domingo, 2 de agosto de 2020

Das motivações positivas e negativas

A Física ensina que o movimento pode ser produzido através de tração ou propulsão. Um objeto pode ser posto em movimento sendo empurrado ou puxado. Na mecânica básica, onde despreza-se a dimensão dos corpos, ambos processos são equivalentes. No mundo real, tridimensional, a tração apresenta a vantagem da estabilidade: empurrar um objeto pode levar a instabilidades dependendo dos arranjos do centro de massa e das forças de resistência. Projetistas de navios e foguetes lidam o tempo todo com este problema, mas mesmo situações mundanas como carregar um carrinho em um supermercado são capazes de demonstrar esse fenômeno. (Você coloca as compras mais pesadas na parte de trás ou da frente do carrinho?) A motivação das pessoas também é multifacetada. Podemos empreender uma mesma ação, do ponto de vista externo, porém movidos por diferentes forças internas. Podemos fugir ou podemos buscar. Podemos agir por medo ou por paixão. Dado que o medo é um limite inferior que acontece naturalmente em diversas situações - no limite não há como fugir da morte e sua possibilidade sempre aumenta quando nos damos à inação completa, a sociedade até aqui vem se estruturando com base no gerenciamento do medo. A Economia moderna tem uma visão tão pobre e rasa da alma humana que não aprecia devidamente essa diferença. É freqüente, por exemplo, a narrativa de que um dos lados positivos da desigualdade é a motivação para a atividade econômica, pois pessoas mais pobres observam a vida que é possível nas camadas mais ricas e se motivam à ação. Essa interpretação pode parecer verdadeira ao se observar dados de produtividade e desigualdade em alguns países, mas essa leitura ignora por completo a natureza da alma, a experiência subjetiva de quem está a trabalhar. Uma vez que se considere também este aspecto, torna-se óbvio que um dos grandes fatores de motivação hoje não é a paixão por progredir mas sim o medo de retroceder. Até o presente momento de nossa civilização as estruturas construídas em torno do medo são responsáveis pela massificação, porém são as ocorrências em que as pessoas podem dar-se ao luxo de mover-se pela paixão que respondem pela verdadeira criação. Fábricas asiáticas que exploram trabalho barato produzem milhões de celulares todos os anos, mas foram cientistas movidos pela paixão da investigação que criaram a ciência e a técnica capaz de possibilitar tal maravilha. Esse aspecto da realidade humana está hoje completamente fora das análises econômicas. É um estudo que nem sequer começou. Se, no futuro, aceitarmos o desafio de entender como estruturar mais e mais setores da sociedade sobre alicerces de paixão e não de medo, abriremos espaço para a multiplicação de gênios - espíritos humanos que hoje silenciam sob vidas estruturadas no medo. A transição contudo esbarra em uma enorme barreira ideológica - uma transição de fase com altíssima energia de ativação. Hoje qualquer pessoa que busque estruturar suas condições de vida para possibilitar um movimento para a busca da paixão, minimizando o impacto das propulsões por medo, é vista como irresponsável ou como alguém marchando em busca de algo sem sentido. Quem quer se dedicar à música, à pintura, à escrita, ou basicamente a qualquer outra paixão que seja, vai ouvir inúmeras críticas ou dúvidas que são, pura e simplesmente, ecos do medo tentando recapturar sua presa perdida. “Vai viver disso?” “Mas e o seu futuro?” “E a estabilidade?” “E se não der certo?”

sábado, 1 de agosto de 2020

Por que estranha lógica haveria de suceder este impossível de ser um ser humano político algo superior e distinto em suas virtudes e em seu coração aos demais humanos? A irracionalidade maior das pessoas é essa confiança no poder dos títulos e posições como se suplantassem em seus desígnios aquelas marcas realmente pessoais que se abismam em cada um de nós. Mentira, engano. As instituições são tão somente a máscara padronizada, a certeza da mentira correta, a cortina pronta atrás da qual adormecemos nossos erros numa serena espera por desfrutá-los impunes.

sexta-feira, 31 de julho de 2020

O que eu não falo

Eu não quero amar ninguém agora.
E eu amo, mas amo e não falo.
E amo um amor que não quero amar, que transformo mais em uma derrota do que em uma superação, em um mérito.
Preciso meditar, encontrar uma paz na minha vida que não sei onde está.
Como é que eu olho nos olhos e falo: ei, aprecio seu amor. Me comove. Me desmonta. Amo a beleza disso tudo. Mas agora não consigo...   ?
Como se faz dessas violências?
Não sei das violências.
Não sei ser nenhum dos personagens que gostaria, e é essa minha grande tragédia.
Sou um qualquer outro que não sei de onde vem.
É no improviso, e como todo improviso, nem sempre funciona.
Mas há em mim também uma ditadura feroz, atroz... pesada e sangrenta, que impede a verdade de tudo.
Quando acontecerá a revolução?
Não sei. Quem sabe?
Agora não. Agora eu não consigo...

quinta-feira, 30 de julho de 2020

Ontem

Acuado num canto de seus pensamentos, morria de medo rotineiramente de ser descartado como um inferior pelos pensamentos dela. Estudada lá na França, um lugar grande e importante que fica do outro lado de um oceano imenso, ela era dona de si com a naturalidade de quem se desgarra logo cedo das raízes patrióticas. Sabia que esse medo era uma profecia poderosa de suas derrotas futuras, prelúdio e causa em um só. E não evitava, ao olhá-la nos olhos, esconder todo esse amor amassado por trás de sorrisos bobos e olhares doces e atitudes toscas.

quarta-feira, 29 de julho de 2020

No trabalho

Você tem idéia, por acaso, do quanto a vida às vezes é prejudicial à reflexão?! Kleber M. empilhou as pastas num canto da mesa, uma a uma, organizando e vendo as listas, coladas na capa com cola Prit, dos itens a verificar. A relação entre a ética de Nietzsche e a certezas científicas daquele século, pensava nisso e só nisso. Mas Kleber M. tinha um trabalho a fazer e afundado num ódio profundo ao Doutor Zanetto sabia apenas prolongar sua inatividade em fingidos trabalhinhos irrelevantes. As pastas se acumulavam, é verdade, mas essas obviedades da ineficiência são sempre enevoadas demais às verificações de uma repartição pública. A irracionalidade humana historiada nos passados mais surpreendentes de gentes que suspendem os tiros da guerra para celebrar o natal em pulos e gritos com o inimigo, e volta aos chumbos tão logo a data célebre se alonge. Pensava nisso também, Kleber M., mas era o dia de preencher a ficha de apropriação de tempo das atividades da repartição. Mastigado por nadas sucessivos, seus pensamentos acabavam digeridos por essa tripa cheia de merda que era o dia ali dentro e expelidos todos sujos num enorme cu de despropósitos.

terça-feira, 28 de julho de 2020

Cego

Vejo, mas não quero ver.
Ouço, mas não quero ouvir.
O mundo grita absurdos.
Dentro de mim tenho as certezas que acalmam.
As prefiro.
As digiro.
As visto.

Meu irmão se encheu de estudos.
Diz besteiras. Fala vinte páginas.
O mundo é mais simples.
O meu mundo.
E o mundo dos meus amigos.
Os que acreditam em mim.
Os que atiram comigo.
Os que riem dos outros comigo.

Vejo, mas não quero ver.
ouço, mas não quero ouvir.
Aprendi a pensar com a própria cabeça.
Não para analisar explicações.
Mas para inventá-las.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Das fugas

Quantas vezes fugi?
Fugi para outras mesas.
Fugi para outros abraços.
Fugi para outros boa noites.
Fugi para bilhetes na porta da geladeira.
Fugi para outras cidades.
Fugi para outros trabalhos.
Fugi para o céu.
Fugi pelas estradas.
Fugi para o outro lado do mundo.
Fugi para outras músicas.
Fugi para outros livros.
Fugi para outras roupas.
Fugi para outros amigos.
Fugi para outras famílias.
Fugi para outros continentes.
Fugi para outros idiomas.
E riem na bagagem todos meus infernos.
Demônios tatuados fundo na minha solidão.

domingo, 26 de julho de 2020

Indício

Eu adoro os oprimidos.
Os que sofrem.
São um recurso infinito para aqueles que precisam de uma promoção fácil.
O político que aperta a mão do favelado.
E depois manda tratores para derrubarem a favela.
O que importa é o quanto circulará cada foto.
O que importa é que o político não estará presente no dia da demolição.
O padre que reza pelos oprimidos.
E a paz quieta e serena do ouro do Vaticano.
Eu adoro os oprimidos.
Sem eles, nossa hipocrisia não seria tão óbvia.

sábado, 25 de julho de 2020

Presente

Curioso que esta palavra tenha esses dois sentidos. Um presente como algo que se recebe de boa vontade de outra pessoa ou mesmo das circunstâncias. Um presente de aniversário. Um presente de Deus. Um presente do acaso. E presente também enquanto essa pontual e misteriosa fronteira entre passado e futuro. O instante presente. É uma coisa notável que o futuro seja infinito, o passado seja infinito, mas que a gente esteja preso no instante presente durante toda nossa existência. Já fiquei pensando se de fato existe essa coisa de passado e futuro ou se é tudo uma imaginação nossa, uma abstração. Aí percebi que nossas palavras não dão conta de investigar devidamente esses desdobramentos da existência. Porque existir é por definição um verbo no presente. Só existe o que é e o passado já não é, o passado foi. O passado não existe. O passado existiu e agora já se perdeu. Só sobrevive pelas marcas que deixou no presente. O que nos leva de volta ao encontro das palavras presente (de aniversário) e Presente (instante de tempo) que aqui diferencio apenas por meio de uma letra maiúscula (por falta de uma distinção melhor).
O Presente é o nosso presente.
Há ainda um outro uso, esse ainda mais curioso, e que talvez tenha algo a elucidar nessa questão. O uso da palavra em "fazer-se presente" Fazer-se presente ou Presente? Ou ambos?
Fazer-se presente, com p minúsculo, parece até arrogante. Fazer-se algo que seja visto como um agrado gratuito aos outros.
Fazer-se Presente, com P maiúsculo, pode ser visto como simplesmente manter-se vivo se a sua interpretação for a das mais frias e literais. Porém se você não está Presente, onde é que está? Aqui percebemos que nossa atenção, nossa energia mental, pode devanear facilmente a outros domínios. Precisamos dominar essas tendências para nos localizarmos onde realmente as coisas podem acontecer: o tempo Presente.
Fazer-se presente no Presente é um presente que você pode dar a si mesmo. Pratique.

sexta-feira, 24 de julho de 2020

Pão

Moreno sujo dentro de uma roupa graxada e fedenta lá estava o pequeno Cleyton pedindo a primeira moeda do dia. Que eu neguei. Um pão, sugeri em troca. Aceno sorridente com dentes e gengivas todos expostos. Entrei ao balcão da padaria e dali voltei com dois pães e cem gramas de presunto. Sumiu num sei lá onde o Cleyton, rumando direto prum sei lá onde. Matando a fome do corpo e morrendo da fome da alma. Em alguma miséria, afinal, somos todos iguais.

Miopiens

Vamos faturar um milhão quando vendermos todas as almas dos nossos índios num leilão.

As almas de nossos índios.

Os futuros das nossas crianças.

O petróleo dos nossos subsolos.

As águas dos nossos aquíferos.

As vidas das nossas florestas.

As riquezas de nossas empresas.

A bolsa comemora. Se a bolsa comemora, se as cotações estão melhorando, o que mais pode estar errado?

