quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Dona Yolanda

Meus avós moravam em São Paulo mas meu vô havia comprado um terreno no litoral para realizar o sonho de aposentadoria de viver à beira do mar. Quando eu era um bebê a casa estava sendo construída e lá onde minhas primeiras lembranças alcançam a casa já existia. A rua, hoje asfaltada, ainda era de terra. E a casa da memória não quase nenhuma semelhança com a de hoje. Uma coisa, contudo, permanece: o sofrimento da vizinha Yolanda, que só se acentuou com o tempo.

Eu não entendia a dimensão do drama quando ainda era uma criança, mas lembro claramente de ver a Yolanda com sua filha deficiente. Hoje sei da história. Quando os filhos cresceram e foram morar em outras cidades, Dona Yolanda resolveu adotar uma criança. O pequeno bebê tinha uma deficiência de nascença porém essa informação não foi passada para ela. Quando se deu conta, tempos depois, não aceitariam a criança de volta no orfanato. Mas Yolanda estava decidida: era sua filha.

A menina cresceu. Nunca aprendeu a falar além dos balbucios de algumas palavras. Sua locomoção era precária: não dominava o próprio corpo.

À medida a menina crescia, Yolanda envelhecia. Os filhos raramente vinham visita-la. Tinham um misto estranho de ciúme e raiva, ou talvez desprezo, por essa irmã defeituosa.

Certa vez, quando não era época de férias e portanto o bairro estava praticamente deserto, um lunático invadiu a casa, trancou a Dona Yolanda no banheiro, estuprou a menina, roubou coisas da casa e fugiu. Nunca foi pego. Eu só soube disso tempos depois porque ainda era novo para minha família dividir histórias assim comigo.

A história ainda não chegou ao fim e está, enquanto escrevo, passando por mais um momento dramático. Meus avós não são mais vivos. Agora são meus tios que cuidam da nossa casa. Foram para lá passar um final de semana e foram abordados por um outro senhor do bairro. Ele comentou que há dois dias a Dona Yolanda não aparecia varrendo seu quintal. Chamavam e ninguém atendia. Ligaram para a polícia para perguntar sobre arrombar a casa e, sob recomendação da delegacia, chamaram os bombeiros. Eles logo vieram e arrombaram a casa. Dona Yolanda estava no chão. Teve algum ataque. Estava lá não se sabe há quanto tempo. Talvez dois dias inteiros já. Suja, havia urinado e defecado sem sair do lugar. Balbuciava coisas. A menina, agora uma adulta, estava ali como que compartilhando do ataque. Faminta. Assustada. Entendendo muito menos do que o pouco que havia entendido da vida até ali.

É algo criminoso. Sua família a abandonou ali. São responsáveis por elas mas, nesse momento, devem estar preocupados apenas com a escritura da casa e torcendo para que essas duas, grandes estorvo, morram logo. Nem só de histórias de verão é feito o litoral...

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