sábado, 30 de junho de 2018

Pai

Eu tenho tantas mágoas que eu não tinha antes. Tantas coisas que me perseguem em meus silêncios que tempos atrás eram vultos distantes e abstratos. Como foi que isso aconteceu? Certas reviravoltas dão-se lentamente, sem estardalhaços, e a gente nem percebe. E a gente nem se protege. Tenho raiva de pessoas que eu deveria amar. E deixo me corroer essa Consciência toda que morre de raiva por eu ter raiva. E como se arruma isso? Eu não sei... Ninguém sabe. Alguém sabe? Alguém me conta? Eu tenho escuros que antes eram claros. E meus silêncios não pensam as mesmas coisas à toa, inocentes. Tantos pensamentos ácidos que ulcerizam minha solidão. Estou mal. As pessoas ficam mal às vezes, é normal, não é? Estou mal...

Meu pai aparece depois de meses distantes, depois de um infinito de tempo sem saber da minha vida, depois de me deixar mergulhado na casa cheia de problemas da qual ele fugiu em busca de conforto. E parece querer saber da minha vida. Da minha vida amorosa, até...

- E o coraçãozinho, como vai?

E o seu, hein pai? Como vai O SEU? Está feliz por viver ao lado de quem não ama, longe dos filhos, e sem a mínima coragem de encarar um segundo divórcio? Está feliz por se entregar à crença de que já é velho e deixar sua vida parar? Está feliz por jogar todos seus sonhos na gaveta, trancá-la e jogar a chave fora? Velho com sessenta e um anos... Conheci tanta gente mais velha que era mais nova... Quero ficar longe do meu pai antes que eu aprenda algo desse mal exemplo. Será que nesse meu mal humor todo já não estou sucumbindo um pouco também?

Será que minha sede de caos tem a ver com tudo isso? Será que meu desespero por fugir de uma rotina previsível, meu amor a qualquer coisa que apareça de última hora e não tenha razão de ser, tenha a ver com essa aversão ao curso normal das coisas? Quem sabe eu não engano a vida, ela pensa que me leva pra lá e eu corro pra cá, às escondidas quase... Quem sabe?

É possível enganar a vida?

sexta-feira, 29 de junho de 2018

Roubos

Fizemos o exame de DNA. Não, o filho não era meu. É claro que eu sabia que não era meu. Eu nunca tinha dormido com a Clara. Mas como convencer minha mulher disso? Como convencer os amigos dela? Os meus amigos? Os meus parentes? Os boatos se espalharam como fogo. Como uma gripe. Como uma peste. Agora o exame de DNA não serve para nada. Percebo que não adianta de nada. Serve apenas para a justiça. Apenas para o processo do divórcio. Por mim, ela que enfiasse a casa toda no rabo já que quer tanto assim. Não é apenas a casa que construí em toda a minha vida. Aqui, nesta cidade, eu tinha os amigos que havia construído durante a vida toda. Eu tinha meus parentes a quem busquei dar atenção e tratar bem e ajudar, durante toda a vida. Aqui eu tinha construído uma história. Uma história em torno de mim. Isso ela destruiu também. Arrancou de mim. O exame de DNA, com inutilidade patética de qualquer verdade, não conseguiu me devolver nada.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Virtual


Ele endoidou. Pirou. Não queria mais a própria vida. Foi na internet e fez outra. Hoje em dia essas coisas são quase de graça. Surpresa: o outro eu era mais querido que ele próprio, vejam só! Eis que se revelam por meio de ironias saborosas essas verdades fundamentais: nossas espontaneidades cativam muito mais que nossas vergonhas. Assustado, deletou-se de si.

quarta-feira, 27 de junho de 2018

Das compreensões fundamentais


O interesse que temos nos outros é um egoísmo. Sempre um egoísmo. Esse desespero para que as maneiras, gostos e julgamentos alheios se adequem aos nossos. Essa carência que vê no desvio da atenção alheia um crime, uma falta. É um grande aprendizado deixar de lado esse egoísmo. Eu, pessoalmente, tenho oscilado entre os dias em que falho miseravelmente, dias em que percebo a grande paz que essa evolução espiritual pode trazer e percebo a falta que ela faz ao mundo e, finalmente, dias em que compreendo tratar-se apenas de uma escolha minha enquanto os outros fazem suas melhores escolhas, cada um à sua maneira, cada um em sua experiência de vida.

terça-feira, 26 de junho de 2018

Pseudo eu

 
Mas é que ele não se importava com a namorada! Porque ele, em um certo sentido, não tinha namorada... Era uma outra existência... Não se importava com a faculdade, com a vida, com a morte, com o dinheiro ou com a fome. Ele não tossia. Ele não ia ao banheiro. Ele não queimava no Sol nem perdia a hora. Ele existia só na hora de escrever. Materializava-se e depois se diluía no mundo, fundindo-se com imaginações alheias e sons diversos.