Que tipo de ser é esse com uma visão tão limitada da existência que olha apenas a indicadores financeiros e ignora todo o resto?

quinta-feira, 23 de julho de 2020

Em carvalho

Eu sinto raiva de você. Eu sinto uma raiva enorme. Não sei porque ainda não terminei. Não consigo entender. Acho que estou fraco. Acho que estou com preguiça. Acho que estou...
Aí entendo.
Aí entendo que sou eu. Sou eu, não é?
Porque faz sentido. Faz um sentido enorme.
Eu não vim até aqui por amor a você.
Eu vim até aqui para fugir de mim.
Estava cansado de sonhar. Estava cansado de amar.
Estava cansado de tentar sonhar.
Estava cansado de tentar amar.
É claro que um suicídio resolve, mas eu não sou desses. Sou certinho demais. Meus dramas são todos imaginados, nunca piso muito além das encenações.
Eu me matei.
Simbolicamente.
Retirei-me da minha vida.
Desapareci minha vida de meus arredores.
Outra casa.
Outra rua.
Outra cidade.
Outro país.
Outro continente.
Outro idioma.
Outras músicas.
Outros amores.
Outras vidas.
Outras vidas.
Outras vidas.
Sou eu a desistir de mim.
Por isso ainda não lhe deixei.
Porque você tenta me apagar.
Quando tenta me segurar na cama vendo NetFlix, tenta me apagar.
Quando não quer conhecer meus novos amigos e dividir a vida comigo, tenta me apagar.
Quando não se interessa pelo que eu escrevo, tenta me apagar.
Quando não me convida para os eventos de tatuagem para me colocar no seu mundo, tenta me apagar.
Quando não gosta que eu fique cantarolando pela casa porque os barulhos te incomodam, tenta me apagar.
Quando não vê nada de empolgante nos livros que compro, tenta me apagar.
Quando não se importa de viajar sem mim, tenta me apagar.
Quando não se interessa por ouvir meus passados, tenta me apagar.
Quando não tem vontade de aprender as coisas que eu amo ensinar, tenta me apagar.
E eu sem entender de onde vinha minha covardia em prosseguir.
Mas agora entendo.
Eu tentei me apagar. Você foi minha cúmplice maior.
Você é o caixão em que eu mesmo trancafiei minha alma, e pelo qual paguei caro, e agora acho uma desistência estúpida tentar sair.
Mas a vida, a revelia, sempre insiste: vive.

quarta-feira, 22 de julho de 2020

Das mortes

Estou lendo o que escrevi onze anos atrás. Lá pelos idos de 2008. Nem sei onde a vida estava. Sei que eu dizia outras palavras, de outros jeitos. Gosto de algumas das coisas que li. Mas gosto de um jeito que incomoda, de um jeito que assusta. Gosto como quem encontrou um livro interessante. Eu não sei quem escreveu. Estou descobrindo coisas que eu não imaginavam que existiam. E foram escritas por mim. Não sei se é uma catástrofe das minhas pobres sinapses ou se é uma transformação da minha alma. Só sei que sou outro. Que alguém de mim morreu. Não escreveria outras coisas como aquelas, com certeza. Mas não deixei de ser um extrapolador. Sei que a escrita é só um dos muitos cheiros da alma. O que aconteceu com minhas palavras, minhas vozes, meus olhares, meus amores, meus toques, minhas risadas, minhas atenções, meus medos? Tudo mudou. Tudo morreu. Tudo é outro. E nada reconhece ter sido outro.

Mistério

A Clarice Lispector, minha nossa, é altamente depressiva. Ler suas linhas desafia a alma a continuar onde está: arrasta para baixo com força. E aí sou forçado a pensar: o que é isso que há de belo na depressão?

terça-feira, 21 de julho de 2020

Dos silêncios

Instalei aplicativos para conhecer pessoas com quem praticar idiomas. Coisas modernas. Nada de ir a uma escola. Você inicia uma conversa com outra pessoa e continua. É como ir a um bar, mas sem o constrangimento, a cerveja, a conta e o bar.

E tentei. Eu juro que tentei. Falei com gente de todos os cantos. De todas as idades. De tudo o que é país. Mas estou cansado. Estou cansado de não encontrar eco.

- Olá! Vi que está interessada em aprender italiano e francês. Posso te ajudar! Estou estudando em um programa de mestrado em estatística. Falo esses idiomas. Estou em outro país. E você? Tem estudado com algum livro? Está interessada apenas em conversas cotidianas? Espero que possa me ajudar também.

- Oi. Blz.

Não há eco. As pessoas não falam mais. O que há com esse mundo?

Descobri que sou verborrágico. Talkative person. Mas qual é o contrário de talkative? Acho que as pessoas estão mortas.

Mortinhas de tudo, caminhando por aí.

segunda-feira, 20 de julho de 2020

Das amarras

Quando eu preciso sair de casa, quando eu preciso sair da rua, quando eu preciso sair da cidade, quando eu preciso sair do país, quando eu preciso sair do continente, quando eu preciso sair do meu idioma, quando eu preciso sair das minhas memórias, quando preciso sair de mim... entendo que tento escapar do peso esmagador da realidade. Das considerações sensatas. Da percepção de quão idiota é essa imaginação que não faz nada além de imaginar. Ai sim, finalmente, lá no longe confortável das loucuras, escrevo.

Silêncio

Como diabos vive quem não escreve? O que fazem com esses sentimentos todos que não podem ser falados a ninguém, que ficam escondidos, apertados, pressurizados? Fico sem escrever uns poucos dias e sinto um mundo explodindo dentro de mim. Preciso contar das saudades, tristezas, exorcizar meu mundo. Como vive quem não escreve? Isso fica tudo entalado lá dentro? Como é que funciona? Eu não sei.

domingo, 19 de julho de 2020

Pedido

- Faz uma literatura para mim?

- Você quer com vida ou sem vida?

- Depende... onde eu encontro você?

- Fico sentado na beirada das reticências só esperando para cair, sempre.

- Faz assim então, desse jeito mesmo, que eu me jogo atrás e caio com você até o fim da página.

quarta-feira, 8 de julho de 2020

Das simetrias do mundo

Não me canso de apreciar as complementaridades da natureza.

Algumas pessoas têm naturalmente um pensamento científico.

Outras pessoas constituem naturalmente um mistério para a ciência.

quarta-feira, 10 de junho de 2020

Há tempos

Me deixa, me larga, me solta
Não lembra que te amei,
Não lembra que cansei?!

Deixar de te amar
Custou deixar de amar!

sábado, 25 de abril de 2020

Nunca vou tirar esse amor de mim
O segredo não o apaga
Parece que ele bebe do segredo, se fortalece
E ela me adora
Diz isso
"Adoro você!"
E me conta das suas alegrias
E dos homens que ama
E sofro porque o amor é invisível
Não posso concluir outra coisa
O amor é invisível
Quase que involuntariamente,
É dela toda minha atenção e dedicação
E por ver tanto carinho
Sem ver nenhum amor
Contente, ela sempre declara:
És meu único triunfo

domingo, 29 de março de 2020

Os números

Quando os números de famintos sobe, não estão nem aí.

Quando a economia ameaça soluçar, não querem que os trabalhadores fiquem em casa, porque se não vão passar fome.

Enquanto nós paramos, o mundo veio nos olhar de perto.

Nas ruas, cervos, porcos, cisnes.

Golfinhos entraram nos portos, nos canais de Veneza.

O ar clareou.

Resta saber se vamos lembrar de olhar as estrelas a tempo.

sábado, 28 de março de 2020

Das emoções

Emoções não são argumentos.

Por isso não devem ser usadas durante a exposição de ideias, mas isso a filosofia e a ciência já aprenderam há muito tempo.

Muitas vezes, contudo, é inevitável que emoções transpareçam em discussões. Sejam elas cara a cara, ou mediadas pela rede.

Há algo de útil a aproveitar destes deslizes, a partir de uma observação simples.

As pessoas que não se importam com o seu stress e indignação são também pessoas que não se importam com a sua felicidade.

quinta-feira, 19 de março de 2020

Só isso

Meu tema é o mundo, é assim que é. É essa a razão. Criticam com gosto a indeterminação de meus temas. E daí? Eu não me rendo facilmente, de modo algum. Além de pensar sobre a natureza, sobre o amor, sobre a matemática, sobre a música, sobre as verdades e sobre a política, passo a pensar também sobre isso: sobre o tempo que as pessoas investem em criticar a indecisão de meus temas. Soma-se à lista um novo tema pois no fundo o tema é sempre um: o mundo. A experiência da vida. Isso não se divide. E, sinceramente, custo a entender lá nos limites de minha abstração como é capaz que outros escritores consigam tal limitação. Eles enxergam com preferência apenas uma fração específica do mundo? Ou será que a vida lhes ceifou a curiosidade em áreas muito mais dispersas?

Senta-se diante da mesa. Hora de escrever. Pode-se falar sobre a origem dos nomes de plantas raras em alguma ilha do Pacífico. Pode-se também falar sobre a polêmica envolvendo o preço do transporte público aqui na minha cidade. E pode-se inventar uma história totalmente maluca, talvez de mistério, talvez de amor. A questão é: por que este tipo de escolha deveria ser irreversível? A modernidade não chegou completamente aos escritores, talvez seja isso. Não é de estranhar por completo, claro. Afinal a escrita é muito menos apegada ao presente do que qualquer outra coisa. Telefones celulares são presos ao seu tempo. Preconceitos são presos ao seu tempo. Orientações políticas, essas coisas. Mas a escrita não. A escrita tem uma inércia muito mais lenta e os escritores, via de regra, são muito mais conectados ao passado do que qualquer outra pessoa. Ganham até de paleontólogos, pois não estão ligados aos restos presentes de um passado distante: estão mergulhados na essência completa do pensamento antigo tal como ele se cristalizou na escrita. Leia um clássico e torne-se um ser dos séculos.

Mas um dia a modernidade tem que chegar. E é da modernidade essa coisa de liberdade. Os Estados Unidos são muito mais livres que a democracia ateniense, que escravisava e negava votos. E a modernidade permite o divórcio em nome da felicidade, não é mesmo? Pois bem, todos os dias me divorcio. Peço o divórcio dos estilos com os quais me comprometi ontem e vou explorar novos terrenos. Talvez eu volte aos terrenos antigos, claro. Mais que um amor simplesmente livre: promiscuamente libertino. É assim mesmo. Meu prazer com as letras ultrapassa o gozo sexual. E é por isso mesmo que não ligo para as críticas, não há como. Porque não consigo desligar meu sorriso de prazer. Que eles reclamem, reclamem e reclamem enquanto eu me deleito com um mundo infinito de assuntos por descobrir e esmiuçar.

quarta-feira, 18 de março de 2020

Olá

Obrigado. Obrigado? Você não sumiu. Podia ter desaparecido. Podia ter simplesmente me esquecido, passado a me ignorar. Não fiz nada para merecer sua consideração. Não fiz nada que fosse realmente digno de uma espécie de perdão. Dessa espécie de perdão. E aí está você, falando comigo novamente. Trocando simpatias como se o tempo fosse um outro universo diferente de nós. Diferente do que somos. Talvez eu não deva agradecer. Talvez tenha sido sempre isso: eu quis uma existência nova. Fugi daquela existência. E aí está você novamente. E eu deveria me revoltar, pedir que me deixe em paz. Largue de mim. Deixe tudo pra lá. E aí está você, falando comigo normalmente. Só que, no fundo, não é normal.

terça-feira, 17 de março de 2020

Dúvida

Qual o tamanho de uma mentira? Segredo é mentira? Mentira que se mente para si é mentira como todas as outras? Mentira por incapacidade de alterar a própria realidade, por descontrole patético dos próprios impulsos, por inabilidade vergonhosa em dominar os rumos dos sentimentos, é também mentira? Há algo de errado em mentir sobre o amor?

segunda-feira, 16 de março de 2020

De pedras e almas

Está lá, é claro que esta geometria que procuro está lá dentro escondida. E a lógica nos força a observar que: é, portanto, menor que eu. Qualquer ilusão de grandeza é nada além disso: ilusão. Coisas da forma, mentiras geométricas. É essa brutalidade toda das adições incoerentes que me fazem uma aparência menor. Há muito a retirar. Os receios, as vergonhas, as inseguranças, as dúvidas. Tudo isso a golpes de forças variadas. Violências pontiagudas. Talvez por isso a mediocridade seja tão confortável. Não é devido à dificuldade de a ela adicionar coisas. Mas devido à dor de se retirar o que se deve ao esculpir a alma. Temos todos tesouros dentro de nós.

domingo, 15 de março de 2020

Free

Vamos, seu miserável. Não se importe tanto assim com coisas com o mundo das idéias. O que é o amor para você? O amor é... o amor é algo intransponível. Veja só que bela descrição. Forte, poderoso e mesmo eterno. E ainda assim algo de cruel está aí metido nessa descrição, não é? Intransponível... Não se diz isso de um rio quando não se quer chegar ao outro lado. Você quer chegar ao outro lado porém não consegue. Há algo no amor que, vezes e vezes, lhe vence. Intransponível. Não se importe com isso.

Por que você faz pesar no presente todas as invenções tolas de seu passado excessivamente imaginativo? Deixe a vida ser o que é. E nada mais.

sábado, 14 de março de 2020

Idiotas

Eu passei minha vida toda estudando. Estudando e buscando viver as experiências que mais gosto, que mais mexem com minha imaginação.

Cheguei longe.

Cheguei longe e não saí do lugar.

Porque não estou preocupado com as coisas que preocupam as outras pessoas e isso é um grande mistério para mim.

Desse mistério eu já sou consciente faz tempo. Mas tenho feito novas descobertas.

Com as recentes mudanças no mundo, com os engasgos políticos e com essa epidemia que parou aviões e fechou fronteiras, percebo, finalmente, que estou cercado de idiotas.

Não falo idiota em um sentido superficial, comum. Não me refiro àquelas pessoas que falam besteira, pela besteira em si. Eu entendo perfeitamente o universo dos leigos. Eu sou encantado pelos leigos, os leigos genuínos. Os que têm dentro de si a curiosidade ainda viva de um mundo inteiro que não conhecem, um mundo maravilhoso cheio de mistérios.

