quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Acordes

Vou pegar o carro do meu pai. Escondido. Vou lá na casa do Guilherme. A galera tá falando que eu canto bem, deve ser verdade. Já pensou se dá certo? Viver de música. Nada de ir pra faculdade... A faculdade deve ser uma versão piorada da escola. Na escola, pelo menos, as pessoas acreditam que há algum futuro pela frente. Na faculdade já se sabe que nada vai dar em porra nenhuma, daí a galera só quer saber de ficar no bar e de empurrar tudo com a barriga. Esforçam-se, aliás, em desenvolver uma barriga melhor para uma missão tão nobre.

E se meu pai vier atrás de mim? E se eu bater o carro? E se a polícia me parar?

Mas a Cris vai estar lá quando eu chegar. Ela vai ver eu chegando dirigindo o próprio carro. Tá certo que vai ter um monte de playboy com carro rebaixado, turbo, coisa e tal. Mas eles já trabalham. São maiores. O meu carro pode ser zoado, pode nem ser meu, mas tem toda essa ousadia por trás. Quem pode competir com isso?

E se eu estiver jogando meu tempo fora? E se a vida não for nada além de estudar, trabalhar e pagar boletos entre uma fralda e outra? Talvez eu esteja jogando meu tempo fora.Talvez eu esteja alimentando ilusões. Talvez nenhuma dessas pessoas valha a pena.

Muitas perguntas. E não consegui responder a nenhuma delas em meus devaneios do Jabaquara ao Tatuapé.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Decidida

Unhas caprichadas. Óculos de armação colorida, porém discreta, combinando com o restante das roupas. Feminina. E feminista. Até não poder mais. Mas com princípios, com a cabeça funcionando. Nada de querer queimar todos os homens na fogueira e querer que as mulheres assumam o comando de tudo como se tratasse de uma guerra definitiva. Abdicou do conforto do dinheiro paterno e foi viver sozinha. A renda mensal é pequena, mas alimenta o aluguel, as comidas, os livros, os cachorros e a gasolina. Os amigos que a vida não lhe trouxe, foi buscar por conta própria. Passa os dias da semana em um escritório driblando ordens mal dadas e desafios mal dimensionados. Chega a seus resultados como um náufrago que faz milagre para chegar à última ilha possível. Triunfa. Sua cabeça só tem futuros: cursos, viagens, livros por ler, risadas novas, encontros com os amigos, encontros de motoqueiros, shows de rock, fotos e poesias. Não há lugar para passados, rancores e solidões. Acredita na humanidade embora a humanidade a trate como uma aberração errada. Por que não ir logo para um emprego em que se ganha mais? Por que não casar logo e cuidar da casa sob o salário amordaçante do marido? Por que não ter filhos? Por que não parar de ler esses livros? Por que não aquietar esse feminismo que não muda o mundo e irrita os amigos? Ela sabe o que quer. Ela sabe quem ela é.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Paralelos

Estou em uma livraria. Sentado em uma das mesinhas do café, me ocupo em escrever um livro.

Penso que seria ridículo ir a um açougue matar um boi, coisa que deve sempre ser feita em outro lugar.

Sou ridículo?

Quesões imobiliárias

Há um tempo havia ali uma estante estilo futurista, para a época. Coisas que os anos setenta sonhavam para o novo milênio. E muitos enfeites de plástico, cores vivas, espíritos alegres. Há hoje uma cadeira de perna solta, mal pregada. Poeira acumulada nos cantos, dessas que se pode juntar aos ponhados com a mão mesmo. Um pó branco se acumulando nas quinas: pintura da parede que vai descascando. A parede não quer mais esperar por novas alegrias e se está indo embora.

No quintal havia um pé de limão, chão de terra e cheiro de vida. Crianças brincando com seus brinquedos simples, madeiras, bolinhas e carrinhos. Alheias ao preço das coisas e mergulhadas no valor daquele momento. Hoje só há ali o azedo ácido do vazio. Tudo é cimento. Onde antes era o jardim, terra viva, cimento. Onde antes estava o pé de limão, cimento. Onde antes corriam as crianças coloridas de sorrisos e gargalhadas, cimento. A construção retirou o aspecto rústico daquele cantinho de cidade que mais parecia um lar de caipiras. Está tudo mais urbano: mais quadrado, mais cinza, mais morto.

