sábado, 30 de maio de 2015

Dos diários antigos–Parte III

De volta ao começo bem maluco dessas considerações jogadas... Ontem fugi do mundo. Fugi mesmo. Fugi da rotina que anda me engolindo. Saí andando sem avisar ninguém e fui ver uma peça de teatro de estudantes. Estudantes iniciando-se no teatro são uma coisa incrível. Não estão devendo nada pra ninguém, pois não precisam justificar nenhuma fama, e ao mesmo tempo precisam provar tudo para si. Precisam tornar-se ali os melhores atores do mundo, algo assim. Talvez depois a vida lhes quebrará essa ilusão se não tiverem talento suficiente ou, pior ainda, se lhes sobrar sandice para esses julgamentos de valor. Mas ali, nas primeiras apresentações com o primeiro grupo de teatro de que fazem parte realmente, ali são imortais. E vi isso ontem. Vi isso e mergulhei nisso. Os sons da percursão. Os gritos, os momentos de tensão das cenas. O desafio da nudez e os momentos de improviso. O canto da moça loira sentada no balanço... Meu deus, isso deveria ter sido registrado. Seria possível assistir esse vídeo vezes sem conta por semanas adiante. Ela ali sentada, num balanço, encarando a platéia a um metro e meio de distância, olhos nos olhos, nua. E começou a cantar. Doce, preciso, liso, afinado, leve. Mas ficou forte, forte, denso... como se o ar virasse água e a água virasse óleo e de repente na enxurrada de óleo viessem pedras rochedos e montanhas inteiras também. Berros, gritos, desespero.

Não creio que exista uma encenação perfeita. Mas essa descrença deve-se apenas há uma imprecisão semântica. Encenação perfeita é um contra-senso. Há uma fronteira além da qual o ator deixa de encenar. Ele efetivamente torna-se, ali, o personagem. O ator desaparece. Quem está ali é o personagem, realmente. E foi assim. Aquele bando de moleques que estava na platéia, no começo perdidos em risadinhas diante de qualquer nu que surgisse (porque, convenhamos, atores iniciantes parecem sentir uma tentação de explorar mais momentos de nu do que necessário, mas isso é outra história). Aquele bando de moleques que riam de qualquer coisa... De repente pararam de rir. Ela ali, no balanço... Pés cruzados, segurando as cordas, totalmente nua. Cantando. A percursão desapareceu. As sombras desapareceram, como se não houvesse um holofote sobre ela. De repente ela tinha luz própria. E os fedelhos moleques imbecis pararam de rir. Sumiu dali, de repente, diante dos olhos deles, uma aprendiz de atriz nua, e materializou-se uma mulher que sofria e cantava as dores de uma vida inteira e não era mais seu corpo que estava descoberto, era sua alma. Não eram mais seus seios que se viam, era seu coração, não era mais suas pernas, era sua história, tudo ali, desnudo, preenchendo todo o ambiente enquanto transfigurava-se de corpo em voz.

Isso salvou meu dia. Mas, não quero desmerecer ninguém, teria salvo meu dia mesmo que a peça fosse ruim (não era). Um dos pontos importantes foi a completa aleatoriedade... Não planejei ir pra lá. Voltei do trabalho pra casa e, de repente, pensei "tá bom, eu vou!". E fui. Ninguém sabia onde eu estava. Niguém sabe se fui. Celular desligado. (celular desligado, ó deus, bendito seja!). Fugindo de todos os lugares em que oficialmente existo, sumido no meio de um monte de desconhecidos sem ser ninguém além de um corpo quieto, olhos abertos olhando, existi. E fiquei feliz, porra se fiquei!

Ontem eu fugi do mundo. E descobri que existem outros mundos por aí. Se eu fosse Deus também teria feito o livre-arbítrio. Assim, depois de uma Criação tão atonitamente estupefante e surpreendente, as pessoas iriam cuidando das próprias vidas enquanto eu pudesse, invisível, andar livre por aí só observando. Todos os lugares. Todas as pessoas, todos os mundos. O que não levaria a nada além da admiração. Como essas reflexões estaladas no papel jogadas do quinto andar sem dó nem nexo. Não concluem nada, mas gostei de escrever. É o que importa.

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