Mas há uma nova categoria. A dos engravatados que vivem martelando o Excel e não entendem nada, absolutamente nada, de números.

"Só morreram 2 mil na China! Meu, a China tem 1 bilhão de pessoas!"

O cara trabalha com Excel. Tem diploma de nível superior. Dá cursos.

E é um absoluto idiota. Quantos foram contaminados para que 2 mil morressem? Todos os 1 bilhão de chineses?

"Cara, a gripe comum mata mais!"

Mas quantos estão expostos à gripe comum? E por que é que uma doença que mata mais deve implicar na aceitação de uma nova doença que, ainda que mate menos, vai matar pessoas que não morreriam de nenhuma outra causa?

Por essa linha de raciocínio imbecil qualquer barbaridade se justifica.

Quanto um avião cai, morrem só 200. Todos os dias, de câncer, morrem muito mais!

Quando um terrorista ataca os EUA morrem só 3 mil pessoas. Todos os dias, nos acidentes de trânsito, morrem muito mais que isso!

Até algum tempo eu tinha um certo otimismo quanto a essa maravilhosa era da informação e achava plenamente aceitável que tantas pessoas falassem besteiras da física quântica. Afinal entender as equações de Schödinger não é pra qualquer um. Entender equações diferenciais, mesmo as simples, não é pra qualquer um.

Mas estou vendo o quanto as pessoas são imbecis em domínios em que tem a obrigação de domínio mais profundo. O mundo está lotado de idiotas.

sexta-feira, 13 de março de 2020

Mentiras

Aceitei a acusação mais estúpida, mais ridícula... Você está tentando fazer com que ela termine com você! Que absurdo! Mas o que mais eu poderia fazer? Contar em detalhes toda a mecânica inconfessável dessa história? Dizer, com todas as palavras, olha, na verdade eu sempre gostei de você, mas aceitei que não era possível. E tentei me apaixonar por outras pessoas. Estou tentando me envolver com minha namorada, mas não consigo. Não tiro você da cabeça. Como é que se confessa um absurdo desses? Fiquei quieto. Ficar quieto não é só esconder, é mentir também. E menti para quem odeia mentiras. Estou mal.

quinta-feira, 12 de março de 2020

Hipocondrismo

Você abre o diário e vê ali um passado tosco que não é você. Infantil, inocente, patético. Eu leio minhas coisas velhas e simpatizo com o passado. Hostilizo o presente. Sou infantil, inocente e patético hoje mas não sinto que o era no passado. Especialmente quando leio minhas letrinhas velhas. Pode haver qualquer constatação científica nessa observação ou trata-se de uma hipocondria literária, por assim dizer?

quarta-feira, 11 de março de 2020

Normal

Um remédio para dor de cabeça tem para mim uma eficiência assustadora. Eu olho para a cartelinha de comprimidos e então, horrorizado com a idéia de colocar sabe-se lá que substância dentro do meu cérebro, já começo a melhorar.

terça-feira, 10 de março de 2020

Amar

Amar
Há mar
Há mardade
No mar
Que invade
Esta cidade

segunda-feira, 9 de março de 2020

Medíocre profissional

Estudei física, mas não sou um físico capaz de calcular coisas sobre buracos negros ou realizar simulações de campos magnéticos em estrelas ou demonstrar teoremas de álgebra linear em complexas provas medonhas.

Estudei economia mas não escrevi artigos sobre índices de derivativos, não ganhei dinheiro nas bolsas e não impressionei professores por recitar um monte de teoremas nos quais não acredito.

Sou engenheiro e nunca passei os domingos regando um jardim verde de camisa xadrez e pés limpos.

Sou músico baterista e me atrapalho até com música dos Beatles.

Sou turista e já passei várias vezes pela Itália e nunca estive nem em Pisa, nem em Veneza e nem em Napoli.

Sou um medíocre profissional. Me recuso a ir fundo em qualquer caverna.

E sigo tentando mapear o parque todo.

Passeio

Setenta e três anos depois do fim da guerra estou aqui à beira do Vístula com a improvável companhia do meu pai. Nada de bombas, de ruínas, de choro. Estamos apreciando a profunda calma da cidade. A profunda paz de caminhar por uma cidade silenciosa em que as pessoas estão apenas cuidando das suas próprias vidas. Caminhando, aproveitando os cafés e restaurantes com mesinhas na calçada neste tórrido verão.
Meu pai se impressionou ao ver as máquinas de guerra expostas. Desse avião, lemos em uma plaqueta, foram fabricados mais de cinco mil. Daquele tanque de guerra ali foram três mil unidades. Daquele canhão foram quatro mil. E meu pai, então, observou:
- E para fazerem uma dúzia de escolas para refugiados, hoje, dizem que não dá.

domingo, 8 de março de 2020

Blindagens


A Ignorância grita por cima das vozes que a salvariam.

sábado, 7 de março de 2020

Modernidade

Estou em um país da Europa. Primeiro mundo. Tudo moderno. A ciência, a tecnologia e a política da estruturação social a serviço da sociedade. Da sociedade?

Vou comprar uma passagem de ônibus. Pego o celular. Um site, outro. Cadastro. Senha. Repita o e-mail. Número do cartão de crédito. Código de segurança. Confirma.

Chego ao local do ônibus pouco antes do horário. Estou com fome. Tudo ao redor é concreto. Não há muitas pessoas por perto. Elas já sabem da pontualidade dos ônibus e não ficam chegando muito antes da hora.

Estou com fome. Penso em comer alguma coisa. Onde tem um barzinho? Não há barzinhos por aqui. Não existe coxinha no primeiro mundo. Nada de enroladinho com presunto e queijo amolecendo na umidade da estufa.

Logo vem o ônibus.

Pego o celular. No e-mail de confirmação da passagem há esses códigos quadriculados. Um código de barras só que mais complexo. O motorista toma em mãos o próprio celular e aponta a câmera para o meu. Lê o código e, assim, vê meu nome e diz meu assento: dezessete. Embarco.

Duas horas depois o ônibus sai da estrada. O motorista aproxima um microfone de sua boca e diz, em uma voz baixa, quase murmurada: parada de quarenta e cinco minutos, solicito a todos que tomem o que desejarem levar pois o ônibus será fechado para proteção dos seus bens que permanecerem a bordo, agora são quatro e treze, então retomaremos nossa viagem às quatro e cinquenta e oito.
Impossível não comparar com o Brasil. Números precisos. Matemáticas precisas. No Brasíl o ônibus pararia por "meia horinha" e partiria "lá pràs cinco".

Entro no restaurante. Há apenas duas pessoas trabalhando lá. Uma senhora no caixa do mercado e uma moça na lanchonete. Há diversas máquinas para bebidas quentes. Você insere moedas ou aproxima o seu cartão sem contato - uma espécie de bilhete único pra valer mesmo - e recebe sua bebida escolhida. A senhora no caixa tem seu trabalho automatizado também. Diz bonjour a todo mundo que chega. Passa os códigos de barra na leitura. Depois recolhe o dinheiro e dá o troco ou pergunta "cartão? insira aqui, por favor". E depois agradece, sorridente. Merci, bonne journee.

E assim segue-se. As pessoas movendo-se como peças automatizadas de um sistema maior. Insere o cartão aqui, ali. Moedas. Come, embarca. Celular. Likes. Cliques. Não se ouvem conversas. Não se ouvem risadas. Não se ouvem as vidas.

sexta-feira, 6 de março de 2020

Nuvens

Eu tinha os olhos fixos no palco. Nela.

Parte de mim achava ridículo como ela se mexia feito boneco de posto de gasolina, jogando os braços e a cabeça para os lados como se aquele subsolo velho de paredes esfarelando estivesse sendo invadido por um Katrina. Wind. Wiatr.

Parte de mim entendia que se mexer daquele jeito livre e prazeroso, na frente de estranhos, era uma coragem maior do que eu jamais teria. Eu sentia inveja. Não era um papel. Não era ma interpretação. Não era o espelho das expectativas alheias. Era ela. De dentro pra fora.

Aquela liberdade brilhava uma luz que fazia entender o quão preso eu estava em mim.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Se os Japoneses viessem aqui

Alexandre Gracinha é um jênio do jôrnalismo.

Tá bom, estou de mal humor com ele mas nesse ponto específico (nesse) estou exagerando e sei disso. Porque na palestra em que ele fala que se os japoneses viessem para o Brasil iriam transformar "isso aqui" em uma potência mundial em 10 anos, a intenção dele ao final foi dizer "eles não virão, a responsabilidade é nossa!". O que é uma postura mais louvável e defensável, no geral. Mas a tese sub-entendida é uma tese perigosa e que está profundamente entranhada nos nossos grilhões psicológicos.

A tese da individualidade, da meritocracia, a tese de que as vítimas são culpadas porque são os grandes responsáveis pela sua condição através de suas escolhas e atitudes.

Não que não exista alguma verdade aí.

Eu acho, sim, que o pobre brasileiro é culpado por ser pobre.

Mas não é o papinho simplório de que ele é um vagabundo. Porque o pobre brasileiro rala pra cacete. Eu conheço vários.

Vi uma família vivendo há gerações dentro de uma fazenda de cacau. Pagavam aluguel do casebre em que moravam lá e pagavam também pela comida. O que sobrava mal dava para roupas, remédios, e não sobrava para mandar os filhos para a escola mais próxima, a mais de 40 km dali. O dono da fazenda, um playboyzinho cuja família também vivia ali há gerações, havia morado mais de 5 anos na Inglaterra num intercâmbio para aprender inglês mas não se sentia seguro em arriscar o idioma gringo. Seu orgulho pessoal? Contar das baladas de Salvador em que pagava mais de R$2.000,00 para entrar. E ia todo final de semana. E reclamou quando o governo do PT corrupto quis aumentar o salário mínimo de seus trabalhadores em R$50,00.

Conheci um cara que tem vários imóveis em São Paulo. Comprou tudo com o dinheiro que fez com uma empresa de informática que montou ainda nos anos 80. Ele conta a história de quando instalou um HD em uma empresa, recebeu pelo serviço e, com a grana na mão, comprou um carro a vista. Bons tempos, não é? Nos anos 90 ele comprou imóveis, mas depois a empresa fechou porque não acompanhou as mudanças tecnológicas. Ele gostaria de continuar no ramo da tecnologia. Já com a idade mais avançada, muitos se contentariam em viver de aluguel. Outros tentariam atividades tradicionais. Abrir um restaurante. Tentar simplesmente investir dinheiro. Não. Ele resolveu estudar Física. Foi fazer uma graduação e emendou um mestrado. Tudo com o sonho de montar uma nova empresa de tecnologia. Idéias e visões de mercado não lhe faltaram. Mas toda vez que fez um estudo de mercado se deparou com os investimentos necessários e com os juros que viriam dos empréstimos. Sábio, pisou no freio.

Mas muitos não pisam. Conheço um empresário que teve mais de 40 funcionários em uma empresa de automação. Deve as meias e as cuecas para o Itaú mas culpa os "vagabundos do bolsa família" pelas catástrofes do país. Veja bem... ele dá todo o dinheiro que gera para um banco que lucra mais de R$25 bilhões por ano (R$26.583.000.000,00 em 2019), mas acha que o que atrapalha mesmo o avanço da nação são os R$25,00 que cada pagante de imposto no país pagou, em média, ao Bolsa Família no auge do programa. Com o detalhe de que super-ricos, pessoas físicas ou empresas como o Itaú, não pagam todos os impostos que deveriam.

Alexandre Garcia não contou o principal. Não contou COMO os japoneses ou qualquer outro povo faria disso aqui uma super potência em 10 anos.

Porque aí ele teria que explicar como essas pessoas se revoltariam com os absurdos dos nossos governos e instituições financeiras para tomar de volta o país às mãos, e essa é uma coisa que ninguém quer comentar.

quarta-feira, 4 de março de 2020

Ainda pulsa

Não detectamos falta de oxigênio mas constatou-se redução nas risadas.

Não observamos variações na concentração de hemácias mas notamos que faz tempo que não canta em casa.

Não foi medida nenhuma variação no número de glóbulos brancos por milímetro cúbico, porém observa-se que anda lendo menos.

Não foi medida nenhuma variação de temperatura corporal mas há uma redução substancial no somatório de minutos em que troca olhares com outros.

É grave. Muito grave. Está próximo de um estado vegetativo.

terça-feira, 3 de março de 2020

A caneta quebrada

Voltei para casa arrastando pernas pesadas.

Pernas amassadas de iniciativas fracassadas.

Pernas desorientadas pelos tempos e sonhos.

Joguei as pernas no sofá.

Olhei em volta.

Olhei a pilha de papéis.

Lembrei dos outros tantos que se foram.