Pelas bandas de cá um metro quadrado agora vale milhares de reais. Talvez vendam a casa. Talvez usem o dinheiro para comprar outro lugar. Um lugar mais alegre. Que imóvel vem com crianças e alegrias?

As torneiras pingam. O teto desaba pedacinhos minúsculos por dia. A pintura descolori e se esvai em poeiras, poeiras que se misturam aos lixos não varridos de outros cantos, trazidos pelos ventos, que se acumulam em todas as frestas. Elas ainda vivem ali. O irmão mais velho casou. Os filhos casaram. O marido de uma foi embora e a outra nunca casou mesmo.

Olhando bem, a casa continuava fielmente fazendo sua parte. Continuava fielmente ecoando a alma de seus habitantes. Uma pena que agora tudo o que havia por ecoar era este frio vazio e empoeirado de vidas que não se riem juntas...

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Tio Thobias

Meu tio Thobias é meio careca. Não sei se por algum particular da genética ou porque os cabelos lhe vão fugindo, angustiados, em busca de algo melhor. Quando jovem adorava histórias de ficção. Isaac Asimov, Perry Rhodan, esses mundos imaginários. Logo cedo na vida os namoricos às escondidas trouxeram o primeiro filho e o casamento. E a responsabilidade de trabalhar. E os tempos livros eram emoldurados de condenações:
- Larga esses livros, Thobias!
Convenceu-se. Largou os livros. Cuidava de instalar prateleiras novas, retirar o bolor do teto do banheiro, arrumar a goteira na torneira da pia. Já o fazia antes, mas agora não tinha suspeitas de jogar tempo fora. Suas distrações descobriram os bares e as cervejas. Passando o tempo de um jeito tradicional não iria despertar suspeitas. Em momentos de discussão, ainda era incentivado:
- Afe... por que não vai lá pro bar com seus amigos?
E ia...
- É gente, estou me sentindo igual naquela história em que um astronauta vai sozinho a um planeta que ninguém conhecia, sabe?
- Ai ai Thobias, você nem tá bêbado ainda e já vem com essas suas histórias? Manda mais uma aí e vem jogar mais um truco com a gente!
E assim suas paixões se diluiram na normalidade. Trabalhou na prefeitura. Trabalhou como eletricista. Trabalhou como carregador. Há alguns anos trabalha de motorista de um carro funerário. Talvez seja sua desesperada tentativa de esconder, por contraste, que quem está morto é ele.

domingo, 25 de agosto de 2013

Sour Times

Eu adoro ouvir Portishead... Especialmente de madrugada. Especialmente em madrugadas chuvosas, como essa... E deixo rolar, deixo tocando. Ainda bem que estou sozinho em casa, faz um bem danado a essa música. Ainda tem os copos de vinho espalhados pela sala, mas já foram todos embora. E estou no limiar de uma ressaca. Tudo, tudo para tornar a música perfeita.

Me jogo sobre o sofá mas entendo que não combina... Vai rolando Strangers, It could be sweet, e eu entendo que o sofá ofende a música... E me levanto e vou para o chão, fico sentado num canto, olhando a penumbra da luz da rua invadindo a sala e um ou outro flash de relâmpago brilhando em tudo. Perfeito, perfeito!

sábado, 24 de agosto de 2013

Duna

Se eu fizer da minha falta de tema meu tema oficial, em primeiro lugar passarei a ter uma linha de trabalho definida. Porém, inescapavelmente, cairei também em contradição. Eu até posso ser um escritor fajuto sem assunto, mas quando começo a me dar conta disso, corro o risco de arquitetar minha auto-destruição. O que fazer? Desistir de escrever só para curto-circuitar o cérebro no nada? Escolher um assunto, afinal? Se toda mente inquieta do mundo se desse ao trabalho de verbalizar suas inquietudes sem conteúdo, quem se prestaria a ler tudo isso? Já tem muita gente pensando sobre tudo, outras vivendo coisas diferentes, em lugares diferentes e de jeitos diferentes. Bandidos, gênios, heróis, safados. Tem de tudo lá fora. Não posso só sentar aqui e aniquilar-me num simples Nada que observa? Posso... não posso?

