quarta-feira, 9 de abril de 2008

Cachorro estóico

Nenhuma posse é verdadeiramente nossa. As coisas, antes de nos pertencer, pertencem ao mundo, e da forma que nos foram dadas podem nos ser tiradas. E outros bla bla blás à moda dos velhos estóicos. E aí? O que fazer com a palavra pertencer então? Às favas com ela? Tão somente a sabedoria e a nobreza nos pertence? (o que talvez consolasse os romanos, mas hoje certamente nos torna as coisas ainda piores!)

Como, creio, o assunto não está sob os auspícios de nenhuma legislatura dos conselhos e papéis, sinto-me livre a manobrá-lo conforme as conveniências. Vou é brincar de redefinir posse às minhas vontades atuais.

Possuir verdadeiramente é ser destinatário de uma manifestação externa em sua ocorrência expontânea, ou seja, independente de qualquer esforço artificial para restrição das liberdades do que é possuído. A posse assim definida não parte do proprietário para o objeto, mas do objeto para o proprietário. Nada se possue. O objeto de posse, em sua deliberação livre, eventualmente se deixa possuir.

Não gostou? Faça a sua definição, fique à vontade. Eu fico com esta aí de cima porque engloba conceitos bem... bacanas! Ao mesmo tempo que fica excluída a possibilidade de posse de bens materiais, dadas as limitações deliberativas desses, e assim preservamos os ideais de frugalidade dos estóicos e outros desocupados, consigo uma vantagem adicional: a de garantir que, ao menos ontem, possuí um cachorro.

Isso mesmo: um dog, um au-au, um vira-lata. Não trocamos restos de bolacha, pão ou qualquer outra coisa. Não lhe salvei a pata, a sede, o frio ou o terreno. Apenas o conheci. Nos vimos. E o vira-lata seguiu-me avenida afora. Parei no ponto de ônibus. Sentou-se ao meu lado, sem frescura. Não ficava olhando, ou incomodando minha perna com a pata. Sentou-se ali. Olhou a rua. As outras pessoas. O ônibus demorou, levantei. Levantou-se. Foi ao caixa eletrônico comigo, esperando-me do lado de fora. Deitou-se debaixo da mesa da lanchonete, à calçada. Parei à banca de jornal. Entrei em um sebo. Saí. Sozinho, pensei. E lá ele aparece de novo, passa à minha frente, correndo, e vai liderando o caminho.

Rendendo-me às normalidades do mundo, entrei na estação do metrô e perdi neste dia a única posse que tive.

Serão as pessoas capazes de se possuir assim também com tamanha pureza e cristalidade, por cima de tantos planos, carências, sonhos, egoísmos, invejas, sonhos e estratégias?

Imagem de Maurilio Orozco

4 comentários:

Nathália E. disse...

"O objeto de posse, em sua deliberação livre, eventualmente se deixa possuir."
Sempre preferi encarar a idéia de posse dessa maneira.

Beijo!

Flávia Ferraz disse...

Olha só...acho que uma das dificuldades grandes da vida é deixar as coisas terem acesso livre para ir e vir...sem precisar ter a posse ou o sentimento dela.
Seria muito bom não precisar disso?
Não sei...Um dia um ex namorado me disse: "O que eu vivi com vc, ninguém me tira".
Tem coisas que são "nossas"...
É muito bom ser desapegado, livre, e deixar as coisas viverem seus movimentos...Mas também é bom ter o sentimento de possuír, ou ser possuído.
É um sentimento delicioso por exemplo, quando a gente ama uma pessoa e ela olha pra sua cara e diz: "Você é tão MINHA"...
Esse lance de posse...dá pra pensar e discutir...por muito tempo...

Liz / Falando de tudo! disse...

Estou visitando blogs alheios, e cheguei até o seu, muito bacana o seu blog e interessante o que você escreve. Eu volto!!
Um abraço,
Liz

Paula Oliveira disse...

"O objeto de posse, em sua deliberação livre, eventualmente se deixa possuir."

Concordo! E diria mais: vc tb se deixou ser possuído pelo cãozinho =) Foi uma relação de posse mútua, onde o cachorro tinha sua atenção e vc tinha a dele.

Como foi dito num comentário acima, esse lance de posse dá pra discutir por muito tempo...

Se há "posse-livre", é esta que foi tao bem relatada: dois seres em sintonia sem terem sido obrigados à nada.