Cartas. Contos. Poemas. Teses de mestrado, doutorado. Artigos para o jornal local. Estatuto para a ONG.

Arrastando-me pelo tapete como se já tivesse terminado a dose noturna de whisky cheguei até a escrivaninha.

Abri a gaveta. Peguei a caneta.

Corpo metálico, prateado. Presente de uma amiga que foi morar na França.

Terra de gente que escreveu textos filosóficos. Teriam usado uma caneta igual? Não se trata de uma medíocre esferográfica. Trata-se de uma caneta tinteiro. Dessas com ponta do tipo "pena". Dessas que tem obrigação de escrever coisas belas.

Olhei a forma curva de suas pontas. O minúsculo sulco por onde escoa a tinta. Que outras coisas essa caneta teria escrito se tivesse encontrado as mãos de alguém talentoso?

Ali ao lado, no chão do quartinho de bagunça, um martelo.

Não hesitei. Foi no chão mesmo.

Um golpe certeiro e aquela peça de metal havia perdido a simetria perfeita de sua forma. Morriam ali minhas palavras futuras.

Depois que elas apodrecessem seria hora de adubar as folhas com novas tintas e torcer para chover na hora certa.

segunda-feira, 2 de março de 2020

Máquina do tempo

Eu voltaria ao passado

Só pra dizer o que eu não disse

domingo, 1 de março de 2020

Cegos

Não importam os dados. Quando os dados vão contra o que você quer acreditar então os dados estão errados. Não importa a lógica dos argumentos. Você passará a me ofender ou tentará usar alguma retórica barulhenta para sair triunfante da conversa.

Ser racional é trabalhoso, cansativo e chato. Ainda mais quando um raciocínio frio e honesto nos leva a conclusões que vão contra nossas crenças mais arraigadas.

A continuidade que advém dessa resistência... Essa continuidade eu chamo de inércia. A continuidade no comportamento oriunda de uma resistência a absorver as boas lições do mundo.

Assim é que a humanidade segue poluindo, segue oprimindo, segue concentrando dinheiro onde não deve, segue jogando fora sua riqueza cultural e histórica.

sábado, 29 de fevereiro de 2020

Traduzindo

Quando eu estava cansado de tudo resolvi ir para outro mundo.

Mas não havia outro mundo. Tem só esse em que pisamos todos (a despeito dos diferentes sapatos).

Então resolvi ir para outro país. Um que falasse outra língua. Um que fosse completamente intinteligível, tanto quanto possível.

Foi ótimo.

Senti-me, finalmente, pisando na civilização.

Uma cidade educada, onde eu fazia minhas compras, onde eu frequentava cafés com segurança, onde eu caminhava sem medo de que fossem roubar minhas mochilas, e onde as pessoas conversavam em paz.

De fato as pessoas eram profundamente interessantes. De que conversavam com tanta seriedade e com tanta atenção?

Mas, com o tempo, claro, fui aprendendo o idioma. E essa foi a tragédia.

Descobri que, a despeito das palavras diferentes, as pessoas aqui são imbecis e enfadonhas igual lá. A humanidade anda rasa demais.

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Algumas pessoas começavam a cantar junto, eu podia ouví-las. O ambiente estava cheio mas não estava lotado. Cheio sem ser muvucado. Eu não precisava mais olhar. Fechava os olhos e cantava sem me importar com a voz enferrujada depois de tantos meses quieto olhando para livros e assistindo documentários no YouTube. Quando abri os olhos a vi. Pulava e sorria e jogava os braços para o alto. Era feliz como se não pertencesse a esse povo sério e introvertido. Não que as pessoas aqui não dancem. Mas ela não era do nosso grupo. Simplesmente havia se aproximado e dançava e sorria. Que tipo de gente faz isso?

Depois da música voltamos todos às mesas. Ela estava sentada atrás da gente. Bancos de madeira. Conversamos. O que fazemos aqui, os estudos, os trabalhos, os idiomas, onde conhecemos nossos amigos. E aí eu quis saber de onde ela veio.

- Você é daqui da cidade mesmo?

- Não. Vim pra cá há dois anos.

- Veio estudar?

- Não, eu vim fazer tratamento. Estou com câncer. Os médicos dizem que talvez eu viva dois anos. Eu acho que vou viver mais. Mas não sei quanto. Quando você fez exame de sangue pela última vez? Amigo, vá fazer um exame de sangue! Eu estaria bem melhor se tivesse descoberto antes.

Ela era a pessoa mais feliz ali. Sorria, dançava com as pessoas, cantou sorrindo e rindo diversas músicas. Brindou jarras de cerveja com diversas pessoas.

E eu a olhava e olhava as pessoas em volta. Sem saber direito o que se passava dentro de cada um. De suas psicologias e de suas biologias. Mas eu via o que aflorava para além da superfície transbordando em volta. E era bem claro de quem emanava mais vida ali.

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2020

A lot!

-Do you think about coming back one day? After you finish your study?
-No, I just don't have plans regarding these; I think more of what I want to do but I have mo precise idea of where and how; by now my life here is good in this sense, I have more time than in Sao Paulo.

(one day later)

-I gave a short answer yesterday because I was going to sleep. But this is a complex question. The thing is... more and more... I feel like I have no plans. Of course I miss family and friens, and I will see again many times. But regarding my life, my plans never worked the way I wanted, and the most interesting things I did were never planned. I feel like plans are just an illusion and that it is a bit dangerous thinking too much about them; we create potential for frustration or become blind for other possibilities. So, I have no ideia about the future. I might stay here the rest of my life, or change countries many times. I have no idea what will happen, and I have no plans. I always want to be able to learn; I feel pleasure in teaching, in interacting with people in a good way... so I want more of these things; but I don't know more about details... about where, who, etc... Does it make some sense?
-For me, a lot!

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

Das perguntas (8)

Como pode pessoas que receberam bolsas de pesquisa em mestrados e doutorados, e reclamavam dos baixos valores, serem contra programas como o Bolsa Família, que dá uma quantia irrisória para famílias que mal tem o que comer? Trata-se de hipocrisia mesmo? Trata-se de uma incapacidade reflexiva, de comparar a própria circunstância com o resto do mundo? Trata-se de um acúmulo de percepções distorcidas do mundo? O que está havendo?

terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Caronavirus

-Cheguei! O voo do Brasil não estava muito lotado. De Roma para Milão foi tranquilo. Agora estou quase na região das montanhas, mas foi incômodo. No meu ônibus só tinha japonês e chinês. E eu estou sentindo uma certa dor de cabeça. Sei que é normal, mas não tem como não pensar em tudo isso e não ficar assustada. Os mercados estão vazios e as ruas desertas. Eu não imaginava algo assim, mas também não quis cancelar minha viagem. Vamos ver.

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2020

Sarna

Enriquece quem não deveria enriquecer. Isso em si já não é razão demais para indignação? Eu não acredito mais no futuro, não como um futuro melhor, ideal. Não como uma direção de progresso guiada por sei lá quais energias estranhas e benevolentes. Há agora e sempre haverá os ladrões, os corruptos. São as oportunidades convidando nossa índole a relativizar princípios. No fundo, não existe ser humano ruim. Existe sim é uma enorme desigualdade de oportunidades, e não me refiro aqui, não seja inocente, às oportunidades oficiais, justas e nobres. Me refiro a oportunidades reais, não importa qual a natureza que tenham. José Sarney, pague um jantar para mim também. Com o dinheiro da União. E depois pague à União, de sua própria suada carteira, para vender por aí essa imagem de nobreza. Não acredito no futuro, mas já me acostumei ao presente.

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Meio

Consideremos aqui que o mundo está caminhando para o fim. O fim da humanidade, ao menos. Isso se dará por meio de uma catástrofe climática. No momento parece que o clima está apenas um pouco desregulado porém, como em vários sistemas mecânicos, uma pequena vibração inicial precede a ruptura súbita logo adiante. Dentro desse contexto, o que é lícito para fazer da vida? Sendo mais claro: se você sabe que esse é o curso atual dos fatos, o que deve fazer? Deve obrigatoriamente buscar se empenhar para reverter o quadro de alguma forma? Deve mobilizar a humanidade, deve tentar a todo custo reverter esse quadro? Ou deve simplesmente buscar fazer as coisas que são mais prazerosas para você na vida e pronto? Você olha ao redor e tudo o que as pessoas, a grande maioria, está fazendo é exatamente isso: estão cuidando das próprias vidas. Religiosos discutem religião. Fanáticos políticos brigam por títulos abstratos de suas terras ou de seus líderes. Empresários avaliam lucros e cadeia de suprimentos e escolhem bens para comprar. Pessoas preparam a próxima festa de aniversário dos filhos. Escolhem presentes para amigos. E assim vai. Quem se preocupa efetivamente com o futuro? As pessoas cujo cargo envolve, dentre outras atribuições, diretas ou simbólicas, preocupar-se com o futuro. Internautas teclam sobre o futuro, porque é isso o que um internauta faz: ele tecla. Digita símbolos de atitudes na tela e sente-se como se merecesse o reconhecimento por ter efetivamente tomado atitudes ambientais. O carro Eco-Sport. Pratique Eco-Sport. Tenha um carro que, como todos os outros, é movido a combustível poluente. Ande sozinho num carro enorme, que ocupa um baita lugar nas ruas, sem dar espaço aos outros. Mas que tem um nome legal. Isso acalma a consciência. E aí? O que deve fazer quem enxerga todo esse processo? Deve avaliar a chance de remar contra a maré? Ou aceita que o mundo vai para o beleléu e aproveita os últimos instantes?

sábado, 22 de fevereiro de 2020

Nutrição

- Olha aqui!

- O que é?

- São uns sonhos, toma!

- Come isso com o que?

- Com sorrisos, vai! Experimenta!

- Hummmm, é bom! Mas não engorda?

- Engorda, engorda sim. Por isso a mamãe falou que não pode comer muito, se não você fica grande grande grande cheio de sonhos na barriga e não sai do lugar.

As vozes dos outros

Ela leu um trecho de um livro pra mim. Um trecho da Clarice. Como não me encantar? Resolvi ler para ela também. Não era nada ao pé do ouvido. Enviávamos leituras pelo WhatsApp. Essas distâncias de hoje. Enviei para ela trechos bem escritos do Antônio Prata e coisas engraçadas do Gregório, do Millôr. Enviei reflexões profundas do Erasmo e de Platão. Ela enviou trechos da Virgínia, poesias do Drummont e coisas de autores que eu nem conhecia. Claro que nos apaixonamos. Mas o sucesso era o próprio anúncio da falha. Nos apaixonamos pelas vozes dos outros sem antes pararmos para ouvir, com a devida atenção, nossas próprias vozes.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2020

Das perguntas (7)

Quantos escravos temos a nosso serviço, hoje, sem que nos importemos?

Fazendo nossos sapatos?

Colhendo tudo, da nossa alface ao cacau para nosso chocolate?

Fabricando nossos celulares e computadores para que nos joguemos ao sofá rindo de vídeos idiotas?

Empacotando nossas encomendas em gigantescos centros de distribuição, sem tempo para ir ao banheiro, sem tempo para almoçar em paz, sem o direito de conversar com colegas, sem o direito de adoecer?

O mundo de hoje é um mundo mais justo que o mundo do passado. Não nos sujeitamos à injustiça de olhar nossos escravos nos olhos. Como isso aconteceu?

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Vários anos

Fui sempre assim. Escrevi cartas para surpresar um pedaço da tarde. Deixei rosas em copos d'água para acordá-la mais feliz. Amei de várias formas bobas e desesperadas. Atenção, atenção sem fim. Do que precisasse teria de mim.

- Eu acho que você é um pouco egoísta. E você não se permite viver suas felicidades. Me preocupo com você. Com você ter uma velhice feliz, sabe... Não é bom a gente se fugir tanto assim das alegrias!

Quem diria que um dia eu ouviria isso de uma namorada?

- Você está há muito tempo sem escrever no blog, amigo!

Eu, sem escrever há muito tempo? Ah, sim... É que eu tenho outros blogs. É que eu tenho outros eus. Custa ser um outro esse preço de não amar. E ainda assim, sou mal sucedido, não consegui de tudo. Lembranças me alcançam em abraços demorados de sonhos que simplesmente não são. E insistem em sonhar apoiados num vazio que derruba meus pensamentos com mais frequencia do que gostaria.