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Todos os dias

Não gosto da invasão de minhas vontades, gosto da paz do meu silêncio ou de incensura nos meus barulhos... Quando sou? Sou nos silêncios impostos dos convívios? Ou finalmente sou apenas na insignificância obscura do completo isolamento com toda a liberdade que lhe é peculiar? Quando não sabem de mim, sinto ser o que me imagino. Quando observam todos de perto, sinto ser apenas em segredo, sem que me saibam. Sem que seja de verdade. Misturado aos outros, facilmente se é mais reflexo que luz. Ou talvez seja só impressão. Talvez todos brilhem e eu apenas não goste da idéia de ser também só mais um. E o que seria mais humano?

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Curto-circuito

Eu não acredito nesse papinho barato de exotéricos exóticos místicistas que saem por aí falando de "energia". Energia positiva dali, negativa de lá... Eles não sabem calcular a energia cinética de uma pedra movendo-se a um metro por segundo e muitas vezes, nem mesmo, avaliar corretamente uma conta de luz. Pergunte a eles o que é um "quilowatt-hora"... Então, sem nem precisar discutir a viabilidade filosófica de algum conceito de realidade exótica, posso dispensá-los pura e simplesmente por estarem fazendo um péssimo uso do vocabulário disponível.

Mas embora a fenomenologia que professam esteja errada, devo admitir que ao menos alguns dos fenômeos que buscam explicar de fato ocorrem. Dizem esses místicos que há pessoas por aí que sugam nossa energia. Não, não há pessoas que sugam nossa energia. Mas há, de fato, pessoas que colaboram para que nosso ânimo se esvaia. Há todas as combinações possíveis... Duas pessoas podem fazer um bem danado uma a outra. Qualquer uma delas pode se sentir ótima com o relacionamento que têm ao passo que à outra este é extremamente danoso. E pode ocorrer também que a ambas nada de bom se manifeste.

Duas possibilidades são muito boas: pessoas que se fazem muito bem e pessoas que, mutuamente, se fazem muito mal. Sim, este último caso também é bom, pois em pouco tempo ambos reconhecerão que não há que se misturarem e pronto, problema resolvido, mutuo acordo, sem traumas. Mas duas combinações são potencialmente catastróficas... Sim, pois quando uma pessoa faz um mal danado a outra, mas essa outra faz um bem danado à primeira, tem-se uma forte assimetria que induz uma espécie de instabilidade dinâmica: se a coisa toda já era ruim inicialmente, tende com o tempo só a agravar-se.

Não preciso apelar a energia negativa, vibrações do astral ou sei lá mais o quê. Esse fenômeno do transfluxo de ânimos deve de alguma forma assentar-se sobre explicações físico-psicológicas que não impliquem em abalo nenhum à ciência moderna. Mas fica a conclusão de que devemos reconhecer o que uma pessoa recém-conhecida é pra gente para que possamos administrar tudo da melhor forma possível.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

E daí

Só se sabe experimentando.

A mente engana. Conhecer de ouvir falar é conhecer histórias mas é diferente de conhecer as coisas historiadas.

Conhecer não tem palavras. Tem tato, calor, cor e sabor.

Toda opinião possível mora entre amar e odiar.

Eu admito a maior parte do tempo ser alheio às coisas, ou as coisas serem alheias a mim. As coisas e os assuntos. Que mania besta das pessoas essa de inventar uma opinião sobre tudo. Nisso eu opino: acho besta. Deixo o resto do mundo correr em paz e dou atenção às quatro ou cinco coisas que importam na minha vida. O resto não inoportuno e espero que me deixe em recíproca paz.

Posso até discutir a fome das criancinhas da África, mas depois da sobremesa, por favor. E por que é errado?

