domingo, 24 de setembro de 2017

Perdões

Eu já havia me acostumado a vê-la careca. Mas ali, no leito do hospital, sua imagem havia deteriorado ainda muito mais. Estava magra como não parecia ser possível. E a cor da sua pele havia mudado também. Não sei se é algo da minha cabeça, ou algo devido a alguma outra coisa ali do hospital, mas eu posso jurar que seu cheiro mudou também. Ela iria morrer logo mais. Sabíamos, desde que o câncer havia sido diagnosticado, que esse dia chegaria. Mas é diferente imaginar meses ou mesmo anos pela frente e, como agora acontecia, saber que este momento estava a poucas horas de distância, no máximo.

Lembrei de todas as vezes que a fiz sofrer. Minha tia havia me criado, a mim e aos meus irmãos. Cuidou da gente enquanto minha mãe ia trabalhar. E era necessário que ela trabalhasse primeiro porque a renda do meu pai não era grande o suficiente para manter toda a família com qualidade e depois porque os meus pais se divorciaram.

A visão da morte iminente apagou de minha mente um pensamento que causou revolta por anos e anos: para mim, em uma análise lógica mais fria, foi ela própria, minha tia ali a algumas horas de morrer, que havia sido uma peça chave no divórcio dos meus pais. Primeiro porque sempre fez minha mãe mudar de opinião quanto a planos que havia feito com o meu pai. Meus pais combinavam de fazer uma viagem, depois minha mãe conversava com minha tia e mudava de ideia. Em segundo lugar, e essa é a parte mais grave, enquanto meu pai fazia horas-extras em seu trabalho na empresa automobilística minha tia incutia na mente de minha mãe uma única explicação: ele não estaria fazendo horas-extras coisas nenhuma, estaria é tendo um caso extra-conjugal com alguma vagabunda. Minha mãe não suportou a pressão, entrou em diversas discussões com o meu pai e o divórcio finalmente veio.

Depois, com essa mesma mentalidade super conservadora, minha tia tentou atrapalhar meus namoros, os namoros do meu irmão e da minha irmã também. Em um dado momento eu briguei tanto com ela que disse que ela não precisava mais ir lá em casa cuidar da gente como sempre fazia. E ela nunca mais foi.

Hoje acredito que essa ruptura foi parte do processo de adoecimento dela. De modo que eu me sinto, sim, culpado. Mas não sei se chego a sentir um remorso por isso. Por que haveria eu de absorver todos os males de suportar suas interferências em nossas vidas? Eu queria ser grato a ela, grato por tudo o que ela fez de bom por nós. Costurava roupas, preparava comida em casa. Permitiu que minha mãe trabalhasse fora. Mas ela já havia provado não ter limites para o quanto poderia interferir em nossas vidas. Eu deveria dar-lhe direito ilimitado de interferência como prova inequívoca de minha gratidão? Não me parece uma opção aceitável, até hoje.

E foi nesse contexto em que fiquei ali parado, ao lado do leito, vendo os tubos que entravam e saiam de sua boca, nariz. Repousei minha mão sobre ela. Pensei em todas essas histórias. Senti-me culpado por fazê-la se afastar do lar que ajudou a criar. Aproxime-me do seu ouvido e sussurrei desculpas pela tristeza que causei. Olhei novamente para ela, que me olhou serenamente enquanto balbuciava qualquer coisa como "tudo bem". Senti-me, confesso, um perfeito idiota.

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