Sou péssimo em esquecer.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2020

Air

Respirar com calma, que o futuro não precisa acontecer todo agora. Fica essa sensação de que precisa, aperto no peito. Mas não, não precisa. E se eu morrer daqui a pouco? Se eu morrer, morri. Férias. A derradeira exploração do além. A condenação eterna da alma. Sei lá o que vai vir. Vai vir algo: que venha. Mas há também o sério risco de ficar vivo. E na hipótese de eu não morrer daqui a cinco minutos é melhor eu começar a cuidar, desde já, de viver uma vida mais tranquila, menos ansiosa. É verdade que o Oscar Wilde dizia que a ansiedade era insuportável e que, por isso mesmo, ele esperava que ela não terminasse nunca. Mas eu estou em um estado um pouco diferente. Estou em um nível de ansiedade em que quero publicar cinco livros. Quero concluir o mestrado e o doutorado publicando papers toda semana. Quero compor músicas. Quero sair para baladas e conhecer pessoas interessantes, viajar. Quero fazer trabalhos ousados, bolar soluções criativas para os problemas da empresa. Tudo assim para ontem. Quero comprar um novo computador. Um novo caderno de notas. Alugar cinco filmes para ver amanhã à noite. Planos, planos, planos... Os planos sufocam e isso acontece por conta dessa bizarra distorção de tamanho entre o futuro todo, terreno a ser preenchido com os planos, e o pontualmente minúsculo instante presente: que só comporta um pedacinho de agora por vez. Estou apertado aqui, e só quero afrouxar o nó da gravata e jogar fora o cinto da calça, colocar uma bermuda de fim de semana e respirar um pouco mais aliviado.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2020

Dos espíritos

Sim, sua mediunidade está afetada pelo tempo que está sem praticar. A viagem. A operação. Tudo atrapalha. Não deve ser fácil treinar o cérebro para se enganar. Não deve ser fácil reinterpretar todas as suas sensações internas, seus impulsos, seus vários eus, como manifestações de forças transcendentais.

Sim, sou um cético chato. Eu não devia me importar com nada disso. Tenha a vida que quiser. Tenha as mentiras que quiser. Mas eu me importo. Para mim isso significa muito. Jogar fora crenças é permitir que se jogue lixo no mais importante dos terrenos: o terreno mental. Sim, sou a favor da liberdade de pensamento. Sei que pensa diferente de mim e respeito isso. Deixo que continue pensando assim. Mas eu deveria, por acaso, aceitar isso numa boa? Não, não consigo. É triste que sua mente esteja perdida para essas mentiras.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Um talvez

Sou louco com uma sazonalidade indefinida, já aí uma contradição saborosa cheia de desacertos. Em algumas noites estou mais perto de certos imaginários. Noutras sou mais amordaçados pelas preguiças de existir. Tenho rascunhos jogados em meu computador em pastas que escondem uma bagunça virtual que um quarto não suportaria, fosse tudo aquilo papel jogado. Sou rascunhos talvez em um sentido mais amplo.

sábado, 15 de fevereiro de 2020

Tic

O quão lícita é a solidão? Ela me ligou agora.

Está indo a um bar aqui do lado, com amigos, amigas da faculdade, do laboratório em que ela trabalha.

Eu só quero ficar aqui sozinho. Sozinho escrevendo. E eu poderia estar achando um outro tema para escrever, algo mais interessante, mais reflexivo e menos pessoal, se não fosse ela me estressar com essas ligações e mensagens me convidando.

Eu não quero ir! É tão errado assim?

Eu quero um tempo para mim. Não gosto dessas incumbências de namorado.

Não gosto mesmo. Quero ficar sozinho aqui. Estou lendo uns quatro ou cinco livros no momento. E mal virei a página de três deles hoje. Estou estudando música. Ou deveria estar. Quero a tranquilidade de me dedicar a essas coisas.

Poderia organizar melhor meu dia. Mas como fazer para conseguir isso, se eu trabalho das sete e meia da manhã até as seis da tarde, chego em casa às sete da noite. Aí gasto um tempinho para jantar, lavar a louça, tomar um banho... E fazendo tudo isso sem pressa, mas sem perder tempo, só estou livre às oito da noite.

Oito da noite.

A hora em que meu dia começa.

Mas aí então lá pela meia noite, mais tardar, preciso estar dormindo de novo. Porque no dia seguinte tenho que acordar cedo para trabalhar. Então essas coisas todas que quero fazer, essas coisas todas que espero conseguir colocar no meu dia, ficam todas apertadas nessas poucas horas...

E aí o dia já acabou.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

Diário de viagem genérico

Andei por lugares que não conhecia. Fiz fotos demais.

Quando vou olhá-las? Preciso selecionar vinte.

Dez.

Cinco.

Duas.

Uma.

Apenas uma foto de hoje. Para a posteridade é o que basta. As belas memórias não são resultado de uma vida bem vivida mas sim de um belo trabalho de edição que fazemos sobre a real bagunça de nossa história.

Passei parte do tempo parado em um bar. Pedi uma cerveja. Conversei com algumas pessoas. Ser um viajante é uma bênção para as conversas: é a deixa universal para se iniciar um diálogo com um estranho.

Você vem de onde? Está de férias ou a trabalho? Há quanto tempo está aqui? E como aprendeu este idioma assim tão rápido? E quando vai embora?

Mas é também uma maldição: é difícil, muitas vezes, levar a conversa para além desse calabouço de obviedades. Passo em uma livraria. Compro os livros com a história do local. Hoje estou empolgado. Mas quando vou ler tudo isso? Quais dias serão inúteis o suficiente?

Não posso ler a biblioteca do mundo só porque passei por ele. Preciso aprender a selecionar as coisas.

Talvez seja assim também com as pessoas. Preciso parar de me interessar por todo mundo ao redor.

Estou perdendo tempo com leituras inúteis e deixando passar as que prestam.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

O teatro da vida

Estreou ontem. Apesar da minha pouca fé, coisa do ofício de crítico, fiz uso das minhas credenciais para conseguir um ingresso grátis e deixei o racionalismo econômico consumar seus equívocos. O teatro estava lotado, e a julgar pelos outros eventos culturais que lotam ultimamente, já tínhamos aí um indicador natural da qualidade a esperar para a peça.
Uma hora e meia. A peça começa com um bebê e termina com um funeral. A vida inteira de uma pessoa. A idéia, assim colocada, parece atrativa. Mas assim como acontece com a vida da maioria dos bilhões de humanos deste planeta, nada de significativo realmente aconteceu. Foi vítima de bullying na escola. Uma namoradinha que não deu certo. Discussões em família. O primeiro emprego. Um casamento que não deu certo. Filhos. Sonhos comentados e que não foram adiante. O marasmo do trabalho. Três longos minutos em uma fila para exame se remédios já na velhice. Fazendo as contas, pelo tempo da peça, foi a representação de uma espera de 3 anos ou quase isso - exagero.
O personagem principal não tinha nome. Um anonimato que busca a generalidade? Não é assim que se faz literatura. É ao ilustrar bem um particular que a arte explode na mente da platéia uma compreensão pela geralidade. Generalizações explícitas pertencem ao domínio dos chatos textos de sociologia, antropologia, estatísticas sociais. É por isso que essa peça ficou tão chata. Se aproximou demais desse discurso nerdetizado.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Das perguntas (6)

Por que as hierarquias humanas se formam? Como elas funcionam?

Não é uma falha em notar um fenômeno mais geral que faz com que as pessoas discutam regimes políticos específicos, como capitalismo, socialismo, comunismo, monarquia, etc., em busca de identificar prós e contras, enquanto não percebem que humanos são propensos a hierarquias de um modo que produz, inevitavelmente, desigualdade e exploração? (sendo que a manifestação dessa natureza difere em diversos regimes, mas a tendência geral está lá)

Seria possível o conhecimento desse mecanismo permitir melhoras para a sociedade, ou é algo fora da nossa influência?

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Das perguntas (5)

Como podem, advogados e médicos, cobrarem tanto de clientes que recebem tão menos? Em meia hora de consulta, cobrarem o que um cliente médio precisa trabalhar, ao menos duas semanas para poder poupar? Como é possível tanta indiferença a pessoas que olham nos olhos? Que se sentam a poucos metros deles, frente a frente?

domingo, 9 de fevereiro de 2020

Das perguntas (4)

Se ninguém ouvir uma árvore caindo no meio da floresta... ela produziu barulho ao cair?

Se ninguém ouvir as preocupações do ávido leitor preocupado com a beleza, a cultura e a justiça do mundo, ele melhorou o mundo ao ler?

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Das perguntas (3)

O "problema da integração", como pode ser chamada na Economia a questão de passar do comportamento individual à análise do agregado econômico, pode inspirar um paralelo na ciência: a inteligência individual pode se somar para produzir uma espécie de "inteligência agregada" na sociedade? Esse processo, se possível, seria espontâneo (bastando, assim, as inteligências individuais para que o conjunto agregado seja, também, inteligente)?

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

Das perguntas (2)

Por que a Economia continua ensinando todas as conclusões que decorrem de assumir que o ser humano é racional, se já está mais do que demonstrado que o ser humano não é racional e que a agregação de milhões ou bilhões de comportamentos irracionais interagindo não produzem uma média que se comporte de modo racional?

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2020

Das perguntas (1)

Como é possível que a mesma humanidade capaz de coordenar o esforço de milhares de pessoas na construção e uso de um equipamento como o LHC, um conglomerado de diversos aceleradores de partículas associados, com o maior deles tendo 25 km de diâmetro, não seja capaz de dar ao menos um mínimo de alimento, simples pratos de comida, a cada ser humano do planeta?

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Normal

Um remédio para dor de cabeça tem para mim uma eficiência assustadora. Eu olho para a cartelinha de comprimidos e então, horrorizado com a idéia de colocar sabe-se lá que substância dentro do meu cérebro, já começo a melhorar.

domingo, 2 de fevereiro de 2020

Cravado

Conheci a Layana no ônibus outro dia. Conversamos. Trocamos e-mails antes que as rotinas nos separassem pra sempre. Conversamos mais. E ela gostou de mim. Conheci a Gisele. Internet, essas coisas. Trocamos mensagens. Ela via as coisas que eu pensava. Meu jeito. Gostou de mim. Conheci a Aneta. Que conversava comigo. Ria. Contava histórias. E gostou de mim.

E eu não consigo parar de pensar nela. Com ela eu converso longamente. Penso nela todos os dias. Sinto saudades que trituram os ossos da espinha. Sinto vontade de fazer tudo por ela. Mas ela não quer nem saber. A vida dela é outra. O mundo dela é outro e sou uma parte pequena no cenário.

E fico tentando sabotar isso que sinto de todas as formas. E outras mil mulheres não dão conta de me fazer esquecer.

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Só escrevendo (4)

A educação não é um assunto prioritário na mente dos brasileiros. O novo prefeito pintou de cinza muros grafitados. Aparece sempre bem vestido e falando bem na televisão. Ofende petistas. Anuncia diversas parcerias com empresas privadas. Vai privatizar parques por toda a cidade. E fez um corte gigantesco na pasta da educação e cultura. E... de algum modo, o saldo é avaliado como positivo para as pessoas.

Enquanto não entenderem que educação é uma preocupação prioritária, e que educação implica em autonomia, não iremos progredir.

Acho engraçado ver, também, as pessoas que não entendem a catástrofe que é a proposta "Escola sem partido". É preciso de uma completa acefalia política para defender essa ideia estúpida. Apenas pessoas de uma índole dogmática e desprovidas de filosofia e de consciência política não entendem a tragédia de um projeto como estes.

Mas como abordar essas pessoas? Como fazê-las enxergar? Vivemos novamente (na verdade nunca deixamos de viver) o mito da caverna, de Platão. Idiotas acreditam que a realidade é feita de sombras e aqueles poucos que vislumbraram um pouco além são tidos como loucos.
Não sei se tiro de tudo isso um norte para a minha vida, uma direção à qual dirigir minhas forças, ou se concluo que a existência é uma total decepção e perda de tempo. Decisão difícil.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Leonora

Ah, o mesmo movimento. Quantas vezes isso já aconteceu? A história é testemunha de que não há repetição que traga prática suficiente para evitar problemas. Quem quer que se aventure neste ofício deve abstrair destas impossibilidades. Ou, por bênção do acaso, deve possuir uma mente que já venha de fábrica muito pouco propensa a abstrações. Não é, portanto, nenhuma coincidência que seja assim as mentes dos mecânicos. Rústicas, brutas, como as chaves que seguram. Como o ferro que martelam, giram, derretem, puxam...

Lá está o Décio. Roupa completamente suja. Mãos, braços, tudo com o negro pegajoso do óleo, como a poeira do ambiente. Até no rosto. Um barulho estranho no escapamento. Um cansaço da engenharia e uma vitória da perseverante força da natureza que a tudo busca retornar ao caos. Mas lá vai o Décio e salva a civilização. Localiza o parafuso solto, o ferro torto, e endireita o perfeccionismo dos nossos anseios pelas melhores máquinas como metáforas para melhores vidas. Quantos Décios constroem a história? As pontes que permitem que o passado caminhe até o futuro com um ritmo sempre otimista?