É errado e frio deleitar-se num farto churrasco e guloseimosas sobremesas enquanto se pensa na fome mundial, mas não o é nos dias comuns enquanto se pensa em outra coisa? A indiferença é uma falha moral sem crise de consciência, e como paz de consciência é algo muito difícil de se conseguir por outros meios, a indiferença se infiltra em todos os poros sociais como uma anestesia se infiltra nas veias do nervo canceroso.

E é assim que vi o mundo quando saí pra andar de bicicleta à noite. E não achei errado e nem certo. Não voltei pra casa nem mais triste nem menos feliz. Voltei só mais cansado de pedalar, tomei um gole fresco d'água. Só tinha visto que o mundo é assim. Só, tinha visto que o mundo é assim.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Camisa de força, camisa de carinhos

As camisas de força assustam os loucos.

Mas as forças não assustam você também?

E se fossem camisas de carinhos, abraços e sussurros?

Quem seria louco de fugir?

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Mudo - 2

Sou assim, mudo.
Mas se você deixar,
Ainda mudo!

domingo, 18 de agosto de 2013

Mudo

A gente às vezes é plano e às vezes tem tantos lados. Arestas. Cantos. Fundos e rasos. E eu me perco. Não faço a menor idéia de onde estou. De qual dentro de mim que sou. Hoje foi assim. Hoje você falava, falava, falava. E eu quieto. E eu me procurando. Covardia. Covardia? Foi o que foi. Foi como aconteceu. Guardei coisas que não sei onde estão. Não sei onde foram parar. Procurei, procurei procurei procurei. Só que não achei.

sábado, 17 de agosto de 2013

Frio

Se um dia eu comprar uma puta, vai ser no inverno. No frio as putas, mais vestidas, são muito mais mulheres.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Modéstia egocêntrica

Me orbito

Me gravito

Se distrair

Me óbito

Nem vi

Me sinto

Me sirvo

Se distrair

Me sento

E olho

E nem vi

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

M

Você, com seus costumeiros sorrisos esbanjados e olhares admirados e admiráveis, contando feliz...

Contando que ele é um cara tão inteligente, viajado, conhece o mundo inteiro...

E eu, introspectivo, pensando: "é, eu só te amo..."

Você contando que ele é engraçado, um humor refinadíssimo, foi super divertido jantar com ele outro dia...

E eu, olhando pro alto meio de canto, pensando "é, eu só te amo".

Você contando que ele pagou a conta, que só sua parte passou fácil dos oitenta reais, mas nem sabe precisar quanto, ele não deixou que você visse...

E eu meditando sobre a leveza etérea da minha algibeira: "é, eu só te amo".

Você contando como era repulsiva às primeiras investidas dele. Ele namorava, que coisa horrível! Mas declarava todo amor a você, terminou o namoro. Insistiu, te contrariou, brigou. E você começou a considerar ceder, toda encantada.

Eu, mergulhado na estranheza desumana de tanto respeito que lhe tenho, considero: "é, eu só te amo".

Eu te amo, é só. Vá, viva e seja feliz. Vá!

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Virtual

Ele endoidou. Pirou. Não queria mais a própria vida. Foi na internet e fez outra. Hoje em dia essas coisas são quase de graça. Surpresa: o outro eu era mais querido que ele próprio, vejam só! Eis que se revelam por meio de ironias saborosas essas verdades fundamentais: nossas espontaneidades cativam muito mais que nossas vergonhas. Assustado, deletou-se de si.

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Conexões

Tem quem esteja discutindo esse último assassinato horrendo, que não sai da TV. Tem quem esteja preocupado com os prazos do trabalho porque a semana corre e logo é sexta-feira e logo o chefe vai conferir se está tudo em dia. Tem quem esteja neste exato momento indo para o hospital, mergulhado em aflições, pelo parente que está com a vida em risco.

E o que importa tudo isso? Eu faço sempre esta pergunta: o que importa? Não deveria me importar, deveria? Minha própria vida. Deveria me importar apenas com minha própria vida.