E ele não tinha olhar introspectivo, porque dada sua quase completa não existência, só conseguia olhar pra fora... Mas é místico que, justamente por essa imaterialidade, transpunha muitos outros seres, olhando-os de dentro. Era assim que se munia de uma espécie de introspecção do alheio. Era assim que sabia dos medos que surgiam mudando o canto do sorriso dela na hora de um tchau. Era assim que sentia a indiferença do chefe com relação à importância do trabalho. O cansaço da vida. O despropósito do dinheiro. Era assim que sentia as músicas dentro das pessoas, independentemente das caras ou declarações, mas vendo as próprias vísceras se comoverem com os sons... Não há segredos.

Não, não há segredos.

Mas, para quem não existe por completo, também não há verdades, o que o colocava em um ponto de vista curioso.

A existência é sempre assim paradoxal. E sabe-se agora ser também de uma ironia profunda: vê sem restrições as verdades justamente aquele que não termina de existir, aquele que não pertence a essa realidade.

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Marcas


Eu perdi um filho. Tem seis anos já, sete talvez. Eu descobri que estava grávida. Fiquei desesperada. Mas o tempo foi passando e fui me acostumando com a ideia. Não, não tirei. Perdi naturalmente. Passei mal e fiquei uma semana no hospital. A minha mãe não foi me visitar porque todo mundo no hospital conhecia ela. Cidade pequena, sabe? Ela não foi me ver nem mesmo um dia.

domingo, 24 de junho de 2018

Corrente


Como se machuca alguém que não fez nada de errado para receber alguma espécie de retaliação?

- Superamiga, conta pra mim... quando você terminou seu namoro, como foi? Ele era um cara tão perfeito, tão apaixonado por você, tão disposto a tudo e tão certinho... E você simplesmente não o amava... De onde tirou coragem para isso? Como superou isso?

Há entretanto pessoas que conseguem essas coisas com a maior facilidade.

- Me conta, como ela pôde fazer isso? A gente estava tão bem... eu podia jurar que dessa vez tinha acertado... Éramos um casal perfeito, perfeito! E aí, ela aparece aqui em casa... e termina!

E nunca poderemos dar a devida dimensão da verdade...

- Desculpe as brincadeiras, mas é que você parece estar bem... Ele é que ficou meio arrasado.

- Hahahaha, eu tô ótima! Você cuida dele pra mim?

Sem comentários...

Eu é que não tenho dessas forças, que não conheço esses meus meandros. Eu fico preso em minhas correntes. Eu sou levado por marés. E isso não é bom. Não para mim. E para quem seria?

sábado, 23 de junho de 2018

Cesta básica

Estávamos na mesa mais próxima à calçada, logo na entrada da pizzaria. O Diego falava mal de comunistas e esquerdistas. Essa gente que vive de mortadela doada em manifestações com dinheiro de corrupção. Essa gente que quer vida fácil sem ter que fazer nada. O Rafa concordava com tudo. E adicionava eloquentemente a necessidade de se meter bala na fuça dos vagabundos logo. Bolsonaro neles!

Foi então que ele se aproximou. Sujo, caminhando com pés arrastados. Parou à extremidade da mesa dando-se uns segundos a nos olhar antes de dizer qualquer coisa. Aquela atitude de cachorro acuado certo de que vai ser chutado e apedrejado a todo instante. Tinha em mãos uns papéis que pareciam mastigados e cuspidos de tão torturados que estavam pelas circunstâncias.

"Boa noite. Desculpe atrapalhar a janta de vocês. Eu sou trabalhador. Trabalhei a vida toda. Mas estou sem trabalho agora. Procuro, procuro todo dia. E não estou achando. Será que não poderiam me ajudar a completar uma cesta básica?"

O Rafa tomou a palavra.

"O senhor trabalha com o que?"

"De tudo um pouco. Ajudo em obra. Carrego as coisa. Corto madeira. Subo nos andaime. Tudo. Sou ajudante pro que precisá. Mas não tá tendo trabalho não. As criança tão com fome."

"Quantos filhos o senhor tem?"

"Tenho cinco. Tem as pequetitica, tadinha. A mãe tá lá cuidando. Se não fossem tão pequenas, ela vinha mais eu buscar alguma ajuda também. Desculpe atrapalhar a janta de vocês."

O Rafa prosseguiu.

"Olha, não tenho dinheiro aqui não. A gente só tem cartão. Dinheiro pra dar, não tenho. Então, posso ir no mercado e commprar alguma comida pra você. Pode ser?"

Os olhos daquela magreza caminhante se dilataram todos, indisfarçados: "Pode, nossa! Pode!"

Eu não acreditava no que estava vendo. O que deu no Rafa? Fiquei tocado. Orgulhoso. Senti-me culpado pelos inúmeros julgamentos negativos que eu fazia com base no discurso político deles.

Não havia mercado ali próximo. Dissemos para o Diego aguardar. Fomos ao carro. Acho que o tal pedinte nunca havia entrado num carro.

"Nossa, carro! Vocês tem carro! Puxa, gente? Eu não imaginava. A gente vai de carro mesmo? Eu vou também! Nossa, como é cheiroso, né? Tem cheiro de coisa nova, de coisa limpa! É muito chique!"

Era um Fiat Uno alugado. Mas nos sentíamos proprietários de uma limosine dourada graças à admiração daquele pobre homem.

Compramos a cesta básica. Demos a ele. Nos despedimos em frente ao mercado.

Quando entramos no carro para voltarmos ao restaurante, o Rafa disparou:

"Filho da puta, né?! Achei que iria negar a comida! Da última vez que me vieram com esse papinho de filhos com fome, ofereci comida e o cara não quis. Agora esse aí aceitou, a casa caiu, né? Tive que vir comprar, carái!"

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Estudante morto

Corta o coração e gera desespero ver uma notícia como essa aqui.

A sociedade brasileira vai ignorar, eu sei que vai. Uns comentários aqui e ali. Outros vão argumentar que é um efeito colateral do combate ao crime. Como se o crime pudesse ser combatido do mesmo modo no Morumbi ou no Leblon. A mentalidade do Senhor de Engenho não aprendeu nada com o fim da escravidão. Pelo contrário, ela contaminou o resto da população brasileira que acredita ser esse jeito filho da puta de pensar o único jeito de “ser alguém” na vida. A essas pessoas que vão tratar essa morte como um “efeito colateral” do combate ao crime e acham que preocupação com a natureza dos efeitos colaterais não é lá algo tão importante assim, gostaria muito que tratassem a próxima dor de cabeça cortando-a para fora do pescoço. Vai resolver o problema e com nada além de um pequeno efeito colateral.

Último ato

O que esperava? Que eu retornasse uma carta cheia de saudades, contando histórias, desesperado de curiosidades sobre sua vida? Não não, sinto muito. Mas espanta-me que não lhe seja compreensível eu querer tal distância. Retornei uma resposta breve e educada e, reconheço, bem seca e fria, à sua carta... E você se revolta. Por que a revolta? Por que o espanto? Eu vi muito bem, no pouco tempo em que estivemos juntos, que não podemos nos misturar de forma salutar. Claro que tivemos momentos bons. Mas e daí? A eles somavam-se tantas coisas ruins, tantas pequenas crises, tantos micro-infernos... Que no fim das contas os humores extremos se balanceavam e davam aos meus dias um gosto amargo de algo pastoso e indigesto. Não tenho estômago para crises inventadas. Não tolerava suas pessimistas invasões aos meus silêncios, querendo saber em detalhes o que se passava comigo em áreas sobre as quais eu mesmo deliberava o silêncio; não por ímpeto de segredar nada, mas pelo direito que tenho de deixar decantar dentro de mim meus assuntos antes de torná-los públicos a quem quer que seja. Não acredito que nem mesmo a mais profunda e forte intimidade possa violar isso. Nem o mais asfixiante beijo está autorizado a esfaquear o peito e roubar ar diretamente dos pulmões... Percebe como se passa de algo intenso para algo monstruoso?

E, sim, insisto... suas invasões eram pessimistas... Em assuntos aos quais eu me dava ao silêncio, vinha sempre você com suas certezas derrotadas, evidenciando nas minhas quietudes todas as provas finais de sentimentos corrosivos a nós dois. Ciúme? Insegurança? Desespero? Ansiedade? Posso muito bem aceitar que essas tempestades interiores estivessem por trás de todas suas suspeitas infundadas. Mas, ao mesmo tempo, não posso aceitar a idéia de viver tão perto de alguém que se vitima tão facilmente às próprias emoções. Em meus anseios mais sóbrios, não poderia exigir de você algo extraordinário, uma mulher extra-mundana de alguma forma, por mais exótica que tenha sido sua aparição na minha vida. E ainda assim me era impossível aceitar esses momentos em que se mostrava menor que a si mesma.

Não pense, por tudo isso, lhe faço mal juízo. Ter sido uma catástrofe comigo de modo algum implica que é assim também aos outros. As relações humanas nunca são monólogos sem público. São espetáculos completos cheios de improviso. Nós dois, misturados, improvisamos mal. E num momento ajuizado percebi que o espetáculo que ensaiávamos não deveria jamais ir a cartaz. Estava ruim. Toda grande atriz tem lá seus maus momentos. Sucesso nas próximas performances. Adeus.

quinta-feira, 21 de junho de 2018

Irmão


Eu não entendo. Meu irmão partiu. Foi um dia só aqui, não tivemos tanto tempo de conversar. Quando ele volta? Eu achei que ele ficaria mais. Mas essa maluquice de confusão no país, ele não conseguia viajar pra cá. Trouxe as coisas dele. Trouxe os livros. Livros e livros e livros. E deixou o carro de volta também. Disse para eu vender mas não deu prazo nenhum. É só isso o que ele tem. Eu não entendo ele. Cinco estantes cheias de livros. A gente tem quase a mesma idade. Eu tenho minha família, minha empresa, minhas filhas. Acho que é por isso que ele fala tanta besteira, é esquerdista, quer o desarmamento. Ele não tem responsabilidades. Fica por aí viajando o mundo. Estudando, estudando, estudando. De que adianta estudar tanto e não fazer nada? Eu perguntei para a mamãe quando ele voltaria. Ela não soube me responder. Dois meses? Dois anos? Nunca?

Eu lembro quando a gente enchia a casa velha lá com os amigos. Ele tocava bateria. A gente falava muita besteira. A gente fazia paródias. De tudo. Com as músicas do Ramones, da Xuxa, o que fosse. O importante era dar risada. A gente podia tocar Van Hallen ou Mamonas Assassinas. Mas a gente ria. Eu sinto falta de rir. Sinto falta de rir daquele jeito. Achei que ele fosse ficar mais um pouco e talvez a gente fosse conversar de novo. Talvez a gente fosse rir um pouco.

As meninas estão grandes já. Eu queria que ele tivesse vindo mais pra cá. Queria que ele tivesse crescido junto com elas. Mas sempre foi difícil viajar. O dinheiro, o tempo. Os trabalhos que ele arrumava longe. Em outras cidades, em outros países. Queria que ele tivesse rido com as minhas filhas como riu comigo quando a gente era mais novo. Quando ele volta?

quarta-feira, 20 de junho de 2018

Beijo

Ah, querida! Quero você livre, quero você livre... E, livre como lhe quero, lhe deixarei, e deixei que construa seus infernos todos. E aí, quem sabe assim num dia, não descobre suas mãos e palavras também capazes de criar paraísos? Porque lá fora no mundo tudo é os dois: o certo e o errado, o bom e o ruim. E mais: e dentro da gente também! De mim, quis sempre investigar as dúvidas e os receios. Deixei que trouxesse todos à tona. Apaixonou-se pelo melhor de mim e feriu-se desenterrando meu pior. Por que perguntar pelas dúvidas depois dos dias de silêncio ao invés de comemorar a quebra da distância? Por quê? Eu não sou nem quero ser o último porto seguro do acolhimento incondicional.

Desculpe, talvez eu até pudesse concordar que há coisas no mundo que não são como deveriam ser se, por princípio, eu já não pensasse que a natureza é a medida final e que errado é substituí-la por imaginações idealísticas. É assim que funcionamos, eu você e todos. É aí que nossa assimetria nasceu, e se foi contra você, poderia muito bem ter sido contra mim. Acasos... A que me refiro? A esta mecânica no afeto: se morres por mim, morres em mim.

terça-feira, 19 de junho de 2018

A compra

Francesco estava em sua banqueta, cigarro na boca. Chicoteava os funcionários com o olhar. Com os resmungos. Três jovens sem camisa, movendo as lenhas entre as pilhas de um lado a outro daquela sujeira, entre as serras barulhentas, por entre a atmosfera densa de farpas irrespiráveis. Amadeu havia chegado. Procurava os papéis no carro. O negócio seria fechado e a vida de todos ali se alteraria drasticamente ao gosto de uns respingos de tinta num papel idiota. Era a marcha do mundo. Os gordos, resmungões e preguiçosos teriam seus novos confortos. E aos jovens dali o trabalho iria se avolumar, pesando-lhes nos braços e nas tábuas eventualmente caídas nos pés. Tinham é que dar graças, havia trabalho!

segunda-feira, 18 de junho de 2018

Mecanismos


Entendo que muitas pessoas sejam beneficiadas pelos trilhos firmes das instituições. Fazem um curso de línguas, e tempos depois lá estão, falantes, diplomatas, certificadas, treinadas e confiantes de si. Querem viver uma determinada coisa, correm atrás das instituições que as sustentam. Querem velejar, procuram os cursos de velas, as pessoas que o fazem, inscrevem-se, arranjam carteirinhas. Eu não funciono assim. Minha aberração não chega à agudeza de impedir que eu seja reconhecido como um membro aceitável dessa sociedade, mas essa assimilação desapercebida deve-se mais aos meus esforços de camuflagem que a uma natural propensão à adesão. Dormia nas aulas de inglês, e só finalmente aprendi esse peculiar idioma quando me motivei a ler coisas por aí. Aprendi muita matemática nos orgasmos de minha curiosidade e muito pouca nos tédios das aulas. Não estou a defender que esta é a postura mais correta. Longe disso. Estou apenas constatando que é a minha realidade. E tão mais longe parecem chegar as pessoas que facilmente se dão à vida institucionalizada... Esta consiste, principalmente, em aceitar de bom grado uma cisão profunda entre os impulsos emocionais mais selvagens que brotam naturalmente dentro de si e as ações das quais o corpo e a mente tomam partido. O homem institucionalizado é muito mais capaz de estudar aulas chatas, de fazer trabalhos maçantes, de deixar-se de lado momentaneamente, ainda que por muitos e muitos momentos consecutivos. Pode soar horrível, dizendo assim, mas não se deve confiar numa descrição feita justamente por aquele outsider que inveja muitas coisas de um mundo do qual não faz parte plenamente.

domingo, 17 de junho de 2018

Laços


Do livro "A dor de amar":
"Entretanto, todo o meu saber sobre a dor - naquela época, eu já estava escrevendo este livro - não me protegeu do impacto violento que recebi ao acolher a minha paciente logo depois do acidente. Naquele momento, o nosso laço se reduziu a podermos ser fracos juntos"

Aqui trata-se de uma relação psicólogo-paciente, mas poderia ser qualquer outra. Por fim, o que resta, muitas vezes, é a permanência da palavra "juntos", ainda que outras coisas se intrometam. Bravos juntos. Revoltados juntos. Tristes juntos. Quietos juntos. Sozinhos juntos.

Lembro de uma conversa que tive com minha primeira namorada. Ela era musicista, amiga da minha irmã, e eu a conheci no casamento do meu irmão. Eu estava tomado por uma felicidade extrema dessas que acompanham as primeiras experiências. Essas histórias que, sem referências, se enchem de absolutos. Com a vista turvada por tantos exageros, não percebi o óbvio. Ela acabara de sair de uma relação longa. Seis anos. Ainda tão nova, e... seis anos! Quando ela me conheceu, aceitou o relacionamento como forma de esquecer a relação anterior. Mas foi tudo muito rápido e alguns meses depois ela resolveu voltar com o antigo namorado. Foi então que eu soube de tudo. Conversamos por um bom tempo. Eu com aquela esperança idiota de encontrar algum caminho para salvar as coisas. Ou com aquele sadismo estúpido insistindo em mais detalhes como se os revelados já não me machucassem o suficiente. E aí ela me explicou como era estar com ele. "Com ele é leve eu passar o dia. Podemos ficar juntos o dia inteiro na casa, como se eu estivesse sozinha, entende? Sozinha, mas com ele aqui." Sozinhos juntos.

sábado, 16 de junho de 2018

Todos os dias


Não gosto da invasão de minhas vontades, gosto da paz do meu silêncio ou de incensura nos meus barulhos... Quando sou? Sou nos silêncios impostos dos convívios? Ou finalmente sou apenas na insignificância obscura do completo isolamento com toda a liberdade que lhe é peculiar? Quando não sabem de mim, sinto ser o que me imagino. Quando observam todos de perto, sinto ser apenas em segredo, sem que me saibam. Sem que seja de verdade. Misturado aos outros, facilmente se é mais reflexo que luz. Ou talvez seja só impressão. Talvez todos brilhem e eu apenas não goste da ideia de ser também só mais um. E o que seria mais humano?

sexta-feira, 15 de junho de 2018

De repente vou dormir


Agora chega de repente
   Pois já é hora de dormir
Não adianta implorar
    E nem venha insistir
A você deixo um boa noite
    E faço uma oração
Que nada de mal lhe açoite
    E que Deus lhe dê proteção!

Inquieto


Quem é você? Quem é você, que eu vejo de longe, que eu imagino? Quem é você que eu leio à noite em trechos jogados? Quem é você que aparece e some? Dona de desejos alegres, vivos, um sorriso inspirador. Quem é você que não está quando eu apareço? Que quando a porta se abre, não está? Que quando não procuro escreve dizendo "estava lá!". Vou te dar um abraço apertado pelos últimos dezesseis bilhões de anos em que a gente não se fala... e, quem sabe, um beijo...

quarta-feira, 13 de junho de 2018

O Romeno


Eu vim pra cá há oito anos. Vim porque ofereceram trabalho. Trabalhei pra chinês, sabe? Cara, chinês difícil! Chinês, difícil! Trabalha, trabalha, trabalha. Ganha nada. E dinheiro? Dinheiro no Brasil não vale. Ganha mil, mas vive como? Vem aluguel, aí tem que ter um celular se não fica sem trabalho, aí pega ônibus e pum, nem sobra pra comer! Tá vendo? É assim! Eu fiz tudo, tudo um pouco. Trabalhei na construção. Mas restaurante, melhor. Faz comida e come também. Pelo menos não passa fome enquanto chinês não paga. E chinês pra pagar, difícil! Falava: não tem carteira, não tem documento, não pago! E pronto! Fazia trabalhar mais, mais mais, falando que se não, não paga eu! Só fazia isso, só fazia isso! Minha mãe veio aqui uma vez. Tem dois anos já. Foi assaltada. Com arma na cara dela. Revólver. Malandro, sabe? Filho da puta. Ainda hoje, no Romênia ela fala que faz terapia. Não volta pra cá nem a pau. Eu tô feliz que vou conseguir voltar. Juntei meu dinheiro. Foi difícil, porque muito calote teve. Trabalho com documento, não acha. Trabalho sem documento, não sobra dinheiro. Difícil. Todo mundo louco aqui. Era melhor antes. Quando eu cheguei, era melhor. Todo mundo fala mal do Lula mas era melhor antes. As pessoas parecem não perceber! São meio doidos, os brasileiros, né? Olha, calor bom, comida boa, mulher boa. Mas eu não vou ficar com saudades não. Estou desesperado por voltar. Fui assaltado também. No praça da Sé, porque tinha relógio que parecia caro. Porcaria do chinês, não valia nada! Mas pivete veio com pedra no meu cara. Quebrou os dentes todos. Fiquei meses com pontos na boca. Olha aqui, as fotos. Esse aqui, gordinho, era eu. Perdeu quinze quilos até boca melhorar. Filho da puta do pivete. Aqui é um pouco ilusão. Coisas boas misturadas com muita coisa ruim, aí não vale a pena. Caipirinha é que é bom! Mas vou fazer lá. Aprendi a fazer, muito boa! Chinês falava que não me mandava embora porque meu caipirinha era boa! Mas no Romênia vou ter que fazer com vodka, né? Lá não acha desse Corotinho...

terça-feira, 12 de junho de 2018

Teatro

Uma calça se transforma em um cachecol. Em um laço. Em uma cerca. Em uma serpente ameaçadora.

Um pote plástico transmuta-se num tambor. Numa bomba. Num tijolo. Num livro.

Um coador plástico de repente é uma lupa, uma válvula, uma máscara.