Décio não sabe nada disso. Amaldiçoou um golpe mal dado que lhe meteu o alicate no indicador e depois ficou pensando que talvez tenha achado o defeito rapidamente demais. Afinal foi a Leonora, uma jovem arquiteta, que trouxe o carro. Uma jovem chamada Leonora, e dirigindo um carro desses, com câmbio automático e bancos de couro, não saberia a diferença entre um escapamento meio solto e um pistão faltando. Ele poderia ter enrolado um pouco mais e encontrado um outro defeito. Mas Leonora tinha olhos negros profundos e cabelos da mesma forma. E uma pele branca que parecia pintura, quase artificial de tão perfeita que era a combinação. E pediu o serviço com um sorriso. Algumas mulheres riem pelo instinto natural que tem nossa espécie de sorrir. Mas outras parecem saber que há no sorriso algo mais que uma mera reação visceral. Entendem tratar-se de uma verdadeira arma. E foi assim que fez Leonora. Incurtiu em Décio uma empolgação, uma empatia tal, que logo estava ele embaixo do carro, todo imundo, porco do suor que não se podia evitar no calor da pequena oficina, feliz. Resolveu o problema rapidamente. Não ganharia muito, mas ganharia um sorriso. Era apenas um mecânico. Na maioria dos dias um zé ninguém distante de toda a poesia de suas realizações. Mas sabia que muito em breve, ainda que por pouco tempo, seria no olhar agradecido de Leonora o melhor de todos os mecânicos do mundo.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Mentiras

Ah, eu sabia que ela estaria lá, é claro que sabia. Ela iria aonde? No banheiro? Na cozinha? Cuidar da vida? Não, não ia não. Porque eu a havia marcado profundamente e então ela só podia estar em um lugar: sentada a beira da cama pensando em mim. Mas é assim mesmo, é só fazer a coisa certa. Nada de dúvidas. Se eu tenho dúvidas, isso é problema meu. Com a mina, na hora, a gente tem que acertar. E eu acerto. Um super restaurante. Confiança. Pode ser que eu largo dela amanhã, mas por enquanto é como se eu fosse o príncipe encantado para a vida toda. E nossa foto num fim de tarde perfeito, andando na praia. Tem coisa melhor? Como é que eu fui parar na praia, morando aqui em Belo Horizonte? Ué, eu estou falando que fiz tudo certinho... Um amigo meu é piloto executivo... Tinha que levar um avião até Vitória e trazer outro. Eu tava sabendo diss, troquei uma idéia com ele e então estava tudo acertado. E agora ela está lá, olhando nossa foto na beira da praia. Não é pra menos. Eu pareço mesmo um milionário poderoso, todo feliz!

Cara, você tem que ver com seus próprios olhos... Eu tinha falado que a gente acabaria andando pela praia à tarde. Ela não acreditou no começo. Eu insisti, falei que o avião era sério e tal. E aí ela veio... Não com aquele jeans que ela sempre trabalha, aquela roupa toda certinha. Ela veio com um shortinho desses brancos, bem finos. Uma blusinha mega decotada e o bikini por baixo. A blusinha era só um pano fino mesmo, só o que precisava pra não dizer que estava sem nada. E o dia perfeito.

E como é que eu sei que ela está olhando a foto que eu dei pra ela? Eu moro num casarão aqui na Rua Expedicionário Mário Alves de Oliveira, um lugar bem confortável. E a gostosa mora na casa do lado. Ela não sabe, mas tem um lugar aqui do quintal, mais nos fundos, que dá pra ver bem na janela do quarto dela. Eu iria lá agora. Mas é preciso ter calma. Só um pouco mais de calma. E aí amanhã ela não vai ver só a foto não. Vai poder me ver inteiro na frente dela. E eu vou poder vê-la bem de perto também, o que é a melhor parte!

quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

O espírito das palavras

Ocorreu-me que as palavras têm espíritos.

Perambulando por aí entre as várias vidas que se desenrolam pude observá-las.

"Eu te amo" sofrendo de solidão quando não encontram seus iguais.

"Peremptório" toda orgulhosa de si, aristocrática, sentindo prazer na altivez do seu isolamento.

Palavras desfrutam de sentimentos diferentes.

Algumas são gregárias, carentes até.

Outras são solitárias, independentes, não querem saber de mais ninguém por perto.

Algumas são imediatistas.

Outras parecem exalar a própria eternidade.

terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Raspão

Numa escuna azul
Mar de Parati
Te levei pra ver
Golfinhos peixes
Corais Tesouros
Secretos

Corações

Você é transparente. Transparentíssima, de deixar ver de um lado a outro. Eu não deveria ver tanto. Ou deveria? Não sei lidar com tantas verdades.

O gerente

O gerente sabe que os funcionários mais baixos não estão vivendo bem.

E se tivessem estudado mais?

A vida não é justa.

Ele não pode resolver tudo.

O gerente sabe que há dinheiro de sobra para melhorar substancialmente a vida de milhares desses funcionários que passam longas horas em exaustivos trabalhos físicos e que mal conseguem aproveitar a família ou o resto da vida no tempo livre devido à exaustão.

Mas e os acionistas?

E os relatórios de performance?

E a teoria economica, que diz que reduzir custos é um jeito de aumentar os ganhos?

Custos.

As pessoas custam.

O bem estar alheio custa.

O gerente sabe que se fizer o que acha mais certo logo será substituído por pessoas capazes de continuar fazendo tudo errado.

O gerente não tem escolha.

segunda-feira, 27 de janeiro de 2020

De novo

Sabe, eu fico aqui pensando em você, e sei lá como pensar em você. A madrugada não me engoliria assim se você estivesse mais dentro da minha vida. Será? Imagino, imagino e não sei. Conversamos até as cinco da manhã outro dia, não foi? Não conseguíamos parar de falar. Não víamos nossos rostos. Era tudo escuro aqui no quarto. Mas nossas palavras se encontravam no vazio, no ar, e não queriam parar. Dançavam daqui pra lá. E algo fez você ficar tão longe. Sabe, eu não quero mais amar. Eu te amo, e não quero dar esse amor a mais ninguém, não importa que você não o queira. Não importa. É seu. E ficará num canto qualquer. O amor que não amamos. Um dia alguém o encontrará. Os escafandristas do Chico Buarque, será? Será mesmo? É fraqueza minha não conseguir deixar de te amar. Mas é heróico o quanto tenho tentado. Só que cansei de mentir pra mim. Cansei.

domingo, 26 de janeiro de 2020

Sobrado

Eu moro numa casinha num bairro jogado. Desses que, se aparecerem na TV, será num programa de doação de eletrodomésticos e móveis de quinta categoria ou, mais provavelmente, num jornal policial (também de quinta categoria). Jornais de boa qualidade estão por demais preocupados com indicadores mundiais e fofocas da política para gastarem alguma atenção com a monotonia dos rios de sangue dessa gente que morre por atacado mas nunca acaba.

Tem uma pizzaria aqui embaixo. Sim, é um sobrado, e embaixo é uma pizzaria. Moro num quartinho, na verdade. A casa é alugada por três pessoas. Um engenheiro, um estudante de física e uma estudante de letras. Eu, no caso, sou o engenheiro. Mas não se deixe iludir. Os estereótipos, como sempre, são distorcidos com muita selvageria pelas circunstâncias da vida. Eu passo todo meu tempo livre aqui às voltas com música e leituras. Já a estudante de letras, que não sabe o que quer da vida, não perde uma festa sequer e está cada semana com um cara diferente, que invariavelmente se apaixona por ela. Que invariavelmente toma um pé na bunda e fica arrasado. Que invariavelmente transforma o vazio amoroso em raiva na semana seguinte, quando aparece aqui e dá de cara com o mais novo substituto. Já o estudante de física, não, não está o dia inteiro em livros e em experimentos malucos e cálculos sem fim. Política. O negócio dele é política. Quer saber quem será o próximo reitor da universidade. Não entende o descaso do governo federal com a educação. Não entende o descaso de todos com o descaso da política. Não entende que eu seja engenheiro e só esteja preocupado com o bem-estar imediato do meu dia-a-dia. Não entende que a Laura seja humanista em formação e só queira saber de sexo, bebida, dança, sexo, homens, sexo, dinheiro, sexo e viagens.

Eu gosto da vida por aqui. Mudei faz coisa de um ano, por aí. Aqui é perto do trabalho. La no outro bairro em que eu morava, do outro lado da metrópole, lá era um canto esquecido, desses que nunca aparecem nos jornais de importância e onde vai se vivendo. Igual aqui. Mas era longe do trabalho. Como toda periferia, os dias de calor transformam tudo num inferno. Não temos uma piscina porque no lugar dela já tem vizinhos. Não temos vento porque são paredes e mais paredes por todos os lados. E os cômodos são pequenos demais pro vento entrar. Quente, no verão é quente. Mas fico à vontade.

Mudei só querendo ficar mais perto do trabalho. Mas descobri que mudar é bom. Deixei tanta coisa de lado. Lá em casa tinha minha família. Tinha meu jeito de viver os dias. Aqui como que me vi totalmente livre pra bolar dias novos. Foi assim que finalmente realizei meu desejo de começar a ler e a escrever mais. E a música, ah! A música. Todo final de semana vem uns amigos. Violão. Flauta. Pandeiro. Tambores de qualquer espécie, do bongô mais caro da Teodoro até uma lata de lixo ou balde velho, devidamente testado para identificar os timbres certos. Cantamos. No improviso ou na lembrança, no plágio ou na inspiração. Música é música. Música lava a alma. Lá na minha outra casa não tinha dessa mesma música. Dessas pessoas assim, que vinham, cantavam e iam embora. E lá a pizza demorava bem mais pra chegar. Lá eu tinha outras coisas pra fazer. Não podia sentar e ficar assim escrevendo à toa, porque tinha tanta coisa pra fazer. As paredes precizando de pintura, o gato precisando de comida, as poeiras precisando de vassouras.

Gosto daqui. Das pessoas que logo vão sumir. Gosto de saber que logo acaba, e que ninguém está dramatizando com isso. Gosto de saber que vai mudar logo, e não fazer a menor idéia de como vai mudar. Vai mudar e pronto. E os segundos são os mesmos, sempre os mesmos, e segundo após segundo, fico eu com esse sorriso espontâneo grudado na cara, de quem gosta de viver e está achando tudo muito bom.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2020

Atlântico

De que forma eu compro a alegria de te ter por perto?

Hoje no ônibus vi uma bunda como poucas vejo nesta cidade de milhões de bundas.

No trabalho soube que viajarei ao exterior em breve, tudo pago, bonificações, e ainda posso escolher onde ir estudar.

Toquei meu clarinete ao chegar em casa. As notas saiam redondas, o som bonito, aveludado, coisa mais tranquilizadora.

E eu penso em você, sonhando loucamente para que esteja pensando em mim. Transformando irracionalmente todas suas declarações em referências indiretas a mim. Acho graça de um gostar assim arredio a qualquer disciplina. Imortal contra todas minhas tentativas despudoradas de desmerecê-lo.

Que saudade gigante.

Gigante. Maior que o Atlântico todo, com seus abismos, peixinhos, baleias e tudo...

quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

Burro

A Aline, a Cristina, a Tereza, a Marcia, a Gabriela, a outra Gabriela, a Joana... Penso em todas as histórias e descubro, consternado: não sei não me apaixonar. Não consigo. Não consigo não me entregar demais até não sobrar muito da minha alma em mim. Sou assim, a cada vez foi assim que fui. Vai acontecer de novo, eu sei...

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

Alquímico

Minhas visículas começaram a produzir amor demais.

Procurei curandeiros, médicos, advogados, engenheiros, pedreiros, chineses e camelôs. Procurei um homeopata.

Solução: diluir o amor.

Diluir em água? Não, amor se dissolve em outros amores, disse ele.

E então dei-me a outros amores.

Loira peituda, alta, perna grossa.

Libanesa trintona super gostosa, simpática, que estava infeliz no casamento. Um doce...

Morena dançarina, rebola como ninguém, coxa com coxa. Cheiro de impregnar.

A namorada toda certinha que tinha duas faculdades, um bom emprego, leitora voraz, atenciosa com a família, perfeita nos ideais da normalidade.

Olhar excitante. Pele com pele.

Menininha inocente, longos cabelos compridos, lisos, impressionada com os mistérios de minha pouca idade a mais.

Filósofa voraz leitora de tudo. Tudo. Filosofias, romances, guias, folhetinhos. Tudo. E conversadora. Horas de conversas no sofá sob o cobertor. O melhor chocolate quente é aquele que vem cremoso, com um leve toque de conhaque e coberto de muitas frases raras. Se tiverem a delicadeza de enfeitá-lo com bons olhares então, é um paraíso.

A atriz que tinha nos jeitos da saudade a poesia dos palcos. E abraçava apertado. Mordia. Apertava as mãos em mim forte, com medo de deixar escorregar.
Com medo do tempo passar rápido demais.

