ou de outro, reduzido à essa origem. Não sou institucionalizável. Não consegui me comprimir ao que exigiam de mim as profissões que tentei. Não pertenço a país nenhum. Meus documentos são antes equívocos que constatações. Não me defino nem mesmo como escritor, essa vagabunda profissão de não exercer nada além de delírios. Não que não me faltem delírios. Mas transformá-los em profissão exige disciplina, exige domá-los. De algum jeito, louco e inconsequente como todo o resto, rejeito submetê-los a tal atrocidade. Delírios domados já não são tão delirantes.

Mas o pior, é o mais assustador, é que delírios domados já não são capazes de encontrar sua própria verdade: curvaram-se à loucura que criou os moldes de sua dominação.

É essa a dor do parto: permanecer louco como único modo de não sucumbir à loucura dos outros.

Inevitável

Não consegui deixar de te amar sem deixar de amar.

quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Sombra

Quantas vezes a gente precisa dizer sim até ter coragem de dizer não?

Quantas vezes vamos sorrir até ter coragem de baixar o rosto?

Quantas vezes é preciso dizer eu te amo até entender que o amor não existe?

Eu te amo agora. Logo mais, não sei.

Eu não te amo mais. Te quero bem, mas não posso te amar.

Posso não concordar com seu desamor, mas darei até a vida pelo seu direito de não amar.

Quando o iluminismo vai iluminar também os sentimentos?

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Oitavo andar

Eu precisava dizer a ela o quão impróprio seria depositar sobre mim qualquer esperança de relacionamento mais duradouro. Não estou disposto a esticar meus compromissos além daquilo que consigo controlar, e no momento meus receios sobre mim mesmo impedem que eu controle com precisão mesmo os compromissos mais grosseiros da minha próxima semana. Olhei-a nos olhos. Ela me desejava. Isso era tão claro, tão evidente. Charme com olhar de lado e sorriso de canto dos olhos, um pouco exagerado até, a ponto de estragar um pouco o romantismo do tipo que prefiro, que é espontâneo e sem exageros, mas baixei a guarda do meu senso estético e deixei passar. Enquanto pensava sobre todas essas seriedades que aguardavam por serem ditas, tomei-a contra mim. Lembro-me dos meus amigos perguntando, no bar, na noite em que eu iria encontrá-la, mas e aí, qual é o perfil dela? E eu só respondia que ao que pude ver, era um perfil bem saliente. E era, era mesmo. Trouxe o tronco dela para colado ao meu. Aqueles seios me apertando. Apertava as costas dela, por vezes com força, por vezes correndo a ponta dos dedos sobre a espinha, de cima abaixo.

Olhava ela nos olhos e pensava, sério, não me ame. Não me deseje. Não amarre nenhum pedaço de sua felicidade à minha. E beijava. Beijava demoradamente. Beijava sabendo que não haveriam muitos beijos daquele pela frente. E por beijar assim, despertava nela o desejo de mais daqueles beijos. Traição da lógica. Inversão das percepções. Assim é. Ao meu ego jurarei até o fim dos dias que eu estava envolto em muitas dúvidas, tomado pela beleza daquele corpo que se desnudava diante de mim, quente, todo pronto, desejoso. Entretanto, aqui à noite, sozinho, eu sei que eu fui homem no péssimo sentido em que todos os homens, vez ou outra na vida, o são. Antes de mergulhar nela, mergulhei em meu presente e despi-me de toda responsabilidade sobre o curso das coisas. Comê-la e nada mais. Sentir as coxas dela batendo nas minhas, nos meus quadris. Lamber aquele corpo, cada pedacinho, ouvindo gemidos trêmulos, incontidos. Que importa, aí, o que acontece com sentimentos mais abstratos? Por acaso meus sofrimentos todos de tantas e tantas vezes em que me apaixonei não me autorizavam a assumir que as outras pessoas são também capazes de cuidar dos próprios sentimentos? Dos próprios sofrimentos? Das próprias esperanças descabidas?

As mulheres pagam umas pelo sofrimento causado pelas outras. Eu seria até hoje um homem perdidamente mergulhado em meu primeiro amor, não tivesse ela nunca me visto. Eu seria tão menos frio com o sentimentalismo alheio, não fosse aquela vadiazinha que me deixou sozinho com todos os meus sonhos, à beira do nada. Autopiedade? Ou empiricismo subjetivo? Ou estou sendo fraco em não superar meus traumas para permitir viver um presente de uma forma mais pura?

Sou o que sou... E enquanto puxava os quadris dela contra os meus, não pensava nisso. Pensava em demorar mais para gozar, porque estava bom. Pensava que eu podia puxá-la com mais força, porque ela estava gostando. Pensava em arranhar as costas dela, deixar marcas de que estive ali. Não pensei, em momento algum, no que ela sentiria, dias depois, sozinha, ao contemplar estas marcas no espelho.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019

We'll always have Paris

Eu ouvi sua voz. Ouvi sua voz com moldes de sono. Ouvi sua voz com contornos nítidos de alegria descontraída. Sei que pensamentos ruins lhe tomam o tempo de assalto nesses dias de distância de tudo e todos. Mas ouvir o som doce do seu acordar desperto e vívido me fez tão bem. Espero que o bem que aparentou lhe tenha sido legítimo também. Não dá pra atravessar o Atlântico a nado para ir conferir.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Chaplin

Você etá em uma festa e aparece um maluco dançando com você. Ele está sem camisa. Veste apenas uma bermuda malhada, pele de tigre, e chinelos. A festa é a fantasia, e isso dá algum perdão ao traje (ausência de traje?). Mas algum perdão não é perdão completo. Ele sorri e dança com você. Sorrisos são bons. Dançar é bom. Então tudo bem. Vocês se beijam. Tudo bem, beijos acontecem. Mas uma semana depois e lá está ele, no telefone. E depois na frente da sua casa. E depois na mesa do restaurante, à sua frente, perguntando por suas histórias e esmiuçando recantos da sua vida normalmente alheios a estranhos. Ele está menos mal vestido agora. O que, em perspectiva, faz até parecer que houve um progresso. Mas é natural que você esteja assustada. É natural que você dificulte as coisas. É natural que você não o queira assim tão perto tão de repente tão não sei pra quê. É natural que você não receba nunca a cartinha que ele lhe escreveu no meio da madrugada nem o conjunto de cordas de violão que ele buscou pelas lojas da cidade para reavivar suas músicas.