Os lugares para onde vou. As pessoas com quem falo. As histórias que eu escuto. O que seria de tudo isso se não fosse o resto do mundo? O que seria da minha vida se não fossem todas as outras coisas com que nem me importo? Essas coisas das quais nem sei... coisas fundamentais.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Referências

Você é um pai pra mim. Você confiou em mim quando eu era criança e ninguém mais acreditava em nada de nada de mim. Você me dava responsabilidades. Deixava a chave de casa comigo. Deixava eu preparar o barco para as viagens. Falava para os outros de mim com orgulho: o agregado da família, inteligente, adulto.

Era algo tão intenso que aqueles que queriam tirar sarro da situação me chamavam com voz irônica de "o menino prodígio", uma tentativa de exagerar um tratamento que era bom.

Hoje não nos vemos mais. Meses sem nos falarmos.

Toda vez que eu visito, a família me recebe muito bem.

Mas algo está quebrado. Talvez algo sempre tenha estado assim: quebrado.

Eu segui a carreira em que você acreditava. Me tornei médico, como você. Nada de dedicar a vida aos barcos. Ou ao cinema. Ou à filosofia. A mesma carreira.

Ontem foi dia dos pais. Liguei para meu pai. Não você, meu pai mesmo. Sei tão pouco da vida dele. Não liguei para você. Você não é meu pai. Você é só a pessoa que me criou e que me incentivou a acreditar em mim. Mas não teve tempo de entender meus sonhos. Talvez faltou me conhecer um pouco antes. Um pouco mais. Não sei se sou uma espécie de decepção ou de fracasso por querer largar a carreira.

Desculpe eu não entender das formas apropriadas para dizer "obrigado". Tenho muito a agradecer, eu sei. Obrigado.

Mas tem caminhos na minha vida que eu não posso aprender com você. Nem com meu pai oficial. Nem com amigos. Nem com ninguém mais.

domingo, 11 de agosto de 2013

Inertiae

- Você sabe que a gente pensa muito diferente sobre muitas coisas, não é? Eu só fico curioso de saber porque você gosta de conversar comigo. Eu gosto de conversar com você porque sou exposto constantemente a perguntas e pontos de vista que normalmente eu não desenvolveria sozinho, e convicções que eu dava como certas são facilmente colocadas em xeque. Mas e você... por que gosta de conversar comigo?

- Eu? Não preciso estar interessada num assunto em particular ou numa coisa ou outra que você fala. Eu converso com você... porque você é você!

sábado, 10 de agosto de 2013

Dionísio

Dionísio. Deus das festas, do vinho, das alegrias. Personificação da irresponsabilidade, da embriaguês.

Dionísio. Colega de trabalho de um escritório em que trabalhei. Magrinho, fala concentrada, de voz baixa. Dedicado, pontual, inteligente.

Que semelhanças e diferenças há entre um Dionísio e outro? O vinho, as festas e tudo o mais... isso remete a irresponsabilidades e excessos. Um espírito inconseqüente. À primeira vista o Dionísio com quem trabalhei era o oposto disso tudo. Responsável pela parte mais complicada dos softwares da empresa, viviam pedindo atualizações e alterações a ele.

- Dionísio, pode inserir este campo no relatório do banco de dados?

- Dionísio, pode descobrir quantos clientes atendem estes critérios?

- Dionísio, pode bloquear a liberação de procedimento quando estas informações cruzadas acontecerem?

Ele ouvia as solicitações. Fazia as perguntas técnicas pertinentes. E desaparecia. Imaginávamos Dionísio como o nerd realizado. Ele e o computador em uma história de amor em plena lua de mel. Ele e os manuais de linguagens de programação, aqueles livros gigantes que ninguém lê. Ninguém, só o Dionísio.

Aí o Dionísio sumiu. Na verdade, levamos alguns dias para perceber que ele tinha sumido. Porque ninguém conversava com ele. Ninguém almoçava com ele. Ninguém dava bom dia e ninguém dava tchau, até amanhã, para o Dionísio. Só falavam com ele quando havia alguma solicitação. Assim, só deram pela falta dele quando surgiu uma nova solicitação e ninguém encontrava o Dionísio em canto nenhum. Telefonaram para a casa dele (depois do enorme parto que foi descobrir qual era o telefone da casa do Dionísio).