E então ela, aquela de antes, aparece dizendo tchau. Outro país, morar fora.

Não consigo: não quero.

Amor não se dilui. Com sorte e um bom sufoco, se esconde. E se ele não morrer sufocado, azar o seu.

Pele

Eu a vi a primeira vez perto do metrô, onde marcamos um encontro. Não um encontro amoroso: ela me daria carona para uma festa que tínhamos mais tarde. Amigos em comum, essas coisas. E é inevitável, todo homem sabe: falávamos de coisas banais, eu olhava as pernas dela. Ríamos risadas triviais, eu deixava os olhares se cruzarem. Olhava bochechas, peitos, braços, mãos, unhas, dedos, barriga, quadris.

Conversamos sobre a chuva do dia anterior e como isso atrapalhou a futilidade de nossas rotinas, mas em minha mente não consigo deixar de imaginar que gosto teria morder aquelas pernas apetitosas.

E agora não consigo deixar de ponderar:

Quando foi que ela se descobriu lésbica? O que foi que os homens todos deixaram de fazer para perder essa jóia dos domínios de nosso reino?

É só isso. Estou chateado e ponderando a respeito... Queria tanto morder aquelas pernas...

domingo, 12 de janeiro de 2020

Normal

Um remédio para dor de cabeça tem para mim uma eficiência assustadora. Eu olho para a cartelinha de comprimidos e então, horrorizado com a idéia de colocar sabe-se lá que substância dentro do meu cérebro, já começo a melhorar.

Continental

As duas moças no banco de trás do ônibus eram um barato. "Um barato", que expressão... será que estou velho? Outro dia chamei alguém de "nó cego" e ninguém entendeu. Falaram que era uma expressão de vovô, que nunca tinham visto alguém usar isso desde a TV colorida. Enfim, mas as duas eram um barato, isso eram. Falavam de relacionamento. Uma delas estava com problemas de namoro e a outra ia aconselhando.

- Ih, mas é assim, é assim mesmo! Você quer sair, muda de planos. Sai do trabalho, dá uma ligadinha e fala um oi, fala que tá indo ver sei lá o quê, pronto desliga, tá avisado, sabe... É isso, é trabalhoso, mas é assim!

- Meu, eu não vou conseguir. Avisar qualquer mudança de plano todo dia? Eu não faço isso nem com a minha mãe! Não dá. Sei lá. Acho que é melhor assim: a gente namora de fim de semana e fica solteiro durante a semana. Não dá. Dar satisfação sempre? Nunca fiz isso na vida!

Como sensibilizei com ela. Quase virei-me para de repente dar um abraço nela, em sinal de identificação com a causa. E também em sinal de que eu reparara no quão bonita era a moça.

Impasses

Eu não entendo os acadêmicos do mundo, e ainda assim gosto tanto de estudar.

Eu não entendo a poesia das saudades, e ainda assim sinto tantas faltas.

Eu não entendo a poesia dos amores, e ainda assim choro tantos sonhos.

Eu não entendo o amor das mães, e ainda assim adoto tantas vidas.

Eu não entendo a solidão, e ainda assim não sei onde estou.

sábado, 11 de janeiro de 2020

Cláudia

Ela chora a soluços largos. Profundos. Parece um dinossauro tossindo, de tão graves e fortes que são os solavancos. Se não é poética a descrição, acredite então na sua precisão.

De seus olhos não caem lágrimas. Desmoronavam parques cheios de gente. Mãos dadas. Bebês no colo. Famílias na praia ensolarada. Sono num ombro quente no banco do avião. Risadas cúmplices na mesa do bar. Tudo isso desmoronava barulhosamente, batendo no pé da cama, escorrendo para o chão, vazando para o inferno.

Para o inferno, que é de onde tudo isso veio. Do inferno surgem essas ilusões impossíveis que nos cegam para a verdade.

Entre um soluço e outro ela teve esse lampejo. Ele não era, afinal, a pessoa para realizar todos esses sonhos, mas só agora ela entendia.

Pensou sobre essas ilusões tantas.

Não é curioso que, como tudo que vem do inferno, as ilusões deliradas sejam tão prazerosas e irresistíveis antes que a realidade recupere o fôlego e se imponha?

Chorou uma vida a menos a cada soluço.

É que entender... entender conforta.

O que vi

Uma das maiores barreiras a impedir as pessoas de chegarem a um conhecimento científico do mundo é o quăo fracas elas se fazem diante das próprias fraquezas. Rendem-se aos próprios anseios, acorrentam-se ŕs mais infantis ilusőes.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

TicTac

O cansaço me digere
Eu deixo,
eu deixo ele me engolir
Levar minha raiva
Meus anseios
Meus sonhos
Meus pensamentos
Cansaço, sono
Latente, latente e não vai
Bêbado
Sonhando sonhos de um mundo em que não há sonhos
Apertado a mim
Mas digerido, pouco a pouco
Pouco a pouco tudo se vai na digestão do tempo
Minhas saudades
Meus sonhos
O que restará?
De tão longe, de tão longe, algo vem pra cá?
Do que eu era, algo vai voltar a ser?
Do que eu seria, algo vai sobreviver?

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Espelhos

A pior coisa que pode acontecer quando se quer guardar um segredo é conseguí-lo. Pois foi o que aconteceu. Guardei um segredo sem saber que com isso eu guardava uma parte de mim para fora do mundo. Uma parte de mim que agora não está no mundo, não faz parte desta realidade. Não existe, embora exista. Não importa, embora importe. Não se enxerga mas está lá. Então não tenho a quem culpar se não a mim mesmo por toda essa invisibilidadde. Quando as pessoas não entendem o que se passa comigo isso é tão somente reflexo deste meu sucesso de Pirro: o segredo continua bem guardado, ninguém nem desconfia. Foi assim que virei dois. O que existe e o virtual. O material e a sombra. O concreto e o abstrato. Dois em uma dualidade que é em parte dona do mundo e em parte amasmorrada sem luz sem água sem visita, sozinha na solidão fria do isolamento indiferente. Porque é esse o peso de não ser sabido. É esse o peso de pensar sem eco. É esse o peso de amar sem voz. De doer sem lágrima. De gritar sem som. De respirar sem ar. De existir sem corpo. De viver sem você.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Outubro

- Sabe cara, é estranhíssima essa situação, por um lado você totalmente convicto de que agiu corretamente, mas ao mesmo tempo meio mutilado, sabe que a deixou mal, ou então parte de você com raiva dela, porque ela falou coisas que agora você quer revidar de formas muito melhores pra não deixar barato.

- É uma bosta... Mas não tem como ser diferente, não é?

- Não, não tem mesmo. É sempre assim.

- Ela disse que há coisas mal resolvidas no meu passado. Disse que a Melina está querendo me manipular, que é a Melina que fica fuçando no Orkut dela e tal, disse que descobriu alguma mentira nas coisas que eu já falei pra ela e que por isso perdeu a confiança em mim, mas não quis dizer que mentira foi essa.

- Nossa, isso é bem sério!

- É mesmo! Mas sabe, eu não tenho a menor idéia de qual mentira pode ser essa, e é muito, mas muitíssimo provável, que esta mentira seja alguma invenção da mente doentia dela, que fica caçando coisas. Pra mim, ainda que houvesse mentira, o problema continua sendo esse... O que ela está se metendo no meu passado? Cada um tem um passado diferente e o que importa é o daqui pra frente.

- Mas sua mentira foi um evento do presente, pertencente já à história de vocês dois.

- Boa, isso é verdade. Quer dizer, é verdade se eu menti, e eu acho que não. Acho que é coisa da mente doentia dela, como já disse. Mas tá, a mentira é um evento do presente... E por que, no presente, ela foi fuçar no meu passado?

- E se ela tem que ter uma postura de indiferença com relação ao seu passado, no sentido de que não deve fazer de qualquer coisa um verdadeiro cavalo de batalha, por que você não pode ter a mesma postura consigo mesmo e ser indiferente ao seu passado, deste modo falando livremente dele justamente porque não importa mais nada?

- Sei lá, ou fraqueza, talvez eu não quisesse que esse passado tenha acontecido, talvez eu tenha mudado a ponto de repreender certas coisas em mim, não ao nível do arrependimento, da crise de consciência, mas não quero mais que coisas do passado invadam o presente me definindo, aí decido esconder as coisas, é uma explicação plausível, não é?

- Humana demais, talvez.

- Sabe, falar que há algo de errado com meu passado, algo não resolvido em mim... Ela me manipulou, no fundo foi ela quem me manipulou. Eu sempre fui muito claro sobre tudo nessa história, mas ela nunca me deu ouvidos e acabou levando a história até um ponto insustentável.

- Como assim?

- Desde o começo eu falei explicitamente que não queria nada sério. E quando vai ver, a gente já está namorando! Quando viajei pra praia com ela, falei pra ela que minha vida estava mudando com o trabalho, que eu teria pouco tempo pra ela, que não nos veríamos sempre. E daí passamos a nos ver todos os finais de semana.

- Talvez ela não se sentisse segura.

- Exatamente, não se sentia. Ela não se sentia segura porque eu era transparente com ela. Se desse um jeito de vê-la todo final de semana pra fazer uma média, mandasse mensagenzinhas todos os dias cheias de declarações e tal, daí pra frente pouco importaria se eu comesse uma puta por dia. Mas não, eu só tinha minha mente voltada pra ela, e queria poder me dedicar às minhas coisas com o mesmo afinco que faço em tempos de solteirice, não gosto da idéia de alguém estar tomando meus pensamentos no meio do dia, não gosto da idéia de falar horas com ela no telefone ao longo do dia ao invés de andar pensando em outras coisas, outras quaisquer que sejam, porque tudo o que eu quero é esse tempo pra mim. Ela me acusou de não conseguir organizar a minha vida. Em parte tem razão, dou vários tiros no pé, é verdade. Mas é mentira que eu não consigo tempo pros meus amigos, pra minha casa, e pro meu trabalho e minhas aulas. A verdade é que nesse meio tempo em que ela esteve na minha vida, aí sim as coisas se bagunçaram. E se bagunçaram porque ela entrou com os pés na porta querendo tomar pra ela mais do que eu estava disposto a oferecer. E erramos os dois ao achar que havia como acomodar essa discrepância fodida de quereres que não se batem.

- Não precisa dizer que só tinha a mente voltada pra ela. Pouquíssimas pessoas passam repetidas vezes na vida por essa experiência de ter a mente tomada única e exclusivamente por uma pessoa. E mesmo nesses casos extremos é idealístico demais dizer que nunca passa por essa mente apaixonada considerações paralelas desta ou daquela vez que uma pessoa encantadora aparece surgida detrás de uma novidade qualquer.

- Tá, não quero dizer que meu coração é o lugar mais vazio do mundo, pois a verdade é longe disso, mas o fato é que fui fiel a ela esse tempo todo, e sem esforço algum, com naturalidade, e é foda pra mim, mas muito foda mesmo, saber que ela paga um pau ferrado pro Gustavo, por exemplo, pela forma apaixonada e cheia de atenção que ela o viu tentar reatar com a namorada. O que ela não sabe é que enquanto ele tentava reatar com a namorada comprando toneladas de flores e chocolates, comia uma por dia a semana inteira, ou puta ou uma coitada qualquer lá do serviço dele, e aí tudo passa a se justificar. Se eu comesse sei lá quem durante a semana, chegaria aos fins de semana certamente muito mais atencioso também, pois precisaria dar um jeito de jogar minha culpa pra baixo do tapete produzindo na outra pessoa qualquer sentimento de alegria cuja aparência se sobrepusesse à consciência dos meus erros.

- Calma, calma, não precisa também sair punindo os outros, julgando quem é ou não é mais culpado ou sei lá o que. Deixe seu amigo viver a vida dele como ele bem entende e você procure viver a sua como bem lhe convenha, é nisso que tem que se concentrar. De que adianta se comparar aos demais quando há tantas e tantas formas de vidas diferentes aí e não temos como saber, realmente, qual delas produz a pessoa mais feliz? Concentre-se na visão privilegiada que tem da sua própria vida e faça o melhor que pode fazer para si.

- Mas é isso que estou fazendo. Não estava bem nesse relacionamento que foi pra onde eu não queria ir, e saí dele. Essa discussão sobre o Gustavo é paralela, é só pra enriquecer a ironia que encontramos no mundo.

- Ah, as ironias do mundo. No fundo, confesse, você gosta disso, não é?

- Das ironias? Ô se gosto!

- Não não, não fique só nas ironias. Não é só delas que gosta. Gosta dessa vida bagunçada que te permite encontrá-las, não é?

- Ah sim, isso também.

