Nos muitos milhares de quilômetros de estradas que vascularizam a atrofiada economia brasileira, encontrar auxílio muitas vezes é uma aventura em si. Auxílio, veja bem, qualquer que seja. Um posto de gasolina. Um banheiro. Um lugar para comer uma coxinha com coca-cola. Um borracheiro. E teve uma vez que vivi isso de perto. Estava lá para aqueles lados do norte. Eram quilômetros e quilômetros de estrada de terra para sair da fazenda. Choveu, atolou. Eu sempre tinha uma garrafa de água grande no carro e alguns salgadinhos também, biscoitos, essas coisas. Vai que eu fico atolado ali. Pode ser que só passe uma possível ajuda no dia seguinte. Ou depois. E eu vivo do que? Posso até passar um aperto, mas passar sede absoluta no meio do mato? Isso é coisa de quem vive em São Paulo.
Um dos pneus do carro dizia: vou estourar logo mais! Na cidade a gente não se preocupa tanto. Ou estoura, ou não estoura. Dá um certo medo de estourar na estrada, de provocar um acidente. Aqui, nesse contrasenso que é um lugar sem ninguém em que o homem já destruiu tudo (não há mais floresta nativa quase em parte alguma), acidente é o de menos. Perigo mesmo é o ficar parado. Eu tinha que dar um jeito de arrumá-lo. Disseram que tinha um posto de combustível, seguindo depois da estrada de asfalto, pegando à esquerda. Mais sessenta e cinco quilômetros. Era mais perto. Tem borracharia lá? Tem sim! Maravilha. Fui.
Chovia. Estrada. Plantações dos dois lados. Terrenos vazios. Passaram as máquinas e decidiram que não valia a pena plantar nada. Quilômetros. Quilômetros. Quilômetros. Quilômetros. Buraco. Uma curva. Vira um pouquinho a direita. Parece que começou a subir. Uma leve subida. Mas pelos próximos cinco quilômetros a diferença de altitude será considerável. Um ônibus passa. Um ônibus! Fico com a impressão de que essa estrada é movimentada demais. Um ônibus! E parecia ter muita gente dentro, que coisa. Quilômetros. Quilômetros. Quilômetros. Fico conhecendo todas as trepidações do carro. Como ele se comporta a oitenta quilômetros por hora. A noventa. A noventa e cinco. E decido não passar mais disso. A direção parece querer se arrancar do painel, pular no meu colo e sair correndo. Nunca vi trepidação assim.
Começo a ver algo ao longe, à esquerda. Uma construção, algumas placas. Será que é ali o posto? Vou me aproximando e vejo a placa: Hospedaria. O hotel parece um pequeno vilarejo. Uma sede, uma área central aberta para a estrada, um grande pátio de terra batida, e ao redor os quartos individuais, dispostos. Um mini tabuleiro de banco imobiliário em que ninguém conseguiu ainda fazer uma grande construção. Só casinhas pequenas. Mais à frente o símbolo mundialmente famoso. Shell. Aproveito para abastecer toda a gasolina que gastei até ali e pergunto pela borracharia. É ali atrás, virando ali ó moço. Pago o combustível e vou até lá.
Sob o alto telhado, protegidos da chuva densa que insistia em cair, os três mais velhos jogam dominó e o menino fica ali ao lado, observando. Olá! Desculpe atrapalhar o jogo de vocês. Não tem nada não moço, não tá atrapalhando, veio foi é ajudar. Claro, penso. Estou ajudando. Esse tédio que deve ser ficar olhando o jogo dos outros. Ou será que ele já havia jogado também e tinha perdido? Quanto tempo faz que eu não jogo dominó? Não consigo me lembrar. Conto sobre o problema com o pneu, sobre o caráter preventivo de minha visita ali. O garoto, metade do meu tamanho, um terço da espessura do meu tronco, parece querer sair voando com aquele vento. Mas toma em mãos a chave em cruz e desfecha golpes contra os parafusos todos. Retira a roda e a dedica empenhadas marretadas contra todos os amassados. Ao lado, os três seguem no jogo de dominó, indiferentes ao esforço do menino. E conversam nesses sussuros cheios de sotaque local que a gente não consegue entender. Será que estão falando algo de mim? Será que estão contando histórias à toa? Será que estão falando de mulheres? Uma borracharia, no meio do nada, isolada em um dia de chuva... como imaginar que não estariam falando de mulher?
O tempo ali estava parado. Nem o "movimento" no posto de gasolina, logo ali à frente, era observável de onde estávamos, já que a borracharia era instalada nos fundos de lugar nenhum. O tempo parado. Mas os três ali, jogando dominó e rindo. E eu os observando. Há quanto tempo que eu não parava para jogar dominó fosse com quem fosse? Ou um carteado à toa. Os trabalhos seguidos de trabalhos imprimem uma urgência ao tempo. Mas essa urgência não é inerente aos tics do relógio. Ali estavam os três desafiando o lado pesado da vida. Não sobrava dinheiro em parte alguma. A vida não estava resolvida. Talvez as contas não fechariam no fim do mês, se não parassem veículos suficientes ali com seus pneus furados. Mas e daí? Isso era coisa de depois. Agora, agora só importava ver se alguém iria colocar uma pedra com um cinco sobre a mesa para poder usar também o cinco que tenho à mão. Assim que funciona. Fiquei ali, observando-os jogar. E morrendo de inveja.
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