- É a esposa dele... o Dionísio faleceu semana passada.. teve um ataque do coração fulminante...

Uma vida engrenada como uma peça de relógio. Dedicada e concentrada como um chip de computador. Uma vida de abstinência de contato social, de distrações, de risadas, de conversas no cantinho do café. Uma vida dedicada a estudo e trabalho.

Dionísio: excesso, inconseqüência, vício e irresponsabilidade. No final das contas, os Dionísios da mitologia e o real não eram assim tão diferentes. Apenas sucede que os vícios do Dionísio com quem trabalhei eram bem mais chatos.

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Seu Miro

Passo após passo, desço a rua para o trabalho. Já me sinto gordo, lanche cheio de queijo derretido e café com leite explodindo de açúcar num copo gigante: freqüento padarias do bairro.

Passo pelo portão da empresa, crachá magnético na catraca. O sistema eletrônico me dá as boas vindas.

As ruas internas são de paralelepípedo. Dessas que, se deixar, nascem grama no meio. Dessas que lembram passear por cidades litorâneas quando se era criança e os asfaltos ainda não tinham descido a serra do mar.

Lá está ele. Um senhor magro, fininho. Macacão azul, mãos enrugadas. Vassoura limpando o chão, recolhendo as folhas que teimam em cair sempre das árvores. Vez ou outra, alguma pequena foice a lapidar as gramas que crescem aqui e ali. Seu Miro. Vou me aproximando e o cumprimento.

- Bom dia Seu Miro, tudo bem?

- Opa! Só alegria? Tudo na paz! Tudo na paz...

Sorri um sorriso largo. Mal cabe em seu pequeno rosto. Olhar sorridente de quem sente tudo perfeito.

Sigo em frente com a sensação de que Seu Miro não nasceu nunca e nunca vai morrer. E aí paro pra pensar e nem mesmo a eternidade toda me justifica tamanha serenidade e paz de espírito. Só alegria!

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Topografia

- Às vezes parece que existe uma muralha dentro do seu coração. Dá pra ir até ali. Mas dali em diante não dá pra passar de jeito nenhum.

É verdade. Agora eu também acho que é verdade.

E nem sei dizer de qual lado da muralha eu estou.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Emergência!

Acabou o pão.

Fui lá comprar.

Logo volto.

Beijo!

terça-feira, 6 de agosto de 2013

Errata filosófica

Aí os filósofos e os autores de livrinhos para criancinhas inventam todos que a questão fundamental é:

- De onde viemos?

Desde quando essa é a questão fundamental? O que ela tem a ver com o preço do dólar? Ou com minha vida em família? Ou com minha escolha de emprego? Ou com a programação da televisão? E se soubéssemos a resposta.... "Viemos... viemos dali, ó!". Isso mudaria algo? Uma questão fundamental deve levar a uma resposta fundamental, e fundamental é aquilo cuja ausência ou presença são sempre relevantes. Água é fundamental para a vida. Sem água, a vida acaba.

Eu, que não tenho moral nenhuma, nem entre filósofos nem muito menos entre autores de livrinhos para criancinhas, ainda assim tomo um espaço de intromissão aqui para esta correção importante. A questão fundamental, para todos nós, e diante de todas as questões sobre as quais valha a pena se deparar, é:

- E daí?

Posso escolher ser médico ou advogado. E daí?

Cientistas podem estudar a cura do câncer ou a produtividade da colheita. E daí?

A televisão pode mostrar bundas grandes ou te apresentar grandes idéias. E daí?

Amores podem dar certo ou não. E daí?

Ou viemos do Big Bang ou somos a ilusão de um alienígena sedado porque bateu o disco voador e está tendo devaneios. E dai?

Podemos ser felizes ou tristes.

E daí?

Dos mistérios

Quando é que nasce uma bela pintura?

É no instante da última pincelada?

Ou no instante em que recebe o primeiro olhar do público?

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Não me diga

Então ele inventou que era depressão, porque era o nome mais cômodo para dar para aquela vagabundagem toda.

