segunda-feira, 6 de abril de 2015

Injustiças

Uma história das mais escabrosas. Trocam-se aqui os nomes mas permanecem os fatos e as indigestões morais. Marcos era um primo meu desses que a gente nunca viu exatamente como primo. Foi sempre um adulto como os outros. Sua maior proximidade em minhas memórias deve-se ao seu espírito e não aos ramos de parentesco. Marcos era alegre. Contava piadas. Contava histórias. Vinte e tantos anos mais velho e ainda nos dava atenção. Coisa bem atípica para qualquer adulto. Quando estávamos em férias na fazenda ele andava conosco na noite. Tinha lições sobre os matos e bichos para dividir. E histórias de mistérios e terrores para contar. Seres vindos do espaço. Roedores que se transformavam em lobos, cobras e gente. Pássaros que espionavam segredos. Espíritos que perambulavam entre os galhos, vindos do sol e da lua.

Está morto. Tem já um tempo que fui ao seu enterro. Era um certo Berro d'Água como o da literatura. Cheio de amigos vagabundos. Odiado de certo modo secreto pela família, que desejava apenas alguém normal, e amado por todos os demais a quem nunca faltou com atenção, sorrisos e risos. Até aí, nada de anormalidade. A morte acontece. Muitos morreram hoje, muitos mais morrerão amanhã e um dia eu morrerei também, assim como você. E outros continuarão a fazê-lo por todo o sempre.

O que descobri nas conversas pequenas desses dias, nas entranhas da família, é que o falecimento não foi desses mais naturais como imaginávamos. Se bem que, naquela idade, sem um câncer aqui ou ali e sem nenhum atropelamento ou outro acidente trágico como justificativa, aquela morte nunca fora exatamente natural. Marcos fora achado no chão do banheiro. Convulsava. A mãe tentou socorro mas a vida já se tinha ido, restando apenas falecidos movimentos de um corpo que se desativava. Uma besteira. Foi unânime que alguma besteira ele tinha feito. Exagerou no álcool? Teria mexido com algo ainda mais perigoso, como cocaína ou uma dessas outras drogas que a gente nem sequer sabe o nome direito?

Foi o que todos acreditaram. Marcos havia exagerado em alguma droga. Uma recaída em suas explorações mais ousadas. Vítima da própria curiosidade e descontrole de seus anseios. Foi a versão em que acreditei também. Até que, apra minha surpresa, no café daquela tarde, e a voz baixa como se os vizinhos de repente pudessem ter algo que ver com aquelas segredâncias, falavam do Alcir. O irmão mais novo. O irmão normal. O irmão de vida correta, nos trilhos. Alcir tinha sua família. Sua casa. Seu carro. Visitava os pais para jantares de domingo. Tinha seu emprego. Carteira assinada e tudo. Andava de camisa e tinha o cabelo penteado. Não saberia dizer o nome de mais de duas ou três marcas de pinga, muito menos reconhecer-lhes o gosto. Pertencia a um universo distinto dos mundos de Marcos. Um universo complementar e em nada coincidente. Partilhavam o parentesco e a infância em comum. E nada mais.

E diziam, ali entre cafés e biscoitos, que talvez Alcir tivesse que ver com aquilo. Duvidei dessas escuras conjecturas, mas outra morte recente na família, a do pai dos dois irmãos, parecia trazer maiores suspeitas. Alcir visitava o pai com frequencia no hospital e todos viam ali a marca de um filho perfeito e amoroso. Até que uma tia encontrou vidros de remédio descartados no lixo, ainda cheios, e ao tentar conversa ouviu profundas ameaças. As veias do pesçoco estufadas e as mãos de Alcir a estrangular uma projeção imaginária diante de si: "Você fique quieta e cuide da sua vida, isso aqui não é com você... Eu mato você se tentar mexer na minha vida, entendeu?".

Mal pude acreditar no que ouvia. Alcir nunca fora brincalhão e sorridente como Marcos. Mas aquele tipo de ameaça, para essas insuspeitas circunstâncias, estava além de qualquer normalidade aceitável. Seria tudo por conta de heranças? Multiplicar nomes em escrituras? Cogitaram fazer algo. Era coisa para polícia. Uma pessoa maquiavélica e calculista assim, que teria dado cabo do pai e do irmão, seria capaz de tudo para atingir seu objetivos. Talvez não fosse caso "apenas" de objetivos gananciosos mas, ainda pior, houvesse ali também o motor de uma aleatória psicopatia. Que perigo ele representaria para mulher e filhos? Para estranhos da casa ao lado? Uma pessoa assim assustadora deveria apodrecer na cadeia, não havia outra opção.

Mas como iriam provar alguma coisa? E se fosse feita uma acusação dessas vazias, baseadas na memória dos outros e nada mais, sabiam que nada iria acontecer. Para a justiça você é inocente até provar o contrário, a não ser que seja extremamente pobre ou que alguém muito importante precise de um laranja infeliz. Muita agitação fizeram aquelas revelações. E por fim decidiram que eram vítimas também, vítimas da falta de provas. Só poderiam ficar longe desse monstro e observar se alguma morte nova surgisse. Torcer por um deslize com as evidências da próxima vez. Deslize que nunca aconteceria.

Nenhum comentário: