terça-feira, 26 de junho de 2018

Pseudo eu

 
Mas é que ele não se importava com a namorada! Porque ele, em um certo sentido, não tinha namorada... Era uma outra existência... Não se importava com a faculdade, com a vida, com a morte, com o dinheiro ou com a fome. Ele não tossia. Ele não ia ao banheiro. Ele não queimava no Sol nem perdia a hora. Ele existia só na hora de escrever. Materializava-se e depois se diluía no mundo, fundindo-se com imaginações alheias e sons diversos.

E ele não tinha olhar introspectivo, porque dada sua quase completa não existência, só conseguia olhar pra fora... Mas é místico que, justamente por essa imaterialidade, transpunha muitos outros seres, olhando-os de dentro. Era assim que se munia de uma espécie de introspecção do alheio. Era assim que sabia dos medos que surgiam mudando o canto do sorriso dela na hora de um tchau. Era assim que sentia a indiferença do chefe com relação à importância do trabalho. O cansaço da vida. O despropósito do dinheiro. Era assim que sentia as músicas dentro das pessoas, independentemente das caras ou declarações, mas vendo as próprias vísceras se comoverem com os sons... Não há segredos.

Não, não há segredos.

Mas, para quem não existe por completo, também não há verdades, o que o colocava em um ponto de vista curioso.

A existência é sempre assim paradoxal. E sabe-se agora ser também de uma ironia profunda: vê sem restrições as verdades justamente aquele que não termina de existir, aquele que não pertence a essa realidade.

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