E então ele disse que eram dúvidas aqueles medos todos emoldurados em preguiça. Medo de trabalhar. Preguiça de sair de casa. Medo de ser outra pessoa, de ser adulto. Medo de deixar o tempo passar ainda que visse que passava mesmo assim. "Fiz minha parte para que não passasse. E se ainda assim passa, não é culpa minha." Não era só um irresponsável. Era um alguém que não queria se responsabilizar. Por nada, nadinha. Medo de amar, medo de ter. Medo de ganhar. Medo de aprender.

Os livros são melhores nas estantes do que em suas mãos, em suas leituras. Os folheia e aí joga lá de volta. Em seus lugares. Arrumados, organizados, novos e não lidos.

Ele inventou que era assim mesmo bem agora que podia ser do jeito que quisesse eventualmente de todos os jeitos.

Era viciado em sonhar.

Sonhar era a melhor coisa que já experimentara, dentre tantas outras.

E quem poderia culpá-lo? E a que tribunal se leva um caso assim?

Sonhar era sempre um delicioso amanhã talvez. Sonhar com algo que quem sabe fosse amanhã era uma fé quase concreta. Esticava-se o dedo e quase podia tocá-la, ali logo depois de uns poucos tiques do relógio no outro quadrinho do calendário.

Um sonhador. Que feridas enormes na sua vida todas as coisas que são. Que invadem o tempo presente.

Traumas? Um fraco? Incapaz de desassociar os fracassos de determinadas experiências das possibilidades de fracasso de outras?

Traumatizado seria se fosse apenas a incapacidade de se aproximar de histórias potencialmente felizes por conta da cegueira que os medos antigos lhe produzem. Mas não é isso. Efetivamente, histórias felizes lhe abraçam. Quentes, completas, envolventes, profundas e inusitadas. Felicidades acima das felicidades dos cidadãos comuns. Mas durava pouco lá dentro. Lá dentro morria logo esse desfrutar. Um arqueólogo que nunca chegava a abrir o sarcófago porque se desesperava em procurar outra tumba. Um piloto que nunca cruzava os muros de um aeroporto porque embarcava direto em outro avião, desesperado por pilotar mais. Um pescador cujo barco afundou de tantos peixes acumulados no convés - mas era irresistível continuar ali pescando mais e mais. Um desesperado. Um desesperado incorrigível. Sem controle de si. Sem controle de nada.

E foi inventar que era depressão...

domingo, 4 de agosto de 2013

Aconchego

Tinha uma poesia passando frio na rua, à noite. Eu a vi e a cena comoveu meu coração. Linda, linda. A trouxe para casa. Fiz chocolate quente, dei-lhe um banho. Nos deitamos juntos, e a noite se transformou em versos com rima e tudo.

sábado, 3 de agosto de 2013

Angra

Ficamos os dois ali, à beira da vida, deixando tudo passar. Abraçados, quentes. Te sorri três futuros e você me olhou: um presente.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Ano novo

Imagine um colombiano, podemos chamá-lo de Pablo. Imagine uma brasileira que vai passar o ano novo na Colômbia. Chame-a Melina. Um dia juntos. Olhares mãos beijos cama suores saudades. Ela agora aqui, ele ainda lá. Um namoro de seis anos, mas não entre eles. Entre o colombiano e outra nativa lá do mundo da Shakira. E agora? E agora que prometem se fugirem junto deste mundo, destas vidas que levam, para uma nova vida, só deles. Colômbia, não podia dar outra: estão entorpecidos.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Indícios

Eu adoro os oprimidos.

Os que sofrem.

São um recurso infinito para aqueles que precisam de uma promoção fácil.

O político que aperta a mão do favelado.

E depois manda tratores para derrubarem a favela.

O que importa é o quanto circulará cada foto.

O que importa é que o político não estará presente no dia da demolição.

O padre que reza pelos oprimidos.

E a paz quieta e serena do ouro do Vaticano.

Eu adoro os oprimidos.

Sem eles, nossa hipocrisia não seria tão óbvia.