- Sabe, às vezes você fica cheio de problemas com suas confusões, ou relacionamentos com as mulheres, ou suas confusões na sua casa, seu irmão distante, seu pai, enfim, uma série de coisas. Mas você criou um espaço no meio disso tudo, que por estranho que seja, você protege com um afindo assustador.

- Tá, acho que até faz algum sentido, se é o que estou pensando. Mas que tipo de espaço você quer dizer?

- Uma espécie de solidão móvel que você carrega em torno de si para mundos diferentes para olhar as coisas de um ponto de vista privilegiado e depois retornar em segurança ao calor do seu quarto e meditar a respeito. Você acorda e diz pra uma parte de si olha, vou ali fora olhar o mundo e já volto, tudo bem? E essa outra parte não vai junto não. Fica em casa, esperando o retorno. Tua crise aí com essa moça foi essa mesma, ela queria as duas metades, tá certa ela. Estranha essa sua relação de se reservar tanto, não acha?

- Ruim na medida em que faz mal pra mim ou pros outros. Neste caso, começou a fazer mal demais pra ela e eu não consegui fazer isso parar sem que não fizesse mal pra mim também, daí resolvi parar.

- E vai ser assim pra sempre? Se for assim, talvez você acabe se isolando de todo mundo, porque no fundo o que você está fazendo é impedir que as pessoas tenham acesso a uma parte de você, que mais cedo ou mais tarde, você deveria dividir com alguém.

- Por que diabos eu teria que dividir com alguém essa metade do meu íntimo?

- Porque se não essa metade nunca vai existir. Só existe o que é compartilhado. Talvez alguém tenha pintado quadros melhores que os de Monet ou Van Gogh, e os pintou em isolamento e jogou as telas no rio ao lado. Talvez alguém tenha feito músicas mais fantásticas que as de Mozart, Vivaldi, Beethoven, mas perdeu as partituras. E daí? Talvez alguém tenha feito a melhor piada da história, e morreu de rir ao contá-la pra si mesmo, e pro resto do mundo, que não soube dos detalhes, a coisa toda não teve a menor graça, pois só tiveram que carregar o corpo e nada mais.

- Você está perdendo o foco.

- Como assim?

- Minha vida é vivida por mim. Sou espectador o tempo todo. Se ninguém mais vê minha vida, que usem esse tempo vendo as próprias vidas. Se não estou dividindo algo porque acho que esse algo é melhor vivido a sós comigo, então que respeitem isso e, se quiserem sei lá porque ter acesso a isso, que façam por merecer, que não estraguem a coisa toda, né? Você convida pra entrar na sua quem acha que a visita vai valer a pena, de alguma forma. E se, uma vez lá dentro, a visita começar a destruir tudo, então você a expulsa, não é?

- E sua intimidade é assim?

- É, é uma boa descrição.

- Você me parece frio.

- E você me parece permissivo demais, ou talvez desorganizado em seus princípios. Ou talvez você me pareça apenas decidido a me contrariar. No fundo você age como eu. Pode não pensar explicitamente como eu penso, mas aí é só falta de auto-conhecimento da sua parte, e não, em última instância, divergência entre a gente.

- Manipulação barata.

- Conversa dos diabos.

- Nem me diga.

- Sabe, mulheres, mulheres.... Eu as amo, sabia? Cada uma de um jeito, mas eu amo as mulheres.

- Como era mesmo a frase que você leu naquele livrinho lá?

- Que livrinho? Como você quer que eu responsa uma pergunta tão vaga?

- Aquele lá se como a gente se engana inconscientemente e tal, que falava sobre amar muito também, como era?

- Ah certo, lembrei. A frase era assim. Amar igualmente a todos equivale a não amar ninguém. Algo assim.

- Então. Sai por aí amando todas as mulheres, e agora fica nessas.

- Não é por aí. Há o detalhe. O igualmente. Eu não amo igualmente todas.

- Mas também não ama completamente nenhuma.

- Não misture as coisas, pelo amor de deus, não é disso que eu estava falando, quando digo sobre amar as mulheres... Sabe, as coisas precisam ficar mais quietinhas em seus próprios conceitos ao invés de sairem fugindo por aí pra outras discussões com funções deturpadas.

- Não fique bravo.

- Estou bravo, estou puto com tudo isso. Você fugindo dos contextos em que as coisas são compreensíveis. Pessoas se apaixonando por mim quando não deveriam, pessoas não se apaixonando por mim quando deveriam, meu gato besta querendo pular da janela enquanto eu escrevo...

- Então você ama alguém, não é?

- Amo, amo sim. Não, não sou correspondido. Não, não sou tão mal resolvido como parece. Eu deixaria essa moça desse último caso tomar o lugar dela, era só ela não ter tido tanta sede, não ter feito as coisas de um jeito que sufocou minha vida. Que me bagunçou, que me fez sair do meu próprio controle.

- Drummond tinha razão com o Quadrilha, né?

- Ô!

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Chrise

Ah que merda, que grande merda! Eu queria ficar sozinho? Eu queria ficar com ela? Eu não aceito a impaciência dela? Eu sou pouco decidido para lidar com minhas vontades e ...

... e três meses depois, não sei ainda como concluir este parágrafo. Merda.

(a bem da verdade... Onze anos se passaram e agora sei perfeitamente que não sabia de nada do que estava se passando)

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Independência

Ah, o prazer de mandar a outra pessoa ir à merda!

De pensar, sem o menor peso na consciência... Com um grande afluxo de prazer, na verdade: foda-se!

Estou mudando. Minha benevolência desmedida, minha condescendência irrestrita, sofrem um intenso processo de erosão ao atritarem com os erros do mundo. Longe de se danificarem, a mudança de forma que assim sofrem as tornam mais robustas. Minha benevolência está lá, porém agora protegida por pontas agudas contra quem quer que se aproxime de forma indevida.

Não suporto excessos de manhas. Quando é questão de meiguice, puro adicional no estilo, tudo bem. Fica até bonitinho, feminino. Mas mulheres idiotas que tentam forjar uma exagerada postura de vítima, ou aumentar por meio de manifestações toscas as falhas de julgamento de todo pequeno ciúme... que vão à merda. Não me torço por isso. Não tenho paciência pra isso.

Estive quinta passada um pouco mais ausente. Muito trabalho, depois trânsito porque o corredor de ônibus da Rebouças anda a 1,5 km/h em horários importantes, e porque eu estava à voltas com grandes inspirações em minhas leituras, coisas produtivas para o meu trabalho. Estava, contra todos os esforços em contrário a que esta cidade se presta, em meus momentos de alta produtividade intelectual.

Dia seguinte, lá vem a chata:

- Sumiu ontem, nem uma mensagenzinha... Tava com a outra, é?

- Tava... Ela é ciumenta tipo você, daí pega mal ficar mandando mensagens na frente dela.

Não desminto nenhuma suspeita imbecil. Confirmo todas. Que morram as pessoas desequilibradas vitimadas pelos assombros de seus próprios fantasmas mal cuidados.

E eu, do meu canto, com um inegável afluxo de prazer, fico pensando:

- Foda-se!

domingo, 5 de janeiro de 2020

Perigo

Eu quero me deixar apaixonar. Eu quero amar como se você fosse uma virgem de 12 anos e fossemos nós dois inteiros inocência e sonhos.

Sei que não é.

Sei que não vai ser.

E, ainda assim, quero me apaixonar.

E quero apaixonar você, seu coração, sua alma. Não para te perder pra sempre pra mim. Não para arrancar você de suas histórias e desandar sua vida. Mas para esgotar esse sentimento até o último sopro.

Intenso.

Sei que é perigoso.

Sei que ainda me machuco.

Não importa, não importa!

Eu te abraço, e é doce, é bom.

Eu te olho nos olhos.

Envolvente.

Quero mais, que mal há?

Que mal há em querer abraçar sua alma?

Que mal há em querer olhar seus sonhos?

Perdoe se estou errado, julgando mal... Mas creio que há tanta coisa em você que anda adormecida. Quero acordá-las, só isso. Acordá-las e deixá-las felizes e conviantes novamente. Depois que sigam, sorrindo, para onde quiserem.

E que não parem mais de sorrir.

(7/jul/2009 1:58)

sábado, 4 de janeiro de 2020

Mente desempregada

Não vou admitir por aí que estou sem trabalho. Vou aproveitar a crise e dizer que fui passado para uma posição inferior. Só se insistirem muito é que explico: nesta nova posição, não recebo. Mas, por outro lado, também não preciso fazer trabalho nenhum. Logo, é mais tranquila que a anterior...

Mas preciso de um emprego novo, ocupar minha mente. É estranho isso: ter a mente totalmente livre para fazer o que quiser significa ficar sem fazer nada. A vida tem dessas contradições curiosas, aos montes!

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Corifeu

De que tamanho são os medos? Com que força é preciso que as vilências quebrem nossas mentirosas coragens para se ponham, nus, todos os medos a mostra? Para alguns, é a arma na cabeça. Para outros é a simples notícia na tevê. Para outros é o assalto sorrateiro. De si mesmo. Ou do vizinho. Ou de alguém de quem se ouviu falar.

Para ela, bastaram três pirralhos de bicicleta. Disseram estar armados. E com que força ela constestaria tamanha afronta? Suas mãos cederam antes que seus medos se soubessem ali. Um reflexo mecânico. Como quando a gente acha no chão os chinelos, logo pela manhã, e logo depois nem se lembra bem como foi que acordou. Os músculos despertam antes da mente. As mãos entregaram a mochila e o celular antes que o pavor se permitisse existir. Mas ele se permitiu. E ela não andou mais por aquelas ruas. E se escondia atrás da porta trancada, no apartamento. E palpitava de suores quando passos soavam atrás dos seus em qualquer calçada que fosse.

Pobre menina. Assim tão jovem e foram lhe roubar a mochila, o celular e a vida.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Plágio

Um bom escritor possui não só seu próprio espírito mas também o espírito de seus amigos. Nietzsche que disse isso, quem pensou isso. Ou então algum amigo dele, vai saber!

Contrastes

O que faz de um livro um bom livro? Penso em qualidades objetivas, riqueza de vocabulário por exemplo. Não é um bom critério. Há tantos bons exemplos de livros ricos no vocabulário e pobres no poder de cativar, não é mesmo. Profundidade das idéias? Eloquência? O mesmo problema.

Um bom livro é... bem, um bom livro é um livro que não se consegue soltar. É isso. Sei que estou apenas mudando o problema de lugar, mas é por aí sim. Você larga o prato de comida do lado. Larga os cadernos da escola. Larga a coleira do cachorro e ele sai andando por ai. Larga a roupa suja acumulando. Mas não larga a leitura. Aquela leitura deliciosa. Às vezes, os contrastes: o assunto em si é repugnante, assustador, repulsivo. E não obstante a leitura é ótima, imperdível. Como Bill Buford em Entre os Vândalos (Among the Thugs). Excelente livro!

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Motivos

De que diabos adianta planejar o que escrever? Não, não adianta. E não é questão de disciplina, de cumprir a agenda. Planejo, enumero tópicos. Meus capítulos empoeirados de uma empreitada incerta. Meus ensaios sobre temas meritórios. Meus artigos arrebatadores sobre contendas emocionantes. E de repente nada, nada disso vem com mais força à ponta dos meus dedos agora do que esse próprio assombro sobre o mistério da motivação. A motivação instantânea contra essa das agendas. A agenda é uma espécie de espectro de nossa alma que foge do passado e vem nos perseguir no presente. E nós, humanos, sempre que atravessamos as barreiras do tempo, somos excessivamente cruéis. Quer seja com os outros ou para com nosso próprio eu. E fico aqui, rindo desse fato. Os e-mails por serem respondidos, assim, passam a aguardar mais um dia. Julgam que sou relapso. Que fujo. Mentira. Desapareço justamente por esse desespero de estar presente. Intenciono todos os dias por elaborar uma resposta memorável aos e-mails que esperam por resposta em minha caixinha virtual de mensagens. E isso nunca acontece. Até que virá o dia sem preocupações. Estarei pensando em outra coisa. E uma centelha, uma fagulhazinha miserável de inspiração, irá me atingir vinda sei lá eu de onde. E escreverei um e-mail gigante. Não são assim também as outras inspirações da vida?

A escrita é uma manifestação do espírito e é por isso que os destinos de nossa inspiração são assim tão indomáveis. Matamos esse nosso espírito ao tentar domá-lo, e sempre o fazemos em maior ou menor grau. Acontece que domar por um caminho é o mesmo que proibir veementemente todos os demais caminhos possíveis.

Não é assim também com o amor? Tentar domá-lo é altamente contraproducente. E a tentativa de fazer o amor andar por um caminho é o mesmo que impedí-lo de andar por todos os outros. O que pode fazer um enorme sentido lógico em determinadas circunstâncias. Mas quem garante que essa manobra ousada atenderá aos caóticos designios da inspiração amorosa?