domingo, 22 de julho de 2018

Sombra


Ela lia. Chegava em casa, o marido já descansando. A bagunça reproduzia-se à volta como no dia anterior. Na semana anterior. Como fora em toda a eternidade, antes do mundo ser feito.

Ele estava em seu escritório, que ficava dentro do próprio quarto. A porta trancada, e ele de cueca apenas. Não que o conforto dessa pouca vestimenta tivesse algum atrativo especial, mas gostava de imaginar que estava se comportando como a maioria das pessoas jamais se comportaria. Foi para isso também que tomou um copo de conhaque logo depois da janta, em plena quarta-feira. No mais, o álcool lhe era extremamente incômodo à garganta.

Ela estava com o coração palpitante, esperando que o computador se fizesse em pleno funcionamento. Internet. Blogs. Os textos dele. Ela lia, lia... Do começo ao fim. Seriam pra ela? Estaria ele pensando nela? A incerteza é cruel. Às vezes penso que se Deus desse provas concretas de sua existência por aí o número de fiéis diminuiria ao invés de aumentar. A dúvida insolúvel libera a mente a ir de encontro aos seus anseios mais profundos, a moldar a realidade exterior tal como sua essência mais escondida. Ele a amava, era a única explicação.

Ele brincava com palavras com um misto de alegria e tristeza. Queria ser poeta. Queria ser livre. Queria ser inédito. Mas frustrava-se com as demonstrações irrefutáveis de sua pequenez. Ainda assim, buscava o prazer de criar, prazer infantil desconexo de julgamentos de qualidade. Escrevia, escrevia... Imaginava coisas, e escrevia.

Quem diria que essas vidas viriam a se misturar? Quem diria que essas solidões se acolheriam por alguns dias, desesperadas?

E depois nunca mais se souberam.

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