E nos ensaios, os mundos faz de conta faziam-se reais. E cada hora ali provava que os sonhos mais impossíveis aconteciam, diante dos olhos de todos, e as pessoas viam, viviam, e as estrelas, de inveja, tremiam.

segunda-feira, 11 de junho de 2018

Repensando tudo um pouco

Estamos chegando ao fim de mais um trabalho aqui. Hoje é o último dia. Hora de levantar acampamento. Olho para a minha pilha de livros. Há livros não lidos lá. Olho para os CD que trouxe. Não ouvi todos.
Algum dia, em breve ou nem tanto, será o último dia do meu maior projeto de todos: a própria vida. E sei que será a mesma coisa.
Livros não lidos. Músicas por ouvir. Pessoas com quem não falei. Lugares aonde não fui.
Não sei se terei tempo de repensar tudo isso nos derradeiros minutos ou se terei uma morte rápida, repentina, dessas que nos roubam, além da vida que viria, a apreciação da vida que tivemos, ou se terei o tempo de olhar para trás.
Se tiver, será uma grande agonia, eu sei. Mas, ainda assim, não consigo imaginar o terror de não sentir essa sede.
Essa certeza de que a vida tem muito mais, mas muito mais mesmo, do que consigo abraçar, é ao mesmo tempo uma agonia e um grande motivador. Me deixa inquieto. Me faz querer acelerar ritmos e com frequência sou obrigado a, conscientemente, pisar no freio.
Queria conversar com todas as pessoas.
Queria visitar todos os lugares.
Queria ler todos os livros.
Queria aprender todas as coisas.
Queria ouvir todas as músicas.
Queria saber de todas as histórias.
Assim usei meu tempo aqui. Se não visitei a todos que poderia ter visitado, é porque passei parte do tempo aprendendo coisas. Se não aprendi tudo o que poderia ter sido aprendido, é porque passei parte do tempo ouvindo músicas. Se não ouvi todas as músicas, é por que passei parte do tempo caminhando por aí.
E agora sigo. Hora de caminhar mais longe. Hora de descobrir novas inquietações.

domingo, 10 de junho de 2018

Ri

Ah amada, minha amada!
Quantas outras mulheres preciso amar pra diluir esse amor que lhe tenho?
A quantas preciso ser gentil?
Quantas terei que presentear?
Quantas terei que surpreender com elogios?
Esse amor por você, some um dia?
Desaparece, como tem que ser?
Você é tão feliz por ter achado em mim um amigo desinteressado
Um reduto de acolhimento sem maiores interesses
E me dá tanto trabalho não te desapontar

sábado, 9 de junho de 2018

Idiota

Fui ler aquelas conversas antigas.
Porque hoje as conversas ficam gravadas. Congeladas no tempo.
Vejo que eu estava com o peito rasgado. Não respondi nada dos absurdos insensíveis que lhe diria agora.
"Você estava me cobrando."
Eu estava tentando ser um ser humano normal! É claro que eu queria que a minha namorada quisesse algum carinho, um mínimo. Claro que queria que ela sentisse vontade de me fazer feliz. Isso nunca existiu.
Ela foi a pessoa mais egoísta que já conheci.
Eu me deixei enganar por conta dessa conversinha de "ela é uma pessoa fechada". Acreditei, meses e meses, que ela fosse uma pessoa fechada. Fiz os maiores malabarismos de interpretação para acreditar que ela sentia realmente algo por mim. Mas não... Ela não é uma pessoa fechada. É só uma pessoa sem nada dentro além de sentimento por si mesma. Fui, mais uma vez, um idiota ao inventar explicações para contrariar meus instintos.

quinta-feira, 7 de junho de 2018

Contas

A crise mundial, ah, a crise mundial!
Quem tinha muitos bilhões ficou agora com apenas poucos bilhões.
E a crise que existia já antes dessa crise?
Crise de fome, de saúde, de educação?
Crise de gente que nasceu longe da vida e está fadado a continuar ali, do lado de fora?
Não importa.
Quem se importa?
Você se importa?
Pensa que se importa?
Deixaria de fazer uma viagem de fim de ano para dar comida a quem está prestes a morrer de fome?
Passaria uma semana levando marmita ao serviço para juntar o dinheiro dos caros fast-foods e doá-lo?
Todos se importam, não é?
Todos dizem que se importam.
Coisa que eu não sabia: importar-se é um